Estação de comboio, aí vai ele: monitor num braço, torre do computador no outro, teclado, rato, auscultadores e saco-cama na mochila. O mínimo indispensável rumo a três dias de competição ao vivo, olhos nos olhos com os rivais. Destino: uma sala qualquer improvisada por esse País fora. Dormida: “debaixo da mesa”, a sonhar com o grande prémio para o vencedor, um portátil.
As aventuras de equipamento às costas, nos seus tempos de juventude, despertam gargalhada fácil em Ricardo Pacheco, agora a caminho dos 32 anos e já pai de uma criança. Como não rir do malabarismo forçado daquelas viagens no Alfa Pendular, a partir da sua “base” em Guimarães, atrás dos melhores prémios nos torneios de Counter Strike? À distância de uma década, sobram todos os motivos e mais um: o videojogo catapultou-o, em 2015, para uma carreira internacional e fez dele jogador profissional.
Conhecido no meio pelo cognome Fox (raposa), já representou as duas melhores equipas do mundo da atualidade e disputou torneios que atribuem prémios de um milhão de dólares (cerca de €800 mil), com estada incluída em hotéis de luxo. Nunca mais precisou de levar o monitor nem o computador. Os tempos mudaram e a brincadeira tornou-se assunto sério. “Desde que comecei a jogar por equipas estrangeiras, tive sempre salários entre os €7 mil e os €12 mil mensais. Dá para viver bem”, assume o ex-funcionário de uma empresa de segurança privada.
Não se pense que o vimaranense é caso único na comunidade nacional de gamers. Entre o Counter Strike (CS) e o League of Legends (LoL), os dois videojogos favoritos em Portugal e dos que atraem mais fãs e receitas no mundo, há pelo menos 15 portugueses ao serviço de clubes espanhóis, franceses, turcos e polacos. Nem todos são jogadores: Simão Oliveira, 20 anos, trabalhou em 2017 como analista de adversários para a equipa de LoL do Paris Saint-Germain e já se comprometeu com outra para 2018, sempre a partir de casa, em Famalicão; André Guilhoto, 23, chegou agora à Alemanha para treinar o Schalke 04. “Gostaria de ficar por mais uns cinco anos pelo menos”, diz o Mourinho do LoL, como lhe chamam por cá, onde tem à sua espera um plano B na área da engenharia informática.
Os clubes de futebol europeus, à imagem das equipas americanas da NBA, já não passam ao lado deste fenómeno em crescendo, com quase 200 milhões de entusiastas e outros tantos seguidores ocasionais, segundo o mais recente relatório da empresa de estudos de mercado Newzoo. Por entusiastas, na sua maioria dos 10 aos 35 anos, a consultora especializada em jogos eletrónicos entende as pessoas que seguem regularmente competições de videojogos em direto, sobretudo na internet mas também em cadeias televisivas como a ESPN.
Por cá, a Federação Portuguesa de Futebol avançou no verão passado com um departamento de eSports para organizar torneios do simulador FIFA, com a participação de clubes como Sporting, Boavista ou Estoril. A Sporting TV já transmitiu um dos jogos em direto e a experiência é para continuar, enquanto a estação pública lançou o RTP Arena, um canal online só dedicado aos desportos eletrónicos.
É todo um novo mundo que se abre, capaz de esgotar recintos como o Madison Square Garden, a famosa sala de espetáculos de Nova Iorque, ou o Estádio Olímpico de Pequim, o mesmo onde Usain Bolt se apresentou aos comuns mortais e Nélson Évora voou para dar o ouro a Portugal no triplo salto faz agora dez anos. Talvez não sejam necessários outros tantos para os eSports se tornarem um desporto olímpico, a par do atletismo e da natação. Em 2022, nos Jogos Asiáticos (uma espécie de Olímpicos, mas só daquele continente), já terão direito a pódio e a medalhas.
