Veja aqui o que é, para que serve e quanto custa um teste genético
Foi durante o banho que Rita Pinho, 44 anos, professora do Ensino Básico e Secundário, notou um pequeno caroço numa das mamas. Uma irregularidade na pele que não chegou a preocupá-la. Havia os filhos, as aulas, a vida. Passadas umas semanas, outra vez o caroço a dar sinal, como que a chamá-la à razão. Estávamos em junho de 2016, altura de corrigir testes, das reuniões de avaliação. O verão e as férias em família à porta. Não dava jeito nenhum ter um problema de saúde. “A pessoa não quer acreditar”, justifica-se.
A 15 de agosto, Rita finalmente ligou à mãe, médica. A mamografia ficou marcada para dali a quinze dias. A um de setembro chegou sozinha, e tranquila, para fazer uma mamografia. Assim que viu as imagens no ecrã, percebeu logo. “Já fui.”
Primeiro passo: cirurgia, seguida de radioterapia, e depois, eventualmente, quimioterapia. Neste cenário, o que mais assustava Rita Pinho era a químio. “Conheço bem o estado de degradação que provoca.” O que a professora de Educação Visual não sabia ainda é que podia submeter-se a um teste genético que determinaria se, no seu caso, este tratamento era mesmo necessário – há situações em que os critérios clínicos (como o tamanho do tumor e os gânglios afetados) não chegam para tirar uma conclusão. Assim que a oncologista da Fundação Champalimaud, Joana Ribeiro, lhe falou nisso, Rita não hesitou. Mesmo sabendo que o exame, o Mamma Print, não é comparticipado e lhe custaria 2 500 euros.
Ao fim de uma semana e meia de ansiedade, enquanto esperava pelo resultado, chegou a notícia mais desejada: não teria de se submeter a quimioterapia. “Se a químio viesse a custo zero, faríamos a todas as mulheres. Mas há a questão da toxicidade, a curto e a longo prazo, e, com a esperança de vida a aumentar, cada vez mais temos de ter em conta este aspeto”, diz a oncologista Joana Ribeiro.
O objetivo da quimioterapia é prevenir o reaparecimento do cancro, as chamadas recidivas. Hoje sabe-se que a probabilidade de estas ocorrerem depende da atividade de 70 genes, expressos pelo próprio tecido tumoral. Uns têm mais peso do que outros, sendo que do balanço final entre as proteínas produzidas por cada um deles resulta um maior ou menor risco de o tumor voltar. O que o médico envia para o laboratório é um pedaço do tumor. São então identificados os genes, daquele lote de 70, que estão ativos e a sua intensidade. Depois, um programa de computador faz as contas e indica a probabilidade de haver uma recidiva. “Desde 2012 que podemos contar com esta ajuda. E tem sido muito importante, porque há um grupo de doentes em que a avaliação era muito difícil. É um alívio”, enaltece a especialista.
O teste Mamma Print (existem outros semelhantes, usados em hospitais públicos, como o Instituto Português de Oncologia) é um bom exemplo da utilização dos chamados big data – grande volume de dados que, após tratados, permitem a extração de informação fundamental – na área da Saúde. Avulsos, os dados (no caso, os genes expressos pelo tumor) não servem para nada; mas, depois de limpos, organizados e filtrados, estes passam a ser um elemento de peso na tomada de decisão médica. Pegando no exemplo dos 70 genes que são preditores da evolução de um tumor da mama: sem os últimos conhecimentos de genética e a tecnologia computacional atual, seria impossível analisar isoladamente cada gene, calcular a quantidade de proteína expressa por cada um, atribuir um peso maior aos genes envolvidos na proliferação celular, somar tudo e fazer as contas para chegar ao nível de risco. Só com a ajuda de um supercomputador e de um conjunto de instruções – ou algoritmo – a tarefa se torna exequível.
O comprimido contra o cancro
Tudo começou com a explosão de dados da era digital. Há a internet, os satélites, as fotos digitais. Bits e bytes por todo o lado. A cada dois dias criamos tantos dados como os que eram gerados desde o início dos tempos até ao ano 2000. E será sempre a subir. Em 2020, a quantidade de informação terá crescido dos atuais cinco zettabytes (um cinco seguido de 21 zeros) para cinquenta.
