A data é 2 de junho de 2004. O coletivo de juízes do Tribunal de Loures decide um caso de maus tratos. Acusado de agredir a companheira ao murro e ao pontapé, um homem é condenado a 18 meses de prisão, a indemnizar a vítima e a pagar as despesas do atendimento hospitalar da mesma. Na fundamentação da sentença, o juiz Joaquim Neto de Moura faz notar que, 15 dias antes, decorrera uma manifestação em Vigo (Galiza) na qual teriam participado 20 mil mulheres. Protestavam contra a violência doméstica “e um dos alvos dos seus protestos eram os magistrados”, acrescentara, aventurando-se depois no território religioso: “No Corão proclama-se que as mulheres foram criadas para os homens, são seres inferiores e imperfeitos e capazes de grandes astúcias”, lê-se.
E continua: “Mulheres virtuosas são mulheres obedientes. Os homens podem bater-lhes, mas, desde que obedeçam, não procurarão mais motivos de querela”. Por fim, recorda, “na Bíblia prega-se a mesma atitude submissa da mulher”. O juiz faz então a ponte entre as citações e a já falada manif para concluir: “Na verdade, os protestos das mulheres são fundados porque na jurisprudência, quer a nível da primeira instância, quer nos tribunais superiores, permanecem, nesta matéria, conceções tradicionais autoritárias e discriminatórias”, escreve, lamentando que as queixas acabem quase sempre “em nada” e não lhes seja dado “o devido relevo probatório”.
Estas palavras e as expressões usadas pelo mesmo juiz no polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto de outubro de 2016 sobre um caso de violência doméstica estão separadas por uma dúzia de anos. Mas, à vista desarmada, parece haver um fosso de séculos entre elas.
“NÃO SOU ULTRAMONTANO”
No processo mais recente, o Ministério Público recorreu da decisão emanada da comarca de Felgueiras, reclamando uma pena mais pesada,de 3 anos e 6 meses de prisão, para o principal arguido. Porém, o juiz desembargador Neto de Moura invocou a Bíblia, o Código Penal de 1886 (que se manteve até 1982) e sociedades que ainda punem a infidelidade da mulher até à morte para atenuar a gravidade dos factos e a culpa do ex-marido. “O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, plasmou no acórdão também assinado pela magistrada Maria Luísa Arantes, no qual foi mantida a pena suspensa de um ano e três meses de prisão atribuída ao principal acusado. Confuso? “Não sou ultramontano e retrógrado.
Muito menos sou tolerante com a violência doméstica que continua a ser um grave atentado à condição da mulher e cujas versões são, muitas vezes, desvalorizadas em tribunal”, reagiu Neto de Moura, em declarações à VISÃO, pelo telefone. Recusando comentar o caso em apreço “por dever de reserva” e por estar a decorrer o inquérito entretanto aberto pelo Conselho Superior de Magistratura (CSM), o juiz reforça: “Já relatei umas duas dezenas de acórdãos sobre casos de violência doméstica e não me lembro de ter promovido qualquer absolvição. Tenho decisões em que é inequívoca e severa a minha condenação dessa conduta”, assinala o magistrado, “incrédulo” com o vendaval de protestos de que se tornou alvo: “Isto tomou proporções inacreditáveis”, reconhece. Na verdade, foram dias a ser vergastado. Alguns dirão que se pôs a jeito.
Desde que o JN fez manchete com o caso, organizações de defesa de mulheres, associações feministas e sindicais, magistrados, políticos, opinion makers e até figuras públicas como o colunista João Miguel Tavares, o escritor Richard Zimmler ou o futebolista Cristiano Ronaldo uniram-se no clamor público contra a “sentença paleolítica” do “desembargador obscurantista”, de “raciocínio grotesco”, de argumentário “fossilizado” e perfil alegadamente “machista”, “arrogante” e “misógino”.
Censuraram-se as passagens “inconstitucionais” e ao arrepio de convenções internacionais no âmbito da proteção dos direitos das mulheres e da igualdade de género.
Em Lisboa e Porto, largas centenas de pessoas saíram à rua contra o juiz “que odeia as mulheres”. Alguns dos seus pares despindo o habitual formalismo também não o pouparam.
Foram os casos, por exemplo, de Henriques Gaspar, do Supremo Tribunal de Justiça, Nuno Ataíde das Neves, da Relação do Porto, e Manuela Paupério, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.
Em privado, junto de amigos ou conhecidos, sobressaltados com o teor do acórdão e as reações, Neto de Moura terá insistido na tese do que o adultério “não justifica, não desculpa, nem menoriza o comportamento violento do agressor, mas tem de ser levado em conta na graduação da culpa”, como, aliás, fez num processo de 2015, reduzindo a pena de uma mulher que tentou matar o marido por ciúmes, conforme revelou o Público.
“Foram referências históricas, não as acho despropositadas ou descabidas, mas reconheço que podia tê-las escrito de outra forma”, terá desabafado, junto de quem lhe próximo.
