É o homem certo no lugar que poucos invejam – acabar com o flagelo dos incêndios e garantir que a tragédia do ano passado não se repete. Doutorado em Governança do Risco de Incêndio, com 25 anos de experiência em gestão florestal, obra científica publicada, profundo conhecedor das práticas internacionais, Tiago Oliveira foi escolhido para chefiar a Estrutura de Missão para a instalação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais, cargo que reporta diretamente ao primeiro-ministro. Não admira que, com estas credenciais, a sua nomeação tenha sido quase unânime, inclusive entre ambientalistas que ultrapassaram a desconfiança natural por Tiago Oliveira vir da “fileira das celuloses” – era o responsável pela proteção florestal do grupo Navigator.
É desta, depois dos 111 mortos de 2017, que alguém vai pegar o touro pelos cornos? “Pelo contrário”, responde o engenheiro florestal que recebe a equipa da VISÃO no seu gabinete forrado a mapas, gráficos e onde se destaca uma folha A4 com a frase: “Atenção, não cair na armadilha do combate.” “Isso seria atirar aviões para os incêndios. Vamos abordar o touro de cernelha: atacar o fogo de trás para a frente, usando os recursos de forma mais eficiente.” Inteligência, conhecimento, informação – as suas palavras-chave. Mais cabeça, porque está provado que com músculo não vamos lá. E isso traduz-se, entre outras coisas, numa inversão do investimento contra os incêndios: três quartos do reforço orçamental deste ano vão para a prevenção.
Não é a primeira vez que se promete um murro na mesa, após um ano mau, e não se cumpre. Mas desta vez, garante, é mesmo para abanar tudo, de alto a baixo. “Não há mais desculpas. Bateu no fundo, e a sociedade reconheceu que o combate não é solução e que a floresta tem de ser gerida de forma diferente.” Quais são, então, os planos de Tiago Oliveira para resolver o que é aparentemente irresolúvel?
1 – Remediar o possível já neste ano
O engenheiro florestal não foi chamado para apagar os fogos de 2018. Um problema que cresceu ao longo de décadas não se resolve em poucos meses. “Por mais que as pessoas se esforcem, por mais orçamentos que cheguem, é muito difícil alterar a paisagem de um ano para o outro.”
Não havendo tempo para uma operação de fundo, tenta-se estancar a hemorragia. “A GNR foi reforçada em 500 homens, com formação. O SEPNA [Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente, da GNR] tem mais 100 homens. Os sapadores florestais tiveram mais 200 e tal equipas. Há mais pessoas novas. Houve formação dos comandos distritais e de bombeiros.”
Mais importante do que o reforço de meios é ensinar cada um de nós a proteger-se, através, por exemplo, da campanha “Aldeia segura, pessoas seguras”. “Para garantir que não há mortes decorrentes de incêndios, as aldeias preparam-se elas próprias para um incêndio. Há uma pessoa que é o líder da povoação, que está em contacto com as entidades oficiais, recebe os avisos e os alertas, toca o sino a rebate. Já há 630 aldeias envolvidas, e temos o objetivo de chegar às seis mil. A ideia é ensinar as pessoas a aguentarem-se em suas casas, a encontrarem o local de refúgio na sua aldeia ou a saírem retiradas caso seja essa a melhor opção. O Instituto de Conservação da Natureza e Florestas [ICNF] vai também avançar agora com uma campanha de alteração de comportamentos, apontada às queimas e queimadas.”
2 – Não deixar esquecer 2017
Tiago Oliveira acredita que os dramas vividos em junho e em outubro do ano passado mudaram finalmente a perceção dos portugueses sobre o que está na base dos incêndios. “Há uma consciência da vulnerabilidade do território e o reconhecimento de que o problema não se resolve com mais aviões e mais bombeiros. O que importa aqui salvaguardar é que a memória e o respeito pelas vítimas são homenageados pela capacidade de fazer melhor. De fazer aquilo que não foi feito e, imaginando que a campanha corre bem, esta e a seguinte, saber que o trabalho não está concluído enquanto não conseguirmos ter um sistema que executa e apresenta resultados consecutivamente. Isso implica perseverança, liderança e manter um enfoque operacional quando a memória desta tragédia começar a desvanecer-se. Não podemos perder o ímpeto de reforma. A tragédia do ano passado permite-nos refletir sobre duas coisas: o modelo de combate não resolve e temos de apostar numa lógica de prevenção, com mudanças estruturais de fundo.”