Uma casa para os “Gamers”
Clickfiel Arena, Penafiel, 3 de fevereiro. Como manda a tradição, a primeira jornada da Liga Portuguesa de LoL disputa-se ao vivo, com as oito equipas presentes e um duelo a cada três horas. A escolha para o arranque da quarta edição recaiu neste estúdio criado especificamente para competições de eSports, pequeno mas acolhedor, situado nas traseiras de um bloco de apartamentos.
Decorado com 30 pufes e seis sofás para a assistência, que pode acompanhar a ação em dois ecrãs de dimensão apreciável, o espaço dispõe de uma dezena de computadores para aquecimento antes da prova de fogo. Ao centro, cinco jogadores de cada lado alinham-se no palco. Não há sorrisos.
Auscultadores na cabeça, os diálogos sucedem-se entre companheiros de equipa. Nenhum tem mais de 25 anos, 16 é a idade mínima para se poder participar. A tensão é libertada em forma de gritos, quando a vitória está iminente ou a derrota já espreita, até à estocada final.
Todos os jogos são transmitidos em direito na internet, através da Twitch – a plataforma digital adquirida em 2014 pela Amazon, por mil milhões de dólares, que se tornou o principal veículo de difusão dos videojogos –, com imagens escolhidas por uma equipa de realização, posicionada atrás do palco. A startup Inygon, promotora da prova, começou a atividade com três pessoas e já vai em 19 trabalhadores, dez dos quais em part-time. Numa zona mais lateral, dois apresentadores relatam com frenesim as incidências, como se de um jogo de futebol se tratasse. No final, há comentários e análise num espaço de entrevistas, do lado oposto à mesa dos snacks, onde 21 pizzas médias vão desaparecendo de cena, umas atrás das outras. Também há sandes, água, sumos, leite com chocolate e bebidas energéticas.
Os elementos do clube For The Win, crónico candidato ao título, preferem ir almoçar fora. Enquanto saboreiam francezinhas, desvendam um pouco da sua vida. São cinco estudantes universitários, com idades entre os 18 e os 23. Vêm de Portimão, do Barreiro, de Aveiro, Famalicão e Santo Tirso, mas treinam-se juntos quatro a cinco horas por dia, cada um em sua casa. Têm cláusulas de rescisão nos contratos (simbólicas, dizem), salário-base, deslocações e estadas pagas pelo clube, um dos mais “ecléticos” do panorama, com 18 videojogos e mais de 50 equipas, além de uma vasta comunidade de gamers ocasionais. Os jovens falam de haver uma “grande discrepância a nível salarial” entre os clubes, que pagam dos €50 aos €600 mensais, com alguns a evidenciarem dificuldades em ter as contas em dia.
Não é o caso dos K1ck, a mais antiga organização de eSports em Portugal e atual tricampeã nacional de LoL, conhecida por estar uns degraus acima da concorrência na folha salarial. A equipa passou 18 dias na Lituânia, a preparar a nova temporada, e ainda neste mês deve mudar-se para uma casa no Porto, onde os jogadores poderão dedicar-se a tempo inteiro à sua profissão. É um conceito seguido pelas melhores equipas do mundo, mas nunca tentado em Portugal. Neste ano, pela primeira vez, o vencedor da primeira volta da liga nacional apura-se para uma prova europeia que dá acesso à competição rainha na Europa, a LCS, e os K1ck ambicionam entrar nessas lutas.
“É o ano da revolução, o arranque para darmos o salto”, confia Ruben Barbosa, 21 anos, que viu a sua cotação disparar em passagens pela Alemanha e pelo Brasil – primeiro, do salário mínimo para os €1 500 e, depois, para os €3 000. “O meu valor parece aumentar sempre que vou lá para fora”, alegra-se, também por ter agarrado a oportunidade que a mãe lhe deu de adiar a faculdade se conseguisse ganhar a vida a jogar.
