Tirou o curso quando ainda ninguém sabia o que era a sua profissão. Talvez por isso se tenha batido sempre pela dignificação dos nutricionistas, numa constante confusão entre a sua carreira individual e o interesse coletivo. Não é por acaso que foi, durante mais de dez anos, presidente da Associação Portuguesa dos Nutricionistas. E que ocupa o cargo de bastonária da Ordem, desde que ela existe. Aos 48 anos, estreou-se nos livros com o título Comer Bem é o Melhor Remédio (Porto Editora).
Depois de vários artigos científicos publicados, o que a levou a escrever para o grande público?
Faz parte do sonho, é um marco da vida poder escrever sobre aquilo que penso. E ainda tive a sorte de a minha vontade se aliar à da editora, e por isso escrevi um livro diferente do que se costuma encontrar nesta área, sem ser de mitos ou para vender imenso à chegada do verão.
E afinal resultou em quê?
Trata-se de um livro para portugueses e é acerca do que deve ser o “comer bem” – e daí o título. Serve a população em geral, que pode voltar a ele sempre que tiver uma dúvida acerca da alimentação saudável.
Porquê só para portugueses?
Tento explorar a nossa cultura, tradição e hábitos alimentares. Pode haver várias formas de comer saudável, mas em Portugal temos a dieta mediterrânica e a atlântica, que são muito idênticas.
O que as diferencia?
A atlântica tem algumas especificidades, nomeadamente no que diz respeito ao pescado. Mas o conceito acaba por ser o mesmo: respeitar a tradição e a sazonalidade, basear-se nos hortícolas, na fruta e cereais e ter uma presença parca de fornecedores proteicos, como a carne e o peixe. E marcando-se vincadamente a diferença entre o dia a dia alimentar e a festividade.
Nos dias de festa, tudo é permitido?
Nada é proibido. Mas há que ter a noção de que uma coisa é o dia a dia e outra o que se reserva para as festas – o exagero alimentar, a comida sobrecarregada, de mais difícil digestão, os doces.
Reparei que tem um capítulo de receitas de doces no seu livro…
Teve de ser. Estas noções devem ser todas dadas, porque possuímos uma grande tradição da doçaria conventual, por exemplo, que é para respeitar enquanto valor cultural e económico. Costumo dizer que não é festa todos os dias. Então também não deve ser uma festa alimentar – no sentido do exagero – todos os dias.
Vou roubar-lhe uma pergunta que está no seu livro: “Afinal o que devemos ou não comer?”
Desde logo, a comida tem de nos dar prazer e sensação de bem-estar. Deve também respeitar os gostos individuais, a cultura e a tradição.
E se soubermos pouco sobre nutrição, o segredo estará sempre em variar, não esquecendo algumas regras que evoco neste livro, baseadas na dieta mediterrânica e na roda dos alimentos – um instrumento feito por nutricionistas portugueses para
a população portuguesa.
Essa roda não está desatualizada?
Foi revista em 2006, com base nas conclusões da investigação científica
e o melhor saber nesta área.
Que diferenças apresenta?
A água aparece no centro da roda, para nos lembrar da sua importância, aumenta a proporção de fruta e hortícolas, separando-os em dois grupos distintos, e diminui a das gorduras e dos fornecedores proteicos (carne, pescado e ovos). E também se destaca as leguminosas, para dar mais importância a este produto típico da nossa gastronomia e com uma riqueza imensa em termos nutricionais (fornecedores de fibra, proteínas
e hidratos de carbono).
A ciência nesta área é particularmente dinâmica.
O saber científico felizmente vai evoluindo e muitas vezes até se brinca e ridiculariza com esta evolução.
Como é que o comum dos mortais pode distinguir a “ciência a evoluir” de mais um estudo?
Só devem dar ouvidos às recomendações das grandes autoridades, como a Organização Mundial de Saúde, ou, em Portugal, a Direção-Geral de Saúde. Quando elas emanam uma recomendação, resulta do compilar de investigação científica por parte de peritos, como no ano passado, quando se alertou para os malefícios da carne vermelha e dos enchidos. É que os investigadores publicam em revistas científicas a que o cidadão comum não tem acesso e nem todas têm o mesmo valor.