3 – Revolucionar o combate aos incêndios
O modelo atual de gestão de fogos é obsoleto, diz o presidente da Estrutura de Missão. “Hoje, temos três pilares: um previne, outro fiscaliza e outro combate. Quem combate, combate. Quem fiscaliza, fiscaliza. Não há uma integração.
O que estamos a tentar fazer é ir ao encontro de cada um dos pilares e dizer: vamos conversar, trocar informação, garantir que não há falhas na cadeia. É para isso que temos uma linha de trabalho, com 75 projetos espalhados por 11 ministérios. E há que montar um sistema de avisos e de alertas que analise recorrentemente a informação. Quem decide é o comandante, mas este terá informação para decidir melhor, de uma forma integrada e ouvidas todas as partes. Esse modelo não existia e vai existir neste ano. Onde é mais provável haver incêndios ou reacendimentos hoje? É aqui? Então o comandante movimenta os recursos para esses locais.” Uma das peças fundamentais é ter o melhor conhecimento disponível sobre o clima até porque dois terços da variação da área ardida são explicados pela meteorologia.
“Vamos ter um meteorologista a tempo inteiro na Proteção Civil, formado em incêndios, em perceber os indicadores, o histórico, para dizer quando e onde a meteorologia vai trazer uma chatice.”
4 – Fazer fluir toda a informação existente para que sejam tomadas as melhores decisões
O sistema de combate aos incêndios sempre foi estático, aponta Tiago Oliveira. Torná-lo flexível, usando os dados de várias áreas para aprontar os meios, é um dos objetivos. “neste ano já temos mecanismos que nos permitem movimentar os recursos em função da perigosidade, do risco meteorológico, dos locais onde se espera que o fogo tenha um comportamento mais severo. E é nesses sítios que os recursos devem estar a funcionar.
Exemplo: em Pedrógão, a previsão meteorológica era muito má e implicava um comportamento extremo do fogo logo nos momentos iniciais. Havia recursos que poderiam ter-se aproximado, ao passo que havia locais mais frescos, onde os meios habituais, uma ou duas viaturas, resolviam uma ignição.
É necessário ajustar a intensidade do ataque inicial às condições meteorológicas. Isso implica definir critérios de movimentação, antecipar onde é previsível que possa haver incêndios de maior dimensão. Por exemplo, 20% dos fogos são reacendimentos.
Já estamos a enviar todos os dias, do ICNF, informação para os postos de coordenação da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) com os incêndios do dia anterior que têm potencial para se reacenderem. Esses reacendimentos não se resolvem com um avião. Resolvem-se com uma enxada. Com o comando a dizer: ‘Estas equipas ficam ali.'” Há também outro tipo de meios aéreos que, sendo bwem mais pequenos dos que os Canadair, podem ser aproveitados de modo mais eficaz. “Hoje temos avionetas de coordenação de combate aéreo, e a informação recolhida do ar vai permitir melhorar o sistema. No futuro, isso será feito por drones.
A ideia é procurar reacendimentos, novas ignições e coordenar a partir do ar, para que as indicações sejam mais certeiras. Essa informação vai permitir decidir melhor no terreno.”
5 – Aprender com quem sabe e mudar de estratégia
Ao fim de tantas derrotas, está na hora de assumir que talvez não saibamos tudo sobre o combate às chamas, por mais experiência que tenham os bombeiros. “Há que reconhecer que foram ultrapassadas as barreiras cognitivas com que estávamos habituados a trabalhar. O incêndio de 15 de outubro mostra isso. Nunca tinha havido fogos com aquele nível de secura, no fim de uma seca prolongada, com aqueles ventos. Portanto, não havia experiência anterior que permitisse adequar o comportamento. Hoje sabemos que não valia a pena ter tentado combater aquele incêndio, mas organizar processos de proteção das populações.” Portugal tem estado a assinar protocolos de cooperação com peritos de outros países, como o Chile, os EUA, a Austrália, o Brasil, para os portugueses apreenderem técnicas diferentes porque há coisas que outros fazem melhor do que nós. “No estrangeiro, estão muito treinados a fazer o dry fire fighting [combate seco], a usar as máquinas de arrasto, não a atacar as chamas, mas a extinguir o risco de incêndio. Isso leva a um posicionamento de combate tático, mais manhoso, que implica capacidade de antecipação.
