Há dois anos, num congresso na Suíça, a VISÃO entrevistou Carl June, o cientista da Universidade da Pensilvânia que desenvolveu a terapia de CART cells, para o tratamento da leucemia linfoblástica aguda. Na altura, a técnica ainda estava na fase de ensaios clínicos, mas os resultados incrivelmente promissores faziam prever que a aprovação estaria para breve. Um bom indicador disso mesmo foi o facto de a gigante farmacêutica Novartis ter adquirido o produto, desenvolvido inicialmente em meio académico. No final de agosto, o organismo americano responsável pelos medicamentos, FDA, aprovou o recurso ao Kymriah, para o tratamento daquela doença, em pacientes com menos de 25 anos, e que não responderam à terapia standart.
Conheça a técnica em pormenor bem como o caso da primeira criança, a nível mundial, salva por esta terapia inovadora.
Recorde artigo publicado na VISÃO 1167, de 16 de junho de 2015
A norte-americana Emily Whitehead é a primeira criança com leucemia salva por uma técnica pioneira que chega este ano à Europa. Tornou-se o rosto da esperança na imunoterapia – a grande inovação em oncologia, que também já trata portugueses. Veja a entrevista com os cientistas e médicos que trataram Emily
Este é um texto sobre cancro mas é, antes de mais, sobre amor. Emily Whitehead tem dez anos, é boa aluna, toca piano, pratica desporto. Não fosse o seu ar sereno e maduro, pensaríamos ser uma ‘normal’ miúda da classe média americana. Numa década de vida, Emily já teve a morte marcada duas vezes.
Aos cinco anos, foi diagnosticada com leucemia linfoblástica aguda. Um murro no estômago, mas acompanhado de uma boa notícia: em crianças, há 90% de hipóteses de cura. «Era um bom número. Avançámos para o tratamento com confiança», recorda a mãe, Kari. Mas dois anos de quimioterapia, sem resultados, mostraram que Emily estava do lado errado da estatística. Era resistente à terapia e estava demasiado fraca para aguentar um transplante de medula.
Os médicos mandaram a família para casa.
Já não havia nada a fazer. Kari, fotógrafa, e o marido, Tom, técnico de eletricidade, não se conformaram com o destino antecipado para a sua única filha e bateram à porta de tudo quanto era instituto de investigação que testasse terapêuticas inovadoras. Até que um grupo da Universidade da Pensilvânia lhes abriu uma frecha de esperança: estava prestes a iniciar-se um ensaio clínico a uma técnica nova. Algo que envolvia retirar células do sangue da própria Emily, manipulá-las em laboratório usando um vírus da sida desativado (ver infografia) para que se tornassem capazes de eliminar o tumor, reinjetar estas células ‘melhoradas’ e… esperar. Apesar de muito debilitada, Emily encaixava nos parâmetros do ensaio. Seria a primeira vez que a técnica de CAR do inglês, recetores quiméricos de antigénios desenvolvida pela equipa e denominada CTL 019 seria testada numa criança e naquele tipo de leucemia. E a verdade é que o tratamento quase a matou. Esteve 14 dias ligada a um ventilador, com a febre sem baixar dos quarenta graus. Era o sistema imunitário a fazer o seu trabalho, com as ‘guerreiras’ células T a ‘devorarem’ a doença. «Há uma hipótese num milhão de sobreviver a esta noite», disse a certa altura um dos médicos que a acompanhava. Mas Emily conseguiu passar para o lado certo das estatísticas e despertou no dia do seu sétimo aniversário.
Medicamento vivo
Há um antes e um depois daquela manhã de abril em que Emily nasceu de novo. Depois da cirurgia, da quimioterapia, da radioterapia e da terapia direcionada com medicamentos como o imatinib ou o traztuzumab surge agora um quinto pilar no tratamento do cancro: a imunoterapia, que passa por aproveitar a capacidade de o próprio sistema imunitário do paciente combater a doença.
Durante muito tempo, o imunologista da Universidade da Pensilvânia, Carl June, dedicou-se ao estudo do HIV. Até que decidiu saltar para a oncologia. «Quer em sida, quer em cancro, deparamo-nos com a falência do sistema imunitário», justifica à VISÃO o cientista, hoje uma referência na área. De facto, esta ideia de que o nosso sistema de defesa pode ser a chave para tratar o cancro já não é nova. Há quase 100 anos começou a perceber-se que as infeções pareciam ter efeitos benéficos no combate a certos cancros, havendo a ideia de que os vírus ou bactérias poderiam obrigar o sistema de defesa a sair do torpor, para eliminar os microrganismos e, de caminho, as células tumorais.