Insinuou-se que atravessaria problemas de saúde e que até se convertera a uma congregação religiosa, mas o magistrado negou à VISÃO as duas situações, adiantando: “O meu pai (tal como a minha falecida mãe) é católico praticante e, naturalmente, eu fui educado segundo os cânones da religião católica. Conheço (um pouco) da Bíblia porque me interesso pela sua leitura. Tal como leio Saramago (que conhecia a Bíblia bem melhor que eu)”, alega.
Escrutinam-se, entretanto, outras decisões do magistrado (ver caixas) e veio a público um inquérito em curso relacionado com alegadas “falsas declarações” do juiz na sequência de uma ação que ele próprio intentou contra um polícia. A Procuradoria–Geral da República recusou o pedido da associação feminista Capazes para levar o caso ao Tribunal Constitucional, mas correm petições públicas, com milhares de assinaturas, a defender o afastamento do magistrado. Pressionado pela contestação e alarme social, o CSM abriu um inquérito ao polémico acórdão para avaliar, em plenário, eventuais procedimentos disciplinares aos magistrados que assinaram a decisão incendiária. O juiz será defendido pelo advogado Ricardo Nascimento e deve ser ouvido por estes dias.
VIAGEM ÀS ORIGENS
O terramoto mediático e a exaltação cívica contra o juiz dos argumentos de antanho não tardaram a sentir–se na freguesia de Figueiró, Paços de Ferreira, onde Joaquim Neto de Moura nasceu há 61 anos.
Assarapantado, o advogado, jornalista e amigo Álvaro Neto demorou a encaixar o sururu à volta do homem que esteve para ser seu colega de escritório. “Ele é um tipo brilhante, de convicções e de caráter. Esteve comigo em algumas lutas por uma sociedade em que a mulher fosse dignificada”, justifica, enquanto caminha com o molho de jornais debaixo do braço, onde se destacam as notícias sobre o “Quim Moura”, não pelas melhores razões. “É uma pena, é um tipo extraordinário!”, lamenta, tentando encontrar uma justificação: “Ele quis vincar a ideia de que ainda existe uma censura social ao adultério que, embora não justifique a violência, condiciona comportamentos e é fator atenuante da motivação, mas usou termos excessivos e saiu uma redação equívoca”, reconhece o diretor da Gazeta de Paços de Ferreira, curtido nas lutas concelhias antes e depois da ditadura.
Apesar de não ser visto por aquelas bandas há quatro ou cinco anos, o juiz desembargador orgulha-se das raízes humildes na freguesia onde, no dizer jocoso de certos empresários hoteleiros da região, “ainda vivem os pretos vestidos de branco”. Joaquim é um dos dez filhos (oito rapazes e duas raparigas) de Adriano Moura, antigo operário polidor das Indústria de Mobiliário Escolar Pinto da Costa, homem com a quarta classe e reverenciado desde que se meteu em papeladas e repartições para ajudar muitos dos seus conterrâneos a garantir as pensões de reforma com as quais nem sequer sonhavam. “As pessoas pobres, mas agradecidas, levavam-lhe tudo o que tinham de melhor: bacalhaus, sacos de arroz e o que mais houvesse”, recorda quem viveu esses tempos. A mãe, Adelaide Neto, era gestora doméstica com pergaminhos de meter qualquer ministro das Finanças num bolso e a família criava porcos e coelhos para iludir as costuras da vida. Os pais esgadanharam-se para pôr os filhos a estudar e levar à mesa, por vezes, mais do que uma sardinha para dois.
Neto de Moura é insuspeito de grandes devoções religiosas, ao contrário do pai que, aos 93 anos, não prescinde de rezar o terço diariamente.
Adriano tinha de arrastar o filho para a missa e foi com algum desgosto que um dia recebeu do Mosteiro de Singeverga a carta que anunciava a expulsão do então seminarista. Motivo? Além da falta de vocação, Joaquim participara numa pantomina coletiva destinada a alertar a hierarquia beneditina para as condições precárias das casas de banho, que terá colagens de fotografias de mulheres em poses, digamos, pouco cristãs. A falta de vocação era extensiva ao futebol. “Quim Moura” ainda chegou a dar conta do recado no lugar de defesa-direito dos juvenis do Freamunde, campeão de série na época 72/73, então treinado pelo mítico Santana, antiga glória do Benfica campeão europeu. “Era voluntarioso, mas fraquinho”, recorda o “capitão” Carlos Rego, com humor e saudade à mistura. “A cabeleira disfarçava, parecia um viking”.