Já neste ano, vamos colocar peritos nacionais e internacionais em lugares-chave da organização.”
6 – Distribuir as pessoas de acordo com as suas capacidades
Já se tornou um chavão da nova abordagem aos incêndios: quem combate, previne; quem previne, combate. “Se apostássemos só num sistema de combate, íamos ter pessoas em abril e maio prontas para combater incêndios, mas sem fogos”, justifica Tiago Oliveira. “O que essas pessoas ficam a fazer? Quem está a fazer a prevenção durante todo o ano, durante cinco ou seis semanas fica mais disponível para apoiar ao combate, mas durante os outros meses está a limpar a vegetação. Num ano mais seco, essas equipas vão estar mais focadas no combate, porque vai haver mais dias em que isso é necessário. Num ano mais húmido, estão a limpar mato. E assim, sim, estamos a ganhar vantagem sobre o território.” O caminho é a profissionalização de quem combate os fogos ou mais do que isso. “Os bombeiros voluntários vão estar sempre envolvidos. Todos somos poucos para resolver o problema, e todos temos um contributo a dar, cada um na sua especialidade e na sua competência. Mas tenho de mostrar que sou proficiente a fazer uma determinada tarefa, perante um comité.” Por outras palavras: um mecanismo de avaliação e credenciação, tal como existe nos EUA e em Espanha, está a ser montado e deverá estar já parcialmente ativo em 2020.
7 – Aceitar que o território mudou e adaptarmo-nos a esta nova realidade
O tempo não anda para trás. O abandono do Interior, que começou em força nos anos 60, transformou as áreas agrícolas em matagais, e potenciou a bombarelógio que temos atualmente. Mas Tiago Oliveira não é um saudosista.
“Mais competência e capacidade de gestão? Sim. Mão de obra pura e dura? Não. Porque então teriam de ser milhares de pessoas a limpar vegetação. Queremos voltar a isso? Aos anos 60? Em que as pessoas tinham uma vida muito dura, comiam o que a terra dava e não aspiravam a ter mais nada? Não é esse o futuro. O futuro é feito com mais conhecimento e menos pessoas no território.
Implica ter o Estado no terreno, em ligação com os municípios e com o associativismo florestal, num modelo de governança colaborativo e transparente. Não haver pessoas tem a vantagem de estas não estarem com comportamentos de risco e/ou expostas ao risco. Para ter floresta, não preciso de muita gente, preciso é de ter intervenção pontual com escala, feita com as ferramentas certas: caça, gado, fogo controlado e maquinaria.” Não se trata de uma questão de quantidade, mas de qualidade.
“Não preciso de muitas pessoas.”
Vai haver mais floresta e áreas contínuas de pasto, porque o território está a ser abandonado, está a naturalizar-se. Como é que vamos lidar com isto? É com salários de dois mil euros. Porque quem vai para o Interior quer ser recompensado. Não é com o salário mínimo que vamos ter hordas de pessoas a limpar floresta.
Precisamos de intervenções planeadas, em que as pessoas são bem remuneradas. E precisamos também de alterações legislativas, melhorando, por exemplo, a lei de limpeza à volta das casas. Há sítios em que faz sentido limpar cinco metros; noutros, 200 metros, em função da vegetação, do território e da vulnerabilidade da habitação ou da indústria.”
8 – Tornar a floresta economicamente viável
Portugal tem as mais altas produções primárias vegetais da Europa, sublinha o engenheiro florestal. “A conjugação da quantidade de dias de luz com dias amenos, boa precipitação e calor permite que as árvores cresçam. Muito mais do que na Noruega, na Suécia, na Alemanha, em Inglaterra.” O problema é a fragmentação da propriedade, que torna o investimento pouco atrativo, em que os custos não compensam. Mas há solução.
