Nota prévia: Por motivos éticos, e de acordo com as recomendações para prevenção do suicídio, a VISÃO optou por omitir o nome do medicamento letal e o seu princípio ativo e os endereços dos sites onde pode ser comprado.
Um homem de cabelos brancos e rosto sereno está de mãos dadas com a mulher, sentado num sofá. Tem 71 anos e esclerose lateral amiotrófica, mas ainda conserva mobilidade suficiente para andar com apoio pelo próprio pé e está perfeitamente consciente. A voluntária da Dignitas, a organização suíça que promove o direito ao suicídio assistido e à morte com dignidade, passa-lhe para a mão um copo com uma bebida branca. O frasco da dose letal está em cima da mesa chamemos-lhe Z. Engole o medicamento, come um chocolate e bebe alguns goles de água. Segundos depois, a cabeça pende sobre uma almofada de viagem. Peter Bradley começa a ressonar e cai num estado de inconsciência, antes do coração parar para sempre. Morre em minutos. A cena, de Terry Pratchett: choosing to die, um documentário de referência produzido para a BBC Scotland, foi gravada numa clínica na Suíça, mas repete-se hoje por todo o mundo com doentes graves que, por mãos próprias, decidem comprar a droga e pôr termo à vida, graças ao enorme mercado negro que cresce em torno da morte.
O medicamento, um barbitúrico, é a droga número um utilizada para a prática do suicídio assistido e da eutanásia fora dos meios hospitalares.
Ficou conhecida como “peaceful pill” ou a “droga tranquila”, e apesar de ser proibida na esmagadora maioria dos países desenvolvidos, incluindo Portugal, pode facilmente ser comprada online por quem procura um fim indolor e vive em sítios onde a prática está criminalizada.
Há um negócio eletrónico em torno da morte cada vez mais fluorescente nos últimos anos. Comércio que envolve a droga propriamente dita, mas também os kits para testar a sua pureza e eficiência, e até livros que indicam os vendedores fidedignos onde ela pode ser comprada. Contactado pela VISÃO, o Instituto de Medicina Legal confirma a existência de mortes através desta droga específica em Portugal. “Houve quatro casos entre 2009 e 2015, dois deles suicídios (em 2009 e 2014), ambos na região Norte, atesta João Pinheiro, vice-presidente. “Temos informação de que a droga de um dos suicídios terá sido adquirida na Tailândia, podendo duvidar-se da sua pureza. Certo é que apareceu no organismo em dose considerada letal”, afirma o instituto. Números que, dizem os especialistas, pecarão por defeito. A droga, vem num pacote discreto e facilmente escapa aos controlos aduaneiros e a sua presença só é detetada em autópsias, que muitas vezes não são realizadas em doentes terminais.
“100% GARANTIA DE OBTER OBJETIVO”
Através de uma pesquisa na net conseguimos entrar em contacto com vários intermediários. Alguns até escrevem numa tentativa de português, que pode bem ser de um qualquer tradutor online.
Mas o que impressiona é a crueza do discurso: “Olá, temos alta qualidade de Z e os nossos preços são os melhores. Não há necessidade de receita médica antes da compra. Abaixo estão os preços:
100 ml Z líquido = 150EUR
250 ml Z líquido = 180EUR
15 g de pó Z = 150EUR
20 g de pó Z = 275EUR
40 g de pó Z = 300EUR
Condições de pagamento: Western Union, MoneyGram Tempo de entrega: 2 dias de entrega courrier especial Expedição: 100% discreto e durante a noite Embalagem: Muito seguro e discreto Remetente: DHL, EMS ou Fedex (Nossos parceiros de correio)” A conversa é fluida, a resposta pronta. O vendedor apresenta-se como um norte-americano da Geórgia, de onde, diz, a droga será expedida. “O transporte é meticulosamente planeado, embalagem é feita com profissionalismo para o sucesso de entrega do arquivo. Também fazemos embalagem discreta, nenhum animal ou autoridade pode ditar o que está no pacote. Tem 100% de garantia de obter o objetivo. Recomendo que tome a Z líquida e certifique-se de tomar duas garrafas de 100 ml ou uma garrafa de 250 ml para ter certeza do efeito. Com apenas 100 ml você pode obter um coma com graves danos.