Na terapia que salvou Emily, os médicos recolheram os linfócitos T (um tipo de células de defesa) do seu próprio sangue e modificaram-nas geneticamente de forma a que produzissem uns recetores especiais, os tais CAR proteínas que permitem às células T identificar as proteínas na superfície do tumor.
Depois de manipuladas, estas células CAR, uma espécie de «assassinos altamente treinados», são multiplicadas em laboratório, até chegarem aos milhares de milhões.
Os novos soldados são então reinjetados na corrente sanguínea do paciente e, se tudo correr como previsto, reconhecem e matam as células cancerosas. Há quem lhe chame um medicamento vivo. «Metade das pessoas com um diagnóstico de cancro perderam a sua memória imunológica [a proteção adquirida com as vacinas]. O que o nosso trabalho mostra é que é possível consertar o sistema imunitário», explica Carl June. Nos Estados Unidos, há já 160 doentes tratados, no âmbito dos ensaios clínicos. Estão neste grupo crianças e adultos que não respondem à quimioterapia, que não podem ser transplantados ou que foram transplantados mas não melhoraram. À VISÃO, o imunologista norte-americano avançou que o próximo passo será avaliar o valor desta estratégia em tumores sólidos e com poucas alternativas de tratamento, como o cancro do pâncreas.
Atualmente há duas grandes estratégias: tirar os linfócitos, ativá-los cá fora e devolvê-los ao doente, ou então entrar no doente e destravar o sistema imunitário. Os holofotes viraram-se para esta última forma de tratar o cancro quando um medicamento para o melanoma, o ipilimumab, mostrou ter resultados surpreendentes em estados avançados da doença. «Durante muito tempo pensou-se que o sistema imunitário não via o tumor. Até que nos apercebemos de que o problema está nas moléculas cuja função é travar as defesas», explica Bruno Silva Santos, imunologista do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa.
Somos tentados a questionar a necessidade destes bloqueios naturais. Mas digamos que é o preço a pagar pela perpetuação da espécie. Sem mecanismos de frenagem, nenhuma gravidez em que o feto, um elemento estranho ao corpo, tem de ser aceite chegaria ao fim. E uma simples constipação poderia tornar-se numa luta descontrolada. No fundo, tudo resulta de um difícil equilíbrio entre o ligar e o desligar das defesas.
Com o ipilimumab, um anticorpo monoclonal, solta-se um dos travões e conseguem-se resultados surpreendentes na regressão de tumores muito agressivos.
«Vinte por cento dos doentes tratados continuam vivos ao fim de dez anos. Um coisa nunca vista em pacientes com doença avançada », nota Maria José Passos, oncologista do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, que conduziu um ensaio clínico à molécula antes de estar disponível em Portugal (existe nos hospitais desde 2014, com um custo aproximado de 35 mil euros por doente). Dados como este levaram a que os oncologistas, pouco dados ao entusiasmo gratuito, se atrevam a usar palavras como «revolução» para a classificar.
Sem alternativa
Até hoje, Dolores Araújo, 69 anos, está convencida de que foi o desgosto que lhe trouxe a doença. Nunca foi amante de praia e toda a vida trabalhou protegida do sol, entre as quatro paredes de uma cozinha. Ainda assim, não se livrou de uma reprimenda quando foi ao dermatologista mostrar um sinal na perna direita que tinha começado a sangrar. «Só cá vêm às últimas.» Encaminhada para o Instituto Português de Oncologia de Lisboa, para tratar «um melanoma dos ruins», fez a primeira cirurgia a quatro de agosto de 2000, no terceiro aniversário da morte do filho, vítima de um cancro na cabeça. Pouco depois da operação, lá veio a doença outra vez. «Era galopante», relata.
Dolores e o marido Manuel venderam o negócio na área da restauração e a vivenda em Sintra, mudando-se para Lisboa, para estar mais perto do hospital. Foi seis vezes ao bloco a última já contra a vontade do cirurgião, que a tinha visto em paragem cardíaca na quinta cirurgia. Fez a quimioterapia recomendada, sofreu horrores com os efeitos secundários. Mas nunca esmoreceu.
Para não pensar na doença, jardinava, costurava.