As grandes bases de dados estão na área do consumo de massas, na resposta a catástrofes, nas previsões e estudo do clima. Mas é na Medicina que a expectativa é maior – quer seja na acumulação de uma grande quantidade de historiais clínicos, na análise de imagens, em busca de um padrão que ajude a detetar com antecedência os sinais de uma patologia, quer seja para afinar um tratamento, com base num teste genético. Daí saltamos para a medicina de precisão, que tem como base o perfil genético de cada indivíduo, a Inteligência Artificial, com o potencial de ajudar no diagnóstico e no tratamento, ao reunir e analisar mais informação do que seria possível sem ajuda.
Nuno Morais tem um percurso raro em Portugal. Começou por estudar Física, encaminhando-se depois para a Biologia. Após uma passagem por alguns dos melhores institutos de investigação do mundo, assentou em Lisboa para dirigir o grupo de Biologia Computacional, no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes. Muito por conta do seu trabalho, o Instituto montou uma rede com 360 processadores (o chamado cluster) que torna possível executar cálculos pesadíssimos, que numa só máquina poderiam demorar uma eternidade. Com a sua equipa de seis pessoas, diversificada em nacionalidades e currículos, analisa bases de dados para tornar mais exato e precoce o diagnóstico de doenças neurodegenerativas e oncológicas. “Cada doente tem um cancro diferente. Precisamos de grandes bases de dados para encontrar semelhanças entre um caso e outro. Identificar padrões e perceber os mecanismos das doenças pode ajudar a desenhar terapias para cada um destes grupos. É a partir da compreensão dos mecanismos, suportada pelos dados, que será possível fazer previsões sobre a forma de tratar cada indivíduo”, resume o cientista.
Para alguns casos, já se encontraram padrões, que resultaram em terapias direcionadas, com todas as vantagens que estas trazem: maior eficácia a combater a doença e menos efeitos secundários.
Constança Carvalho, 70 anos, era uma funcionária pública reformada, com uma vida ativa, social e até fisicamente – cuidava dos netos, frequentava aulas de hidroginástica – quando se começou a cansar ao subir a sua rua. Procurou o médico, e a causa da falta de ar não tardou em aparecer. Uma massa no pulmão direito que, depois da biopsia, veio ainda com o carimbo de malignidade. O teste genético que se seguiu acabou, no entanto, por trazer uma boa notícia. O tumor apresentava a mutação EGFR, uma alteração responsável pela proliferação celular e que pode ser combatida com um medicamento, desenhado para este efeito específico: corrigir os efeitos da mutação e impedir que as células se multipliquem descontroladamente. Há dois anos que se trata em casa com um simples comprimido por dia. “Já faz parte da rotina. É como se fosse um comprimido para o colesterol ou para a tensão”, compara. Constança teve algumas reações adversas chatas, que a obrigaram até a internamento. Mas a doença tem estado controlada e as TAC a que se submete a cada seis meses, para que seja avaliada a progressão do tumor, têm vindo sempre com boas notícias. Através de análises sanguíneas, os médicos tentam também despistar eventuais alterações na genética do tumor, que obriguem a mudar a medicação. Henrique Queiroga, o pneumologista que a segue, não se cansa de notar a diferença neste tipo de medicina direcionada, suportada pela caracterização genética do tumor. “É um avanço espetacular”, entusiasma-se. “Tenho doentes que vivem com a doença há mais de dez anos.”
Manuel Teixeira, responsável pelo serviço de genética do Instituto Português de Oncologia do Porto, tem acompanhado a evolução desta área, que descolou em 2001, depois da descodificação do genoma. “Não há monotonia!” O serviço que dirige é uma referência fazendo testes para os doentes seguidos no hospital e também para pacientes de outras unidades de saúde. “Estamos sempre a par do que vai sendo publicado e, assim que aparece um novo teste, trazemo-lo para o laboratório.”
Na Europa, 32% dos doentes oncológicos já são tratados com terapias direcionadas, com maior relevância nos casos de cancro da mama e do pulmão, de acordo com um estudo de 2015, da empresa de informação médica Cegedim.
80% dos dados desaproveitados
Este admirável mundo novo da Medicina tem vindo a saltar do cancro para as doenças raras, a neurologia e as autoimunes. Desde o início do século que a quantidade de informação disponível tem crescido exponencialmente. De uma técnica caríssima, confinada aos laboratórios de investigação, a informação genética passou a ser mais um dado a ter em conta, por vezes essencial, na definição de um diagnóstico e do tratamento.