Pode misturar com um pouco de vodka para aumentar a velocidade e eficácia. Além disso, você precisa passar fome durante algumas horas antes de tomar a droga.” Explica que tem uma “vasta base de clientes” e parcerias estabelecidas nas indústrias farmacêutica e biotecnológica.
“Envio com regularidade o produto discretamente para França, Itália, Reino Unido, Canadá, Rússia, Ucrânia, Brasil, Polónia, Espanha, Austrália, Nova Zelândia, Portugal, Alemanha, Malásia, Camboja, Coreia do Norte e do Sul, Japão, etc.” A tirada de despedida não podia ser mais irónica para quem equacione efetivamente matar-se: “Ansioso para a construção de uma parceria de longo prazo.”
UM NEGÓCIO PRÓSPERO
O mercado negro da morte desenvolve-se sobretudo a partir de 2008, quando Philip Nitschke, o polémico médico australiano que fundou o movimento Exit Internacional, um dos mais agressivos grupos pró-eutanásia, começou ativamente a fazer campanha em defesa desta alternativa como solução para quem decide morrer (ver entrevista nas páginas seguintes). O Dr. Morte, como ficou conhecido, confirmou à VISÃO que vários portugueses já o procuraram para obter a droga letal. E que existe um mercado negro na distribuição deste produto e este opera em Portugal.
“A Exit tem mais de 30 registos na nossa base de dados com morada em Portugal. Cerca de metade dos membros inscritos compraram o nosso livro, e geralmente, todos o fazem com o fim de obter a droga”, afirma. À pergunta sobre se ocorreram mortes em Portugal, responde “provavelmente sim”. “Sabemos que alguns indivíduos a receberam e, como nunca mais ouvimos falar deles, acreditamos que provavelmente a droga terá sido usada”, assume.
Como explicou à VISÃO Rosário Órfão, presidente da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia, a Z é um barbitúrico e anestésico geral utilizado no passado em meio hospital, mas que hoje não está autorizado pelo Infarmed para venda em Portugal em humanos nem faz parte do formulário de fármacos hospitalares. Além dos medicamentos que só são estritamente comercializados em farmácias hospitalares, os restantes só podem ser adquiridos nas farmácias, pelos distribuidores por grosso e pelas entidades que sejam autorizadas, pelo Infarmed, a adquirir diretamente medicamentos. A aquisição pela internet é ilegal e está sujeita a coimas entre os 2 000 e os 180 000 euros, e a moldura penal é grave: pode dar prisão de um a cinco anos, tal como está estabelecido no artigo 25º do Regime Jurídico do Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas.
No entanto, a droga ainda é produzida e comercializada em várias partes do mundo, sobretudo para veterinários com o fim de anestesiar ou eutanasiar animais de grande porte. É o caso de Portugal, onde a Z ainda pode ser usada neste âmbito. “Há medicamentos veterinários que contêm a mesma substância ativa, mas são de uso exclusivo por médicos veterinários e adquiridos nos distribuidores autorizados pelo Infarmed, mediante receita médico-veterinária especial e seguindo os requisitos obrigatórios para a aquisição de estupefacientes”, confirmou a Direção Geral de Alimentação e Veterinária.
Como sempre, onde há procura e uma lei restritiva, surge a oferta ilegal e floresce um comércio por baixo do balcão. Nos últimos anos, cresceu um negócio de importação desta droga com destino à Europa e aos Estados Unidos, provinda sobretudo do México, Peru, Tailândia e, nos últimos tempos, também da China, onde pode ser adquirida com mais facilidade por veterinários.
Rosário Órfão não tem dúvidas: é perfeitamente possível a Z ser utilizada em Portugal “pelo fácil acesso” que se tem a ela. “Há várias páginas eletrónicas que a disponibilizam. Todas apresentam e-mail e telemóvel. É fácil a qualquer pessoa adquirir tais medicamentos de venda proibida”, confirma a especialista.
Não existe propriamente uma dose recomendada para a toma da Z. “Com 10 g consegue-se uma morte tranquila. As autoridades suíças geralmente oferecem 12 g”, explica Nitschke. Os preços oscilam bastante consoante a proveniência.