«Nos intervalos das operações bordei nove toalhas de linho», conta. Esgotadas todas as hipóteses, acabou por aceitar, com serenidade, a sentença de morte. «Se o meu filho morreu aos 28 anos …» Até que a médica do IPO Maria José Passos lhe propôs a entrada no ensaio clínico ao ipilimumab.
«Só o consentimento informado são 15 páginas de possíveis complicações», mostra o marido e cuidador dedicado. «Como eu não tinha alternativa, aceitei logo», remata Dolores. Com este medicamento ganhou quatro anos de vida. Mas a doença continua lá, à espreita. Pelo que mal apareceram os novos tratamentos da classe da imunoterapia os anti-PDL1 a médica voltou a chamá-la para um ensaio clínico. Desta vez, Dolores não tem sentido qualquer efeito secundário e à segunda dose do tratamento que continuará a fazer de duas em duas semanas, no hospital, em sessões de uma hora e meia, até completar um ano começou a sentir-se mais viva e a ver as manchas do melanoma a diminuir. «Talvez seja a cura», deixa escapar.
«Trabalhei a vida toda e quando podia descansar, veio a doença. Se ficar boa, gostava de dar umas voltinhas pelo mundo.» Ana Castro, oncologista do IPO do Porto, também está otimista. «O futuro vai trazer-nos soluções muito interessantes. A grande aposta é nesta área, eventualmente com combinações entre as várias terapêuticas disponíveis.» Na classe dos anti-PDL-1 há duas novas moléculas o nivolumab e o pembrolizumab ambas autorizadas recentemente pela Agência Europeia do Medicamento, mas ainda só disponíveis em Portugal ao abrigo de ensaios clínicos. Os resultados mais espetaculares têm surgido no melanoma, um tipo de tumor onde as mutações são mais expressivas e em que o papel do sistema imunitário é mais evidente. Mas também há sinais positivos para outros tipos de tumores, como em pulmão ou rim. Ana Castro já teve, inclusivamente, um doente com um cancro renal muito avançado que comprou, mediante uma autorização especial de importação, o pembrolizumab.
O paciente viria a morrer, mas ainda chegou a sentir melhorias no seu estado de saúde.
«Uma das grandes vantagens deste tipo de terapias é que há muito poucos efeitos secundários.
Não cai o cabelo, por exemplo e essa é a principal razão para os doentes as preferirem.»
2 488 combinações possíveis
Bruno Silva Santos é um grande entusiasta desta medicina de precisão. Boa parte do seu trabalho nos últimos anos tem sido na busca dos melhores assassinos de um tumor.
No laboratório, o cientista identificou um tipo de células de defesa, os linfócitos gama delta, como sendo os melhores candidatos.
«Numa situação de doença oncológica, vemos que os linfócitos estão exaustos. O que temos de fazer é arranjar forma de os ativar », explica. A sua equipa testou exatamente 2 488 combinações diferentes, alimentando os linfócitos com fatores de crescimento.
Até que chegaram «à fórmula mágica». Em ratinhos, os gama delta ativados foram eficazes a impedir a disseminação do tumor (leucemia) promovendo a sua regressão.
Este processo de investigação, que custou 600 mil euros e resultou em duas patentes, foi financiado por capital de risco a Portugal Ventures e a Busy Angels. Mas agora, na próxima fase, já de testes em humanos, os valores são de outra escala, na ordem dos quatro milhões de euros. Neste momento, a equipa do IMM está em negociações com entidades dos Estados Unidos, Suíça e Inglaterra.
Nenhuma estratégia resulta sozinha porque o tumor tem várias formas de escapar.
«Por um lado, existem poucas células dendríticas [as que ‘apresentam’ o tumor aos linfócitos T] no nosso organismo. Por outro, as células tumorais têm a capacidade de tornar inerte o sistema imunitário e ainda de se disfarçar, passando despercebidas», resume Helena Florindo, investigadora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Desde 2009 que a cientista traba- lha numa técnica que poderá amplificar os resultados das terapias baseadas no sistema imunitário. A ideia é usar nanopartículas um material que pode ser manipulado à escala do átomo para levar a assinatura tumoral, ou proteínas de superfície, às células dendríticas e ainda troços de material genético (chamado siRNA), anulando a atividade imunossupressora do cancro. «Queremos atacar em duas vertentes», resume Helena Florindo.