FAMÍLIA DE ESQUERDA
A cabeleira tinha motivações para lá da vaidade. Não pelos namoricos, pois poucos se lhe conhecem, mas porque a política e a respetiva indumentária da época andavam a par. Os pais de Neto de Moura nunca negaram a costela socialista. Entre os irmãos, a tendência era para os extremos. Joaquim forrou as paredes com a cara do Che e cartazes do PCP, tendo militado, por via do associativismo académico na Faculdade de Direito de Lisboa, na União de Estudantes Comunistas (UEC), depois da revolução. Ativismo discreto, mas cujos resquícios não se perderam: Neto de Moura mantém convicções de esquerda e desde garoto carrega a influência das primeiras leituras dos romances mais comprometidos de Jorge Amado, obtidos à socapa na biblioteca da terra e arredores, por causa da PIDE. “O Quim chegou a ser conhecido como O Comuna, mas era mais de ouvir. Podíamos estar uma tarde inteira a discutir no café Montebar, espécie de centro político da terra, que ele não abria a boca” recorda o advogado Álvaro Neto, fundador do Clube Recreativo e Cultural 1º de Maio de Figueiró, do qual o juiz ainda é sócio. No seu percurso profissional, o magistrado foi ainda advogado do Sindicato da Hotelaria, afeto à CGTP, e dessa experiência guarda, segundo os mais próximos, boas memórias, “por ter vivido uma realidade laboral que desconhecia”.
Foi a vocação para a magistratura que o pôs no caminho que agora descarrilou. Viseu, Miranda do Douro, Vouzela, Ponta do Sol, São Vicente, Funchal, São Pedro do Sul, Bragança, Santo Tirso e Loures (neste caso, durante dez anos), foram comarcas onde revelou o seu perfil sem meias-tintas, antes de ascender ao Tribunal da Relação de Lisboa e, depois, ao do Porto. Casos delicados, teve vários, sobretudo na Madeira, onde conheceu a procuradora beirã com quem casou nos jardins do Convento de Mafra. Fez parte dos coletivos de juízes que condenaram Gabriel Luís, antigo autarca de Santa Cruz, a 5 anos de prisão, e o padre Frederico, por homicídio. Também enviou para a cadeia um ex-funcionário do Governo Regional pela prática de sexo oral com um menor débil mental. “Os casos com crianças põem-no doente”, dizem os amigos. “Era de mau trato, bicho do buraco”, recorda um advogado madeirense, que teve de enfrentá-lo. “Os meus clientes eram acusados de tráfico de droga e fiquei com uma péssima impressão dele como julgador. Entrava em tribunal convicto e nem um argumento do tamanho da Torre Eiffel o fazia mudar de ideias. Deixei de ir à guerra, pois levava sempre no ‘focinho'”.
Trabalhador incansável desde miúdo, de deitar-se e acordar com os livros de estudo, Neto de Moura leva uma vida quase monástica e entende a magistratura quase como um sacerdócio. Mas há versões que correm por trilhos diferentes. Num ou noutro tribunal por onde passou, elogiam-lhe a proximidade, o afeto, as decisões humanitárias ao ponto de proferir decisões a tempo dos arguidos poderem ir passar o Natal a casa. Noutras comarcas, diabolizam–no: “Se tivesse mais mundo e fosse mais sociável, talvez não escrevesse o que escreveu”, reage um advogado lisboeta que com ele lidou em vários julgamentos.
Pai de duas filhas, o juiz desembargador viu agora o seu acórdão polémico entrar-lhe de supetão, pela porta familiar, ao ponto de a rapariga mais velha, estudante de Direito, ter decidido, por estes dias, abandonar uma aula, indignada com o facto de os professores só falarem do tema. Magistrados ouvidos pela VISÃO duvidam, entretanto, que o inquérito em curso possa, apesar de eventuais “proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes”, penalizar a decisão ou o percurso de Joaquim Neto de Moura. Mas, se for caso disso, pode até ser que uma eventual reprimenda venha por bem: há vários anos que o romance Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, aguarda lá por casa a oportunidade de ser lido. E nas suas páginas não faltam, como se sabe, vários motivos e citações para perdoar o apedrejamento, literário ou involuntário, das adúlteras.
Violência, infidelidades e “jet-set”
Excertos de decisões do juiz Neto de Moura
“É recorrente a tentativa de justificar os maus tratos conjugais com a infidelidade da mulher e se, por vezes, o comportamento adúltero da mulher é uma realidade, a experiência revela-nos que, na grande maioria dos casos, a imputação não passa de invenção do maltratante.”
TRIBUNAL DE LOURES, 2004
“Ao contrário do que sugerem os media (que só se interessam pelo problema quando isso lhes permite conquistar audiências, designadamente quando a vítima é alguém do chamado “jet-set”), não se verifica um recrudescimento do fenómeno da violência doméstica e em particular da violência contra as mulheres. O que acontece é que a maior transparência das relações familiares confere visibilidade a atos que antes ficavam escondidos no universo fechado em que a família se estruturava.”
TRIBUNAL DE LOURES, 2004
“Há que ser cauteloso e evitar visões maniqueístas das situações: nem sempre o arguido (normalmente, o marido ou o companheiro) é o demónio e a (o) ofendida (o) o anjo, a vítima cândida, inocente e indefesa que merece todo o crédito”
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, 2012
“Como é que se concebe que duas pessoas tenham convivido como marido e mulher durante tanto tempo se era frequente o homem (o arguido) agredir física e psicologicamente a mulher (chegando ao ponto de lhe apontar à cabeça o que, tudo indica, seria uma arma de fogo), maltratando-a, humilhando-a e atentando contra a sua dignidade pessoal?”
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, 2014
(Artigo publicado na VISÃO 1287 de 2 de novembro)