“A Z pode ser adquirida ao balcão no México por cerca de 90 euros por 100 ml (6,5 g), no Peru ou na Bolívia cerca de 45 euros. Na China ronda os 500 euros por 25 g. Quando chega ao consumidor final, a droga vinda do México é vendida a cerca de 500 euros por 12 g. Os preços estão constantemente a mudar e nós mapeamos isso e publicamos no nosso livro digital”, explica Nitschke. Livro, que diga-se, é vendido pela Exit International por 75 euros, na versão atualizada online seis vezes por ano, e por 30 euros, na versão impressa (e desatualizada) de 2014.
Embora o seu uso seja ilegal na maior parte dos países, a facilidade e descrição com que é possível usá-la faz com que tenha sido mesmo passada para dentro dos hospitais públicos por particulares. Aconteceu na Austrália, garante Philip Nitschke, onde três familiares de doentes graves infiltraram a droga letal em estabelecimentos hospitalares durante o ano de 2015, onde foi ingerida. O Dr. Morte identificou mesmo os hospitais em questão: Royal Prince Alfred e Concord, em Sydney, e o Austin, em Melbourne.
“EQUACIONO SUICIDAR-ME COM A Z”
Nada que surpreenda Laura Ferreira dos Santos, 57 anos, fundadora do movimento Direito a Morrer com Dignidade e a voz mais ativa no movimento pró-eutanásia em Portugal. “Tinha ideia que havia portugueses a matarem-se com a Z, acontece um pouco por todo o mundo. Só atesta o grau de desespero a que as pessoas chegam é isto que a criminalização faz: aumentar-lhes o seu sofrimento e empurrá-las para estas soluções fora da lei”, atesta. Ela própria doente oncológica desde 2001, faz agora, pela primeira vez, uma revelação dura, mas objetiva: “Eu própria estou entre a espada e a parede. Tenho metástases ósseas e vivo atormentada com dores permanentes e insuportáveis. Tenho acesso a um produto letal, sei onde arranjar a droga e equaciono usá-la.” (testemunho na página 44) Solução que, no entanto, considera indigna e desumana. “Morrer sozinha para não incriminar alguém é muito triste”. Esse é de facto um perigo real: a ajuda ao suicídio é punível com pena de prisão até três anos (ver caixa “O que diz a lei?”). E as coisas podem correr mal. “É raro, mas acontece.
Já ouvi falar de casos no estrangeiro de quem vomitou e teve, em desespero, de engolir o próprio vómito. Ou de pessoas que não morreram em minutos, mas sim só ao fim de quatro dias! É bom que se diga isto claramente”, sublinha a investigadora de Filosofia na Universidade do Minho.
A compra de medicamentos pela internet é, claro, extremamente arriscada. Desde logo, não é garantida a sua eficácia. “Acarreta vários riscos, nomeadamente a ausência da substância ativa, a sua presença numa quantidade inadequada e a possibilidade dos fármacos estarem contaminados com substâncias tóxicas”, explica Rosário Órfão. Os sites que oferecem esses medicamentos são “clandestinos”, e, portanto, não há como garantir a qualidade do medicamento. Além disso, a par do mercado negro surgiram também esquemas de burla construídos para caçar pessoas especialmente vulneráveis, que muitas vezes exigem o pagamento prévio e as pessoas nunca chegam a receber qualquer produto.
A droga pode também chegar em versão contrafeita.
Carlos Maurício Barbosa, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, que integra o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, não se surpreenderia que fosse esse o caso. “No ano passado, 115 países apreenderam mais de 20 milhões de embalagens de medicamentos contrafeitos com o valor de 72 milhões de euros.” Só em Portugal, no âmbito da operação Pangea, o Infarmed fez a inspeção de 6140 embalagens, das quais 1051 foram apreendidas.
Riscos enfatizados pela Dignitas, a entidade conhecida pelo apoio ao suicídio assistido na Suíça, país onde esta prática está legalizada.