Feitiço contra o feiticeiro
Na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, um grupo de neurologistas e investigadores continua a apostar na estratégia de virar o feitiço contra o feiticeiro. Allan Friedman e a sua equipa tentam, há duas décadas, usar o vírus da poliomielite, que deu tanto trabalho a erradicar, para eliminar uma das formas mais temíveis de cancro cerebral, o glioblastoma, recuperando a ideia com mais de um século de que os agentes vivos podem servir para eliminar tumores.
Mas só recentemente, e graças à capacidade de manipular os vírus geneticamente, é que a técnica ganhou alguma credibilidade.
Num ensaio clínico de fase I, Matthias Gromeier, o neurocirurgião que acompanha Friedman nesta aventura, injeta uma forma suavizada do vírus capaz de causar para- lisia e levar à morte diretamente no cérebro, na zona onde está o tumor. E depois é esperar. Primeiro, que o próprio vírus, que precisa das células tumorais para se reproduzir, vá destruindo as células doentes, e, depois que esta infeção propositada desperte o sistema de defesa, chamando ao local mais linfócitos T.
Apesar de os resultados serem ainda preliminares, a regressão completa do tumor numa jovem estudante de enfermagem e num cardiologista reformado trouxe a técnica com o nome de código PVS-RIPO para a ribalta. Há dois meses, o programa de televisão 60 Minutes emitiu uma grande reportagem sobre o assunto, com depoimentos impressionantes e imagens de ressonância magnética muito animadoras, onde mesmo quem não sabe nada de medicina vê perfeitamente a olho nu o desaparecimento do tumor.
Em 22 doentes sujeitos à técnica experimental, 11 mostraram um tipo de resposta positiva. Neste momento, a equipa recruta mais um lote de pacientes para dar início às fases II/III de ensaios clínicos onde, além da segurança do tratamento, também será avaliada a sua eficácia.
De onde quer que venha a solução, hoje há cada vez mais a ideia de que o cancro poderá começar a ser encarado como uma doença crónica. Um longo historial de deceções levou a que já ninguém se atreva a falar em cura. Mas olhando para Emily que se tornou no rosto da esperança que as novas terapias celulares nos trazem, tendo sido até recebida pelo presidente Barack Obama somos tentados a pensar que sim.
Que as palavras ‘cancro’ e ‘cura’ podem começar a ser pronunciadas na mesma frase
CHEGADA À EUROPA
A terapia que salvou Emily estará disponível na Alemanha até ao final deste ano. «Recebemos muitos pedidos de tratamento, de pacientes de todo o mundo, incluindo de Portugal», revela Usman Azam, diretor global da Novartis para a área das terapias celulares. O plano desta farmacêutica é fazer de Leipzig a base europeia, esperando que os restantes Estados europeus encaminhem para aquele centro, fundado em parceria com o Instituto Fraunhofer, os doentes que já esgotaram as hipóteses de tratamento convencional. A Novartis tornou-se parceira da Universidade da Pensilvânia em 2012, partilhando a patente desta terapia, denominada CTL019, para a leucemia linfoblástica aguda que não reage ao tratamento de primeira linha. O custo da terapêutica é ainda uma incógnita mas irá aproximar-se do valor de um transplante de medula, à volta dos 500 mil euros.
Stephan Grupp, Oncologista pediátrico
‘Recebo pedidos de ajuda de todo o mundo’
O especialista em terapias celulares já tratou 48 crianças
Como foi ver a recuperação de Emily?
Nunca tínhamos visto nada assim. Foi extraordinário! E hoje sabemos que as crianças que estão bem ao fim de um ano de tratamento não têm recaídas. Entretanto, tratámos 48 crianças, sem qualquer opção de cura, e 94% delas entraram em remissão ao fim de três semanas.
Dá resposta a todos os pedidos?
Para já, não conseguimos tratar todos os doentes. Temos uma lista de espera de quatro meses e precisamos de outro mês para iniciar o tratamento [para trabalho de laboratório de manipulação das células]. Por isso estou a formar equipas de outros centros médicos e a colaborar na expansão da técnica para a Europa. Recebemos pedidos de ajuda de todo o mundo. Custa-me muito não poder ajudar.
Qualquer hospital poderá reproduzir esta técnica?
Idealmente sim, com equipas habituadas a fazer transplantes de medula apesar de ser preciso formação específica, em hospitais com uma boa unidade de cuidados intensivos.