“Mais valia que tivesse partido uma perna, ao menos essa dor todos percebem e levam a sério.” “Dizer que estou no psicólogo? É melhor não, vão dizer que eu não bato bem da cabeça e ainda me prejudicam no trabalho.” Sim, estamos em 2017 e é “normal” pensar coisas como estas, que se partilham, num desabafo com alguém em quem confiem. “Uma vez disseram-me que falar de saúde mental não é sexy e eu fiquei a pensar nisso.” Pensou e fez. Ana Pinto Coelho lançou um projeto pioneiro no nosso país com a intenção de combater o estigma através das linguagens do cinema, das artes e da informação. A curadora e diretora do Festival de Saúde Mental, que vai ter lugar entre 9 e 12 de novembro, em três locais de Lisboa, pretende que se fale sem complexos e com naturalidade de um assunto universal mas que ainda é um estigma. Ou seja, ainda não se fala de saúde e de doença mental com a mesma descontração com que se aborda a ida ao ginásio ou o facto de ter uma dor de cabeça. Talvez porque somos dominados por sentimentos de vergonha e de incapacidade ao fazê-lo, sabendo estar em minoria. Ou porque os modelos sociais que temos estão, também eles, doentes, “usando as perturbações mentais como insulto, arma de arremesso ou escudo para se protegerem de coisas que não são defensáveis.”
“A cara do Mental somos todos nós”
Este é o lema da responsável deste festival, que é ainda conselheira em adições, dependências químicas e de comportamento, diplomada em Oxford, no Reino Unido. O “nós” a que ela se refere são as instituições, os especialistas e a comunidade. Estar familiarizada com o jornalismo, a produção e a psicoterapia, foram mais-valias que lhe permitiram avançar para este projeto. Porém, o “amor à causa e o espírito humanista” é que tornaram possível concretizá-lo, “praticamente sem apoio financeiro, embora tivessem sido muitas as entidades que mostraram abertura e se dispuseram a colaborar desde o primeiro momento”. Esse momento surgiu durante uma visita ao Edinburgh Filmhouse, na Escócia, onde encontrou um folheto com a programação de um festival completamente inovador, que já existe há 11 anos. “Fazia todo o sentido trazer a ideia para Portugal.” Por mais ousada e difícil que a aventura lhe parecesse, pôs mãos à obra e em janeiro já estava reunida com Gail Aldam, a diretora do Festival de Artes e Cinema Escocês de Saúde Mental (SMHAFF), que estrá em Lisboa no arranque do evento.
Brigada contra o estigma
Basta olhar para as estatísticas internacionais para perceber que uma em cada três a cinco pessoas sofre, sofreu ou virá a sofrer de perturbações mentais. No ano de estreia do Mental, são quatro os temas escolhidos: Borderline, Prevenção, Alzheimer e Alcoolismo. A partir deles, pode esperar a projeção de filmes e a partilha de experiências entre o público e os 15 oradores convidados para as M Talks. Jornalistas, escritores, realizadores, profissionais de saúde, académicos e representantes de instituições e o público vão poder trocar ideias de forma criativa e em ambiente informal”, frisa Ana Pinto Coelho, francamente empenhada em acabar com o isolacionismo dominante: “As pessoas estão cansadas de estar sozinhas e de conversas triviais, querem que alguém as ouça ativamente e falar de sentimentos.” Ana quer chegar a todas elas e, em futuras edições, ter eventos em todo o país.
M Talks…
“Todos temos um grau de sanidade relativo.” O escritor e jornalista Tiago Salazar é o primeiro a assumir esta evidência, não apenas nos seus livros como em eventos onde já participou, promovidos por instituições académicas. A tomar antidepressivos desde 2014, fala abertamente e sem vergonha sobre o seu quadro depressivo, das sessões de psicoterapia que o ajudaram em momentos difíceis e de outros meios de melhorar a sua qualidade de vida. Na palestra, Tiago vai dar a conhecer como superou o sofrimento associado ao zumbido (acufenos), graças a um método não convencional que usa frequências sonoras e é comparticipado pelo Serviço Nacional de Saúde francês, desde que o conhecido actor Gérard Depardieu lhe deu visibilidade e crédito público.
“Estas sessões trouxeram-me um apaziguamento que não tinha e gostava de ver o método em Portugal”, adianta. Acerca do que o levou a “viajar até ao fundo se si”, por todas estas vias, ele só tem uma coisa a dizer: “Fiz desporto, ioga e kung fu, viajei, escrevi sobre isso, mas era como se andasse sempre às voltas e precisei de cuidar da minha base.” E o que ganhou ele depois de tudo isto? “Hoje sei que nunca estará tudo bem, a diferença é que percebo porque está mal”. E muita coisa pode correr mal de um momento para o outro, e conduzir o mais resiliente ao vazio: “Uma despromoção, desemprego, stresse ou doença ligados às exigências de uma sociedade orientada para o sucesso a todo o custo.” Um dos méritos deste festival é “podermos falar do que nos aconteceu sem medos, de como passamos por isso e de saber que não estamos sozinhos.”
… e cinema
Se já teve a sensação de ver um filme, identificar-se com ele e querer trocar impressões a seguir, saiba que pode fazê-lo durante este fim-de-semana, no Mental. Há ficções para todos os gostos: Divertidamente, Vida interrompida, 16 anos de Álcool e O meu nome é Alice são alguns dos filmes, para ver, ou rever, e reflectir em conjunto.
A destacar ainda, neste festival, a estreia mundial de uma curta metragem do premiado argumentista Luis Campos. “Eu já conhecia o Festival de Edimburgo e quando soube que ia realizar-se cá um nos mesmos moldes entrei logo em contacto com a organização”, explica. “Muletas” retrata uma ceia de Natal na perspetiva de uma família que recebe a filha após esta ter estado internada e foi produzido no âmbito de um workshop do curso de cinema da Universidade da Beira Interior (UBI).
A fonte de inspiração
Todos temos uma história. A da escocesa Gail Aldam, 31 anos, é indissociável da Mental Health Foundation, em Glasgow. É lá que trabalha como produtora de artes e eventos e, desde 2008, passou a liderar o Festival de Artes e Cinema Escocês de Saúde Mental (SMHAFF), que vai já na sua 11ª edição e conta com 300 eventos espalhados pelo território escocês. Gail atribui o sucesso do Festival – um dos maiores do género no mundo – à aposta na inclusão e na diversidade ao nível comunitário e ao facto de “explorar a relação entre a criatividade e a mente, celebrar as conquistas artísticas de pessoas que lidaram com problemas mentais e promover conversas salutares que façam sentido às pessoas”.
“Resgatar” foi o tema que serviu de base ao programa da última edição. Artistas, ativistas e comunidades juntaram-se em torno dessa ideia comum. “Sentimos que este tema esteve sempre presente desde o início, porque vemos como as artes podem ajudar as pessoas a resgatar as suas experiências, a compreendê-las melhor e a partilhá-las com outros.”
Em 2018, “Começos” será o tema em cima da mesa. E porquê? “Desta vez vamos apostar no envolvimento dos mais novos e explorar a ideia de que o caminho para uma saúde mental positiva – ou para os problemas mentais – começa desde cedo.” Antes disso vamos poder vê-la e ouvir o que tem para dizer, ao vivo e em Lisboa.