Desde 2016, tem andado cá e lá, sempre com porta aberta nos K1ck que faz das transferências internacionais uma importante fonte de receita. “O FC Porto e o Benfica também só sobrevivem se venderem jogadores”, ri-se o engenheiro informático Pedro Fernandes, responsável máximo do clube, a viver um ano sabático no seu trabalho para acompanhar mais de perto no projeto de eSports.
Vida de “streamer”
“O poder disto é imparável”, atira Pedro Silveira, seguro de que “hoje são poucos os miúdos que não jogam online”. Organizador de torneios ao vivo há mais de uma década, agora à frente da Lisboa Games Week – evento anual na FIL – e da secção de eSports do Sporting, este antigo gamer tem em mãos aquela que promete vir a ser a primeira prova internacional de desporto eletrónico em Portugal. O XL Moche, assim se chama, vai realizar-se em junho na Altice Arena, em Lisboa, e distribuir €100 mil pelos melhores em torneios de CS, LoL, FIFA e Clash Royale, um jogo de telemóvel. A maior fatia do bolo caberá ao Counter Strike, de forma a seduzir equipas do top 20 mundial a marcarem presença.
O Moche já patrocina as ligas nacionais de CS e LoL e, ao promover esta “festa”, refere Samuel Carvalho, responsável pela estratégia, marca e patrocínios, pretende mostrar “a versão espetacular da competição ao vivo e do showtime digital, como se fosse um festival de música”. A ideia é posicionar a marca entre os jovens, o seu público-alvo, e vem no seguimento da aposta no surf, que perde em audiências para os videojogos nas transmissões via internet.
A popularidade do CS, um jogo de tiros na primeira pessoa, com cinco elementos em cada equipa em permanente comunicação por voz, está longe de resumir-se ao interesse em acompanhar as batalhas online. Ricardo Sousa, mais conhecido por Zorlak, foi jogador de primeira linha em Portugal, nos primeiros anos do século, numa versão anterior do jogo. Quando se retirou, aos 23 anos, ganhava o suficiente em prémios para comprar o passe, cobrir as despesas de telemóvel e almoçar na universidade. Impensável receber um salário mensal fixo, por mais pequeno que fosse, como hoje oferecem quase todos os clubes da liga portuguesa (€100 a €200 na maioria dos casos). Viver do seu passatempo preferido era ideia que nunca se atravessara nos seus pensamentos.
Doze anos depois, manhã cedo, recebe-nos na sua casa nova, nos arredores de Lisboa, após mais uma jornada noturna ao computador, no escritório profissional que montou numa das assoalhadas. O curso de engenharia informática não o entusiasmou. Mudou para enfermagem veterinária mas, antes de apresentar a tese final, viu-se na imobiliária que o pai geria. Veio a crise, o negócio das casas ruiu e ficou com uma dívida ao banco a reclamar “dinheiro rápido”. Foi servir num restaurante, conta, a ganhar €1 300 por mês, “mais em gorjetas do que em ordenado”. Larga o restaurante em agosto de 2016, quando a sua segunda vida no Counter Strike já seguia em alta, com as lições individualizadas em direto na internet, os comentários de jogos profissionais, as explicações acerca das estratégias de combate, as dicas sobre os melhores equipamentos… Mais tarde, haveria de chegar a colaboração com o canal RTP Arena.
Nunca esteve tão bem na vida, admite agora, agradecido aos mais de 170 mil seguidores do seu canal na Twicht. Zorlak, que é streamer, ou seja, comentador/apresentador, passa oito a doze horas por dia online, numa tagarelice sem filtro com os fãs, no seu estúdio de €10 mil repleto de computadores e monitores, quase sempre noite fora “para fugir ao horário nobre” e às “enchentes” de cinco mil visitantes em simultâneo. Vive das contribuições deles e diz não precisar de mais do que os que já tem, para não desvirtuar o formato: só os 20 maiores doadores já lhe deram quase €40 mil.
