O talento literário do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski é indiscutível. Mais duvidosa é a sua abordagem dos factos nos livros que escrevia, baseados nas suas impressões de reportagem.
A mais completa biografia sobre aquele que é, muitas vezes, considerado “o repórter do séc. XX”, chega agora a Portugal. Kapuscinski, Uma Vida (Assírio & Alvim), da autoria do também jornalista polaco Artur Domoslawski, faz luz sobre as sombras de um homem complexo e fascinante.
Estreia esta semana, ainda, a adaptação cinematográfica do livro Mais Um Dia de Vida (Tinta-da-China), no qual o repórter relata as suas aventuras em Angola.
A jornalista Alexandra Lucas Coelho, também ela correspondente em vários pontos do globo ao longo da sua carreira, escreveu um testemunho para a VISÃO sobre as suas impressões de Ryszard Kapuscinski, que conheceu há vinte anos. A escritora não tem dúvidas de que os livros do repórter polaco são “estupendos”.
Alexandra Lucas Coelho
Kapuscinski: o anti-gueto de Varsóvia
“Conheci Riszard Kapúscinki há 20 anos. Eu andava em reportagem por países da Europa de Leste, queria muito entrevistá-lo e ele recebeu-me na sua casa de Varsóvia. Uma sorte, tê-lo apanhado entre viagens. Estava a preparar um livro (creio que “Ébano”).
Não acho a entrevista online, será demasiada antiga para isso (1998, Junho ou Julho, revista “Pública”). Mas tenho duas imagens vívidas desse longo encontro. A primeira, é a expressão de Kapúscinski, como a sua cara de águia, o seu olhar agudo, enigmático faziam um todo com as palavras. Um homem invulgarmente inteligente, um homem que vira muito mais do que a maior parte dos humanos, um homem com segredos, como não? Ele estava com 66 anos e correra o mundo como repórter. Como um dos melhores repórteres do mundo, talvez o melhor. O que passava, claro, por grande escrita. Por ter engendrado o seu próprio género, inventado a sua forma: o Irão de “O Xá dos Xás”, a URSS de “Imperium”, a América Central de “The Soccer War”, a Etiópia de “O Imperador”, a Angola de “Mais um Dia de Vida”, tantas partes de África.
Não li a biografia dele, não faço ideia se em tempos foi espião. Sei que os livros são estupendos. E que certamente ele era um anti-colonialista, um anti-imperialista, um humanista, além de todo o faro, toda a curiosidade e todo o engenho necessários ao repórter que foi.
A segunda imagem que guardo desse encontro é a do sotão onde conversámos, o lugar a que ele sempre voltava para ler, estudar, escrever, espécie de arca de Noé. Mapas desdobrados; pilhas de livros em mesas, em estantes, no chão; jornais e revistas, cadernos e blocos; e sobretudo as cordas de roupa em diagonal, onde ele prendia notas, bilhetes, lembretes. O estendal de Kapúscinski: um anti-gueto de Varsóvia. E os livros que nos deixou, os livros que temos, são isso, um homem atravessando fronteiras, muros, cercos. Antítese dos guetos.
Há um pequeno livrinho com palestras dele, “Os Cínicos Não Servem para Este Ofício”. Sim.”