“Já sabes o que é que queres fazer como profissão?” Perguntas como esta desconcertam gente de todas as idades, mas particularmente quem está situado nas faixas etárias mais jovens, entre o fim do secundário e até chegar aos trintas. Por vezes, o dilema prolonga-se pela vida fora. Basta uma mudança laboral, um acidente de percurso ou uma situação imprevista que muda as regras do jogo para que se volte à estaca zero e se repense: afinal, o que fazer da vida? A profissional.
Em teoria, uma pessoa terá mais sucesso se aplicar os seus “talentos” e “competências”, em que estará, naturalmente, mais à vontade para ter um bom desempenho e preencher necessidades diversas, seja de pertença, estatuto, realização, enfim, para se sentir suficientemente bem, ou “boa”, a fazer o que faz e, até, “ser (bem ou mal) paga por isso”.
Na prática, parece que não é bem assim. Os testes vocacionais já tiveram melhores dias e há quem considere que será bem mais frutífero aproveitar as férias e pausas laborais – por vezes forçadas, devido ao fim de um contrato não renovado, por exemplo – para explorar atividades com caráter temporário. Em fases de crise vocacional, a digressão pelos motores de busca e redes profissionais também pode revelar-se útil para “pescar” ideias, contactos e oportunidades novas. É certo que dá algum trabalho, exige algum esforço, mas não mais do que aquele que requer a programação de uma viagem de férias, por exemplo. Isto mesmo é confirmado pelo coach doutorado em avaliação e inovação na carreira Marty Nemko, da universidade da Califórnia e autor do livro “Como fazer a sua vida: o que não nos ensinaram na escola” (tradução livre). Segundo ele, os diplomas e títulos académicos contam menos do que a experiência de vida, a inteligência emocional e a atitude destemida e “mãos à obra”. É no terreno que acontecem coisas, também as boas e algumas que nem sonhávamos se não estivessemos lá.
O posto de trabalho ideal existe?
Nos últimos anos, a o culto e a pressão para se fazer o que se gosta tem levado alguns psicólogos do trabalho a questionar todo o conceito. Primeiro, aquilo que somos ao longo da vida muda: as motivações, os interesses, as metas alteram-se e a vocação vai-se manifestando em diferentes registos. Depois, há coisas a que se poderia dedicar muito mais tempo por simplesmente saberem bem, fazerem bem e darem valor acrescentado à vida de uma pessoa, mas sem terem de ser convertíveis em salário, profissão e, menos ainda, passarem a ser geridas como uma carreira. Havendo quem o faça e se dê muito bem com a escolha, não é líquido que o desfrute proporcionado por certa atividade se mantenha se lhe aplicarmos outros parâmetros. Provavelmente, o posto de trabalho ideal existe mas no plano da fantasia. O melhor trabalho do mundo pode entediar e irritar alguém que não está bem na sua pele, independentemente do que está a fazer. O oposto também acontece: o trabalho mais rotineiro do mundo, ou incerto ou que envolve condições difíceis, pode ser gratificante se a atitude de lá estar, presente a 100%, superar tudo o resto: “Eu estou onde tenho de estar e aquilo que sou manifesta-se onde quer que eu esteja”. Chama-se a isto, em “psicologês”, locus de controlo interno. A atitude conta mais do que a situação e revela-se na situação. É o que também parecem dizer as filosofias orientais. Conclusão: o posto de trabalho ideal existe tanto como a vocação – ou vocações – que se mantêm inalteradas pela vida e ao longo da vida. Nota: não faltam casos em que grandes ideias surgiram a partir de uma atividade que nada tinha a ver com que era o trabalho ideal, ou a ocupação desejável.
Idealizar por aí
Outra crença errónea que costuma apanhar muita gente desprevenida assenta no princípio de que sabemos estar a fazer a coisa certa se o fizermos com paixão. Com um envolvimento emocional intenso e numa base regular. Basta lembrar o termo “engagement”, aplicado sobretudo no marketing digital. Há algumas décadas, e num contexto diferente, usava-se a expressão “vestir a camisola”. “Dar o litro” por uma causa, um projeto, alguém. Como se não houvesse amanhã. O que se sabe, contudo, a partir das experiências sobre comportamento humano, é que viver apaixonado num registo contínuo tende a ser uma má opção: mais dia menos dia, o mais certo é conduzir ao “burnout”.
Quanto tempo dura uma paixão? Em média, ano e meio, sugerem os resultados das investigações coordenadas pela antropóloga Helen Fisher, que estuda o comportamento amoroso há três décadas, na universidade americana de Rutgers. E porquê 18 meses apenas? Porque o funcionamento do corpo tem limites: a turbulência hormonal responsável pelos grandes desvios de rota, decisões e iniciativas que seriam improváveis noutras alturas, não é fisiologicamente sustentável para o equilíbrio emocional, mental ou físico. Talvez tenha a ver com isto o facto de o amor romântico apelar aos sentidos e fantasias do comum dos mortais, mas… no cinema, na ficção, num flirt de verão. Para algo mais significativo, substancial e de médio prazo, importa considerar factores como a possibilidade, a acessibilidade, a fiabilidade, conhecer e aceitar os limites e ter uma intenção do rumo a seguir. Ser consciente acerca disso dá trabalho, mas pode valer a pena.
Coerência v.s. Conveniência
Um projeto com asas ganha forma quando tem pernas para andar. Nas palavras do escritor e professor de sociologia italiano Francesco Alberoni, as paixões de perder a cabeça, ou o juízo, acontecem uma vez na vida. Ou duas, se tivermos sorte. Por mais estilhaços que traga o seu fim, essas “paixões” tornam-se inesquecíveis por terem funcionado como potentes catalisadores de mudança. Sem esses “surtos” passionais, capazes de deixar uma pessoa na fronteira entre o deslumbre e a insanidade, não haveria história, nem mudanças com impacto, capazes de levar uma pessoa a ousar dar saltos e crescer com eles, após sair da zona de conforto, arriscando quedas em nome da vontade de voar (e não de escapar ou fugir).
Antes de pensar nas profissões que têm “mais futuro”, no “estatuto” ou na “segurança” que lhe podem trazer e partir dessas coordenadas como válidas e fiáveis (hoje, pois amanhã ninguém garante), talvez seja interessante identificar e analisar o quanto já tem em si de, por exemplo, inovação, valor e solidez profissional. Valer-se daquilo que já tem – competências, talentos, participação em projetos locais ou comunitários, “jeito” para coisas que costuma valorizar apenas nos seus passatempos – e ser fiel à sua própria forma de funcionar, individualmente e com terceiros, pode fazer mais por si do que adaptar-se de forma cega à ideia que acha que outros (influencers, superiores, familiares e amigos) possam valorizar em si.