O potencial de utilização dos big data é enorme e vai muito mais além. Ao nível da saúde pública, espera-se que possa ajudar a definir padrões de evolução de doenças, como a gripe; monitorização à distância, com base em medições de parâmetros médicos (tensão arterial, ritmo cardíaco) no hospital ou mesmo em casa; definição de perfis de risco, de diabetes ou hipertensão, favorecendo uma medicina preventiva, com recomendações específicas para cada cidadão. Num artigo de opinião publicado na revista Forbes, o consultor e autor de sucesso de livros sobre o tema Bernard Marr resumiu bem a questão: “Os big data na Saúde estão a ser usados para prever epidemias, curar doenças, melhorar a qualidade de vida e evitar doenças preveníveis. Com a população mundial a aumentar, assim como a esperança de vida, os modelos de tratamento estão a mudar rapidamente, e muitas das decisões por detrás destas mudanças estão a ser impulsionadas pelos dados. Hoje, o objetivo é saber o máximo, e o mais cedo possível, sobre cada paciente. A expectativa é de que se detetem sinais precoces, numa fase inicial, das doenças graves, de forma a que o tratamento possa ser mais simples e barato.”
Para já, há muitas promessas por cumprir. Estima-se que 80% dos dados gerados em Saúde – resultantes de raios X, TAC, análises sanguíneas, informação genética – não estejam devidamente tratados; logo, são desaproveitados.
José Pereira Leal, que dirige o laboratório de genómica computacional do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras, criou uma empresa onde se explora precisamente esta nova faceta da Medicina. A Ophiomics, Precision Medicine, hoje integrada no Grupo Germano de Sousa, oferece um enorme cartaz de testes genéticos, todos na área do cancro. Apesar do enorme potencial, a primeira mensagem do cientista é de alerta. “Pela lei e pela ética, não se podem fazer testes genéticos sem aconselhamento médico.” Ou seja, uma pessoa não pode chegar ao laboratório e propor-se a fazer um teste de avaliação de risco. Só alguém com história familiar sugestiva (muitos casos de cancro) será um verdadeiro candidato. “A tecnologia permite-nos extrair muita informação dos genes, e há a tentação de se pensar que se podem fazer testes genéticos para tudo. Mas não. O elemento central continua a ser o médico.”
Associado aos testes genéticos, a Ophiomics também oferece informação sobre os ensaios clínicos, a decorrer em qualquer parte do mundo, nos quais o doente se pode encaixar. Além da caracterização do tumor, o médico recebe também informação sobre os testes que estão a ser feitos com novas moléculas, para tratamento de doentes com aquele perfil genético. Informação que se torna ainda mais relevante nos casos em que não há qualquer terapia disponível. “Hoje em dia, os critérios de inclusão nos ensaios incluem e restringem com base em informação genética,” nota Pereira Leal.
Com sede na Bélgica e servidores instalados na Suíça, a empresa OncoDna chegou a Portugal no início deste ano. Os testes não são baratos – entre €1 300 e €3 000 euros –, sem qualquer acordo com as seguradoras. Mas será uma questão de tempo. Até porque está provado que compensa sob todos os pontos de vista, incluindo o financeiro. “Se conseguirmos ter como base de tratamento o perfil genómico, poupamos muito dinheiro e sofrimento”, sublinha o diretor de desenvolvimento de negócios da empresa para Portugal, Luis Alvarez. “Os médicos tendem a ser conservadores. Mas as mentalidades começam a mudar e são cada vez mais evidentes as vantagens de se incluir a informação genética.” Esta informação torna-se ainda mais determinante em situações de escuridão total, nos chamados cancros de origem desconhecida (CUP na sigla em inglês, usada internacionalmente), que representam cerca de 10% de todos os tumores malignos. Para estes doentes, a empresa está a oferecer os testes genéticos, no âmbito de um projeto de investigação liderado pelo Hospital Universitário de Valência. “O projeto pioneiro irá permitir que cem pessoas, de Portugal e de Espanha, com diagnóstico de carcinoma primário desconhecido, ou CUP, beneficiem de uma nova ferramenta de diagnóstico, o estudo molecular, gratuitamente”, explica Luis Alvarez.
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