“Ainda recentemente estive a falar com um produtor de ovelhas e de cabras, em Oliveira do Hospital, que precisa de escala.
Precisa de ter um rebanho de duas a três mil cabeças para conseguir remunerar três pastores com bons salários.” Há formas de conseguir essa escala. “O que faz sentido é olharmos para as potencialidades do território e apostarmos na diversificação: floresta, turismo de Natureza, frutos da floresta (castanha, bagas, etc.), muita pastorícia, muito gadomiúdo, cabras-monteses, cabras tradicionais portuguesas, caça, veados. Boa gestão, com fogo controlado durante o inverno, maquinaria a trabalhar nos sítios corretos. Tudo isso é parte da solução.” Seria mais simples se 85% doterritório não estivesse nas mãos de privados. “O Estado não pode fazer tudo, porque não tem muita área. Administra zonas em cogestão com os baldios, cerca de 500 mil hectares. Pode ser o motor de muita coisa, mas todo o trabalho tem de ser feito em parceria com o dono da terra wque é o grande detentor da solução. Temos de levar a gestão ativa a todo o território, desde o montado de sobro ao eucaliptal e ao pinhal, em que as indústrias são parceiras ativas, numa lógica de exploração sustentada.”
9 – Não perseguir moinhos de vento
O discurso dos incendiários com interesses ocultos continua a dominar o debate sobre as causas dos fogos, o que é contraproducente e desvia as atenções das verdadeiras causas.
“No calor do momento, todas as desculpas de natureza social, como o incendiarismo, ajudam a desresponsabilizar quem tem de fazer as coisas bem feitas”, critica. “O homem da motorizada vermelha a lançar fogo? Isso eu nunca vi, e andonisto há 20 anos.
Foi uma vez de helicóptero atrás de um potencial incendiário, que não ia de moto, mas de carro, e apanhámo-lo. Há, de facto, outra circunstância, de pessoas que se excitam com as chamas nos ecrãs, e eu acho que isso devia ser evitado ao máximo pelos meios de comunicação social, porque está demonstrado que estimula o incendiarismo. E há outras razões: alcoolismo, perturbação mental. Fora isso, poderá ter havido, no passado, pontualmente, uma ou outra circunstância desse género [incêndios com motivações económicas], mas não é isso que explica a dimensão do fenómeno.
Essa deve-se ao uso negligente do fogo, aos reacendimentos, ao uso de maquinaria que faz faíscas, aos travões dos comboios, às linhas elétricas. Tudo isso são causas de incêndios, e podemos trabalhar na sua prevenção.
As estatísticas são claras: a grande percentagem de áreas ardidas está associada a estes fenómenos.”
10 – Enfrentar o desafio das alterações climáticas
Em 1888, apenas 7% do território estava arborizado. Num século, a área florestal aumentou para 37%. Entretanto, de 1990 para cá, reduziu-se para 33%.
“Estamos a perder floresta porque não sabemos gerir a vegetação nem o fogo”, diz Tiago Oliveira.
E, mantendo este caminho, vamos continuar a perder até porque as alterações climáticas vão dificultar–nos ainda mais a vida. “Está a aumentar o risco de incêndio.
Esta variabilidade, em que temos chuva até tarde, quase tropical em maio e junho, e depois uma secura e uma subida de temperatura muito rápida, aumenta o número de dias em que a floresta pode arder de forma intensa. Isto vai ser cada vez mais difícil.
Temos de nos munir das ferramentas para conseguir gerir a vegetação para que as árvores sobrevivam. Mas isso só corre bem se nos convencermos de que o combate não é o caminho.
Meti-me nestes trabalhos de missão não porque goste de combater fogo. Eu gosto é de ter árvores. A minha filha e os meus netos vão precisar da floresta. Estou nisto porque acredito que o País tem viabilidade se tiver floresta. De outra forma, estamos a fechar os olhos, a não fazer nada e a esperar que o deserto se aproxime a uma velocidade estonteante. Porque, senão, o País em 50 anos fica careca. Ao ritmo a que está a arder, com as políticas desconcertadas de gestão doterritório, as árvores que temos duram 20 anos.
É isto que queremos?”