Contactada pela VISÃO, a Dignitas esclarece que “advoga e recomenda uma abordagem integrada que combina cuidados paliativos, prevenção do suicídio e o cumprimento de todas as diretivas legais para a prática do suicídio assistido. Nunca recomendamos que se compre uma substância online, onde não se pode ter a certeza do que se está a adquirir, se é que se recebe, sequer, alguma coisa depois de pagar. Não recomendamos suicídios solitários. Só o recomendamos acompanhado e 100% seguro, para o qual exista tempo de discussão e preparação e envolvimento da família e amigos do doente, e onde todos possam refletir e despedir-se, estando presentes até à última hora.” A instituição, que conta com 20 portugueses membros (nem todos, ao contrário do que foi noticiado por cá, pediram ou aguardam para morrer, alguns são apenas apoiantes da causa) já ajudou mais de 2 100 pessoas a morrer na Suíça desde 2008 com o barbitúrico Z. Quatro destes eram portugueses, em relação aos quais existe apenas uma certeza: nenhum encontrou resposta no seu país seja ela qual for para resolver o seu sofrimento.
O NEGÓCIO DA MORTE
Tudo se compra e tudo se vende na internet para quem pensa praticar eutanásia ou suicídio assistido
Os livros da causa
FINAL EXIT – O polémico livro lançado em 1991 por Derek Humphry, ativista próeutanásia fundador da Hemlock Society na Califórnia, ensina as “questões práticas” para a morte assistida. Foi traduzido em 12 línguas e esteve 18 semanas na lista de bestsellers do New York Times. Custa 15 euros mais portes de envio.
PEACEFULL PILL HANDBOOK – Livro lançado por Philip Nitschke (ver entrevista) e Fiona Stewart, da Exit. Inicialmente publicado nos Estados Unidos em 2006, explica os vários métodos para morte assistida e suicídio. Custa 40 euros a versão impressa. A versão online (77 euros), a mais procurada, é atualizada seis vezes por ano com os vendedores de confiança da droga Z
Kit de confiança
Teste para controlo da qualidade dos barbitúricos, para confirmar a sua pureza e eficácia. Custa 32 euros onlin
O QUE DIZ A LEI?
Em Portugal, a eutanásia ou o suicídio assistido estão criminalizados no Código Penal.
Homicídio privilegiado (art. 133º)
Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Homicídio a pedido da vítima (art. 134º)
1. Quem matar outra pessoa determinado por pedido sério, instante e expresso que ela lhe tenha feito é punido com pena de prisão até 3 anos.
2. A tentativa é punível. Incitamento ou ajuda ao suicídio (art. 135º)
1. Quem incitar outra pessoa a suicidar-se, ou lhe prestar ajuda para esse fim, é punido com pena de prisão até 3 anos, se o suicídio vier efetivamente a ser tentado ou a consumar-se.
2. Se a pessoa incitada ou a quem se presta ajuda for menor de 16 anos ou tiver, por qualquer motivo, a sua capacidade de valoração ou de determinação sensivelmente diminuída, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Propaganda do suicídio (art. 139º)
Quem, por qualquer modo, fizer propaganda ou publicidade de produto, objeto ou método preconizado como meio para produzir a morte, de forma adequada a provocar suicídio, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
LÉXICO
Morte assistida
Tem duas modalidades: a eutanásia ou o suicídio assistido, e é efetuada por um médico ou sob a sua orientação ou supervisão
Eutanásia
A origem da palavra significa “morte boa” (eu = bom; thánatos = morte). Trata-se do ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento a um paciente. Importa uma conduta ativa de um terceiro de forma a provocar o ato que causa a morte.
(Exemplo: injeção letal dada por alguém num doente inconsciente)
Suicídio assistido
Ato de auxiliar alguém a matar-se, sendo que o ato causador da morte é praticado pelo próprio e não por terceiro. (Ex: ingestão de droga letal pelo doente [ou outro])
Ortotanásia
Também chamada de eutanásia passiva. Trata-se da limitação ou suspensão do esforço terapêutico que prolonga a vida de doentes terminais.
(Exemplo: supressão da alimentação artificial)
* com Isabel Nery
(Artigo publicado originalmente na VISÃO 1199, de 22 de fevereiro de 2016)