Certo dia do ano passado, um seguidor teimou que Zorlak teria de comprar um frigorífico igual ao seu para a nova casa e doou dois mil euros de uma vez. De imediato, surgiram outros com uma “vaquinha” para a televisão. A namorada, Margarida Cruz, abriu uma empresa para eles gerirem melhor a atividade e contrataram um contabilista. Ela passou a dedicar-se à agenda, aos contactos com parceiros e ao canal do YouTube, estando em avaliação a renúncia a um trabalho em part-time, uma vez que os rendimentos já são suficientes para os dois viverem do que mais gostam.
“Se tiver de ficar mais 20 anos a streamar, assino por baixo”, solta Ricardo, ciente da evolução do mercado dos desportos eletrónicos, mas sem querer alimentar falsas ilusões quanto ao seu modo de vida. “Não pensem que isto é fácil e que todos conseguem. No meu primeiro ano não fiz mais do que 200 dólares (cerca de €160).”
Mas isto é saudável?
Os videojogos de competição já são considerados desporto, mas estar à frente de um computador, “imerso” em cenários dantescos, a atirar em tudo o que mexe, não é bem a mesma coisa do que andar num parque a correr atrás de uma bola. Não há gamer que não tenha enfrentado a resistência ou a desconfiança dos pais com tantas horas dedicadas aos videojogos. Esconder o teclado, o rato ou os comandos da consola, desligar a internet ou exigir boas notas em troca são as contramedidas mais usadas. A recente decisão da Organização Mundial de Saúde, de considerar o vício dos videojogos uma doença mental, também não ajuda a aligeirar o estigma que pende sobre os jogadores.
“É verdade que os miúdos se refugiam muito nas tecnologias e que isso pode tornar-se compulsivo, mas há uma diabolização exagerada do videojogo, quando apenas uma minoria de 8 a 13% sofre de perturbações”, alega Maria João Andrade, psicóloga da Grinding Mind, uma associação que tem por objetivo promover “uma vivência saudável” ligada aos jogos de computador. A médica defende, por exemplo, que os videojogos de equipa e em contextos competitivos são “uma oportunidade de socialização presencial” que combate o “risco do isolamento”. Desde que não se deixe de investir em outras áreas, como a escola ou a família, não vê motivos para alarme.
“Noto uma preocupação cada vez maior com a saúde por parte dos jogadores”, atesta, por seu lado, o treinador António Lisboa, 26 anos, agora ao leme dos Grow Up. “Na nossa equipa, até brincamos que os treinos correm melhor se antes o Daniel tiver ido ao ginásio.” O visado intervém: “É verdade, estar sempre em casa acaba por fartar.”
Gonçalo Pinto, 18 anos, já sentiu mais a pressão parental para dar tréguas à consola. O jogador do FIFA é caloiro em Ciências da Comunicação e, com o triunfo no primeiro torneio organizado pela Federação Portuguesa de Futebol, ganhou créditos também em casa: não só porque o Sporting o convidou para representar o clube mas também por ter arrecadado os €10 mil de prémio. Agora, não gere a expectativa por menos e quer “ser campeão do mundo”.
O FIFA não tem ainda a expressão do Counter Strike ou do League of Legends, mas o facto de Gonçalo andar a treinar-se com jogadores do Manchester City ou do Valência é já um claro indício do potencial a explorar. A própria FIFA está a incentivar outras federações nacionais a incluírem a variante eletrónica na agenda para aguçar o apetite dos clubes e chamar patrocinadores. Tal como a fé, o dinheiro move montanhas. E os videojogos movem os jovens. Não é à toa que os tradicionais estádios de futebol das grandes equipas europeias e os de basquetebol da NBA já integram eventos de eSports como forma alternativa de arrecadar receita. A tendência é tal que os videojogos, ao vivo, podem mesmo vir a moldar a arquitetura das novas arenas, carregadas de ecrãs gigantes, que mostram o mínimo movimento dos jogadores. No fim – e isto já acontece agora –, os gamers levantam-se e dirigem-se à multidão, passando a mão para “dar cincos”, como se fossem estrelas de rock.