O dia tinha sido longo para o presidente do PSD. Durante a tarde, Pedro Passos Coelho havia reunido a Comissão Política Nacional do partido e, à noite, seria a vez de juntar os seus conselheiros nacionais. Estava-se a 10 de julho de 2015, faltavam menos de três meses para as primeiras legislativas do pós-troika e o estado-maior laranja decidiria, nesse dia, o perfil do futuro deputado. Numa e noutra reunião, era passada a mensagem de que as listas deviam ser renovadas em pelo menos um terço dos lugares e que presidentes de câmaras, bem como detentores de altos cargos da Administração Pública, ficariam de fora da corrida à Assembleia da República.
Mas se, nessa noite, as listas ocupavam Passos, era outra coisa que o preocupava. A sua mulher, a terminar um tratamento de quimioterapia, sentia-se mal e precisava de ser vista. Ana Rita Cavaco, conselheira nacional e enfermeira de profissão, ficou encarregue do assunto. Pelas 21 e 45, chegava à porta das urgências do Hospital de Santa Maria (onde não trabalhava), em Lisboa, acompanhada de um enfermeiro daquele hospital (que se encontrava fora de serviço). Levariam daquele serviço, e “com urgência”, um medidor de glicemia e um aparelho de medição de sinais vitais, sem referir que era para os utilizar fora das instalações. O processo disciplinar pelo sucedido não tardaria, demoraria uns meses e acabaria arquivado.
Ana Rita Cavaco, 41 anos, dava, naquela noite, corpo a duas das suas faces: social-democrata de gema (começou cedo, na “jota” da sua Almada natal), é também uma enfermeira dedicada, sempre pronta a ajudar o próximo. No currículo, além da sua vasta formação académica, da passagem pelo associativismo estudantil e dos dois louvores (dos secretários de Estado da Saúde, no tempo de Durão Barroso, e do adjunto da Agricultura, no de Santana Lopes), pode acompanhar-se o percurso feito até chegar a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, em janeiro de 2016. Fora dele, somam-se polémicas e casos de justiça. Justiceira ou incendiária? As opiniões dividem-se.
Convicção e combate
Não fosse uma mulher de convicções, não teria chegado a presidente da JSD de Almada, não teria aceitado concorrer na lista do PSD à Junta de Freguesia da Graça (em 2009) nem alinhado com Pedro Rodrigues numa candidatura à distrital de Lisboa do PSD (em 2013). Não tivesse garra e, na sua ida para o Porto (onde fez um complemento de formação em enfermagem), não teria sido formadora no Sindicato dos Enfermeiros do Norte (o mesmo que, sob a batuta de José Correia Azevedo, tem por estes dias apelado à greve de cinco dias). Na Linha de Saúde 24, criada pela então ministra Maria de Belém, falou tão alto sobre as condições de trabalho que conseguiu lá levar a Comissão Parlamentar de Saúde. E, não tivesse coragem, não se teria aventurado a concorrer a bastonária, em 2011, sem ter os 15 anos de serviço necessários pelos estatutos. Voltou à carga quatro anos depois e ganhou, numa segunda volta, com uma abstenção de 88% e não mais do que 4 500 votos.
Nem sempre foi fácil. A Administração Regional de Saúde, num processo moroso, condenou-a a um mês de suspensão por falsificação de documentos, e fê-la cumprir uma pena em meados de 2015, relatou o jornal Público. A participação ao Ministério Público (que a ARS prometeu fazer) correrá os seus trâmites. Terá outros processos a correr contra ela, nomeadamente um por difamação, levantado por Graça Machado, a vice-presidente da Ordem que a bastonária decidiu afastar, no início do ano, por alegada acumulação de salários. Por sua vez, Ana Rita Cavaco também ameaçou pôr processos variados: contra um hospital que alegadamente privaria doentes de alimentação e de medicação (a ameaça foi feita no Parlamento); contra a sua vice-presidente e o diretor financeiro da Ordem; contra Cunha Ribeiro (então presidente da ARS e um dos envolvidos na Operação Marquês).
No Ministério Público há quem diga que Ana Rita Cavaco é “uma queixinhas”. No PSD, poucos dão a cara, mas há quem diga que é “reivindicativa, mas muitas vezes ultrapassa a fronteira e torna-se quezilenta” e quem concorde, ao dizer que “é movida por boas intenções, mas chega a um ponto e perde o bom senso”. Tem, no partido, relações que para um social-democrata experiente são “pouco óbvias”: é considerada muito próxima de Marco António Costa (coincidência ou não, Sérgio Vieira, companheiro de longa data de Marco António, foi convidado para secretário-geral da Ordem), como também é considerada próxima de Jorge Moreira da Silva, dois nomes de peso do PSD que não estão propriamente no mesmo barco. José Eduardo Martins, amigo de Ana Rita Cavaco há três décadas, garante que se trata de uma “combatente, trabalhadora, uma patriota, uma força da natureza, que diz sempre o que tem a dizer.”
De facto, ao longo deste ano e nove meses de mandato, a bastonária disse, numa entrevista, fazendo estalar o verniz, que a eutanásia era uma realidade no SNS – “vi casos em que médicos sugeriam administrar insulina àqueles doentes para lhes provocar um coma insulínico”. Antes do verão, pediu ao ministro a demissão da enfermeira-chefe do Hospital S. João no Porto por estar a tirar um doutoramento, a descurar o seu trabalho no hospital e por a ter tentado agredir. Na história, relatada pelo Observador, a administração do hospital rejeita incompatibilidades e diz que a alegada tentativa de agressão é falsa.
Ao concorrer por “Uma Ordem com os Enfermeiros” e definindo como máxima do seu mandato que Ninguém está sozinho, prometeu “servir de ponte entre sindicatos e governo para uma remuneração correspondente ao nível da carreira técnica superior”, uniformização das “35 horas de trabalho” e recuperar a categoria de enfermeiro especialista. É por isso que muitos enfermeiros estão na rua, em protesto. Enquanto isso, o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (o maior sindicato do setor, afeto à CGTP), continuava, à hora de fecho desta edição, a negociar com o Governo.
Artigo publicado na VISÃO 1280 de 14 de agosto