No canal de Carnaxide ainda ninguém se esqueceu de que o programa Supernanny teve de ser cancelado, no início deste ano. Em causa estava o “elevado risco” de ele “violar os direitos das crianças, designadamente o direito à sua imagem, à reserva da sua vida privada e à sua intimidade”, considerou logo após o primeiro episódio a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens.
Antes de o reality show Casados à Primeira Vista ir para o ar, a produtora Shine Iberia Portugal solicitou, por isso, um parecer à Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos Portugueses, sublinhando a presença de psicólogos e de outros profissionais no programa.
Nessa altura, os membros da Comissão de Ética concluíram que ficava pouco claro aquilo que se esperava dos colegas participantes, e recordaram que os psicólogos, “quando solicitados a comentar casos particulares, pronunciam-se sobre os problemas psicológicos em questão mas não sobre os casos particulares”.
Quanto à coach presente no programa, e muito em particular quanto ao coaching nas áreas da saúde/relacionais, a Ordem defende que esse trabalho deverá ser desenvolvido sempre por psicólogos. E o mesmo se passa relação à hipnose que a coach do Casados à Primeira Vista afirmou fazer: “É uma ferramenta da Psicologia para trabalhar as emoções, os conflitos internos e o inconsciente do cliente; consequentemente, faz parte do perfil dos atos que os psicólogos podem realizar.”
Na mesma altura, e no sentido de serem analisadas eventuais irregularidades ou não conformidades com o Código Deontológico, a direção da Ordem decidiu reencaminhar o assunto para análise do Conselho Jurisdicional, que ainda não deu o seu parecer.
Sem querer substituir-se ao veredicto do Conselho, que é um órgão isento, autónomo e imparcial, o psicólogo Miguel Ricou, presidente da Comissão de Ética, defende que a intervenção psicológica no contexto mediático “não faz qualquer sentido” e explica porquê.
“Ela é feita com base em privacidade – e não tem a ver com o cliente ter dado o seu consentimento”, lembra. “Ninguém pode acreditar que uma pessoa que está exposta daquela maneira vai dizer o mesmo que diria na sua privacidade. A relação entre cliente e psicólogo não terá as mesmas condições, logo, à partida, a base em que o psicólogo está a trabalhar é diferente. A partir daqui, o próprio psicólogo vai ter dificuldade em dizer as mesmas coisas que diria se não estivesse num contexto mediático.”
‘O par ideal nunca existiu’
E há mais em causa. Desde logo, o pressuposto da intervenção. “Se é para pior, mais vale não fazer, porque não estaremos a trabalhar para o melhor interesse da pessoa”, atalha Miguel Ricou. Depois, há ainda a questão da responsabilidade. “Estamos a passar a informação de que é assim que se faz. Estamos a vender a ideia de que a intervenção psicológica é um conjunto de receitas e de banalidades que devemos fazer para correr bem. Vi um programa em que um participante dizia: ‘Nunca tive sorte nas minhas relações, vou deixar que a Ciência resolva’. O que é que ele vai pensar se não correr bem? Que é tão mau que nem a Ciência consegue ajudá-lo.”
Do lado da produção responde-se que os psicólogos presentes estão ali apenas a dar as suas opiniões – não estarão no programa como psicólogos, mas como pessoas. Um subterfúgio que não colhe na Ordem, conclui-se ao ouvir Miguel Ricou falar na “natural confusão” instalada na cabeça dos espectadores.
Quanto ao suposto match que a equipa de especialistas do programa da SIC fez para formar os casais, o presidente da Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos aponta vários equívocos: “Para começar, o do par ideal. Isso nunca existiu! Aliás, uma das coisas que fazemos em Psicologia é desmistificar isso. E a própria noção do sucesso de uma relação, o que é? Estamos a criar expectativas que não existem, e estamos a dizer que encontramos os matches a partir da avaliação das pessoas. Não faz nenhum sentido.”