Quem nos garante que essas recomendações não voltam para trás? Ainda há uns anos, a manteiga era um veneno face à margarina e hoje diz-se o contrário…
Nesse caso, atenção: o que muito provavelmente esteve por trás dessas recomendações, entre aspas, foram interesses de grandes potências.
Da indústria alimentar?
Sim, mas não só. Por exemplo, em Portugal somos grandes produtores de azeite, mas não temos força suficiente para gerar informação científica como os EUA, que produzem muita soja, que está na base dos óleos.
É por os ovos estarem em desuso que lhes destina um capítulo das receitas do chefe Hélio Loureiro?
É verdade. Os ovos são uma fonte barata de proteína de elevado valor biológico – têm os aminoácidos essenciais, aqueles que o nosso organismo não consegue produzir.
São um bom exemplo de um produto que era malvisto e que agora é glorificado.
A gema do ovo tem de facto colesterol, mas o ovo vale mais do que a sua gema e do que o colesterol. É o conjunto dos seus nutrientes, nomeadamente a clara, riquíssima em proteína. Daí ter colocado as receitas para que se perceba que se trata de uma solução interessante.
Também deixa espaço para um prato vegetariano. Ser vegetariano nem sempre é sinónimo de “saudável”, pois não?
Não tenho fundamentalismos em relação a qualquer tipo de forma de comer. Porém, essa nota é importantíssima. De facto, ser vegetariano não quer dizer comer bem ou equilibrado. Lá por não existirem produtos de origem animal na alimentação, ela não se transforma em saudável – pode estar carregada de gordura e de sal, por exemplo. Ao fazermos essa mudança de regime, temos de nos acautelar ou aconselhar com profissionais.
Com tanta conversa em torno do açúcar e do mal que ele faz, o sal tem ficado esquecido. E não devia, certo?
Concordo consigo na íntegra. O erro alimentar que mais faz perigar a saúde dos portugueses é o sal. Há muito para fazer nesse domínio e seria muito eficaz se o Governo criasse novas estratégias para lidar com o excesso de consumo.
Que estratégias?
As autoridades internacionais dizem que não devemos ingerir mais do que cinco gramas por dia, mas os estudos apontam para que os portugueses consumam mais do dobro. Logo, há que reduzir para metade – com uma grande campanha, posso passar essa mensagem. Depois deveria agir- -se de forma legislativa, firmando um compromisso sério entre a restauração, indústria alimentar e o Governo, com datas específicas.
Quais são os maiores veículos de sal na nossa alimentação?
Continua a ser o pão – apesar de já se ter regulamentado nesta matéria –,
a sopa e os cereais.
Quais são as consequências dessa ingestão a dobrar?
Desde logo a hipertensão. Somos dos países com maior prevalência de hipertensão arterial: 40% dos portugueses são hipertensos. É por isso que a principal causa de morte são as doenças cardiovasculares. Devíamos ter programas muito fortes para que a população portuguesa tivesse um consumo de sal adequado.
Porque não existem?
Porque o Ministério da Saúde entende ter outras prioridades. Porque de facto é preciso mão forte para chegar a acordos com a indústria e a restauração. Porque se impõe pensar que a prevenção é mesmo o melhor remédio. E em Portugal continua a apostar-se muito no tratamento e quase nada em prevenção – apenas 3% do Orçamento do Estado.
Quando uma pessoa passa fome, a nutrição torna-se secundária? Estou a pensar nos cabazes das associações de solidariedade social carregados de bolos e bolachas…
É difícil falar sobre esse assunto… Porque acho que está muito mal e não pode ser assim: alimentar no momento e a dar doença no futuro. Fornecemos energia sim, e é ela que permite viver, mas ao mesmo tempo estamos a tirar vida. Espero que as instituições pensem na nobreza do ato de dar, mas que o façam com base nos conhecimentos que hoje existem. Quer isso dizer que os cabazes não podem levar produtos sobrecarregados de açúcar, gorduras e sal. Quem quer ser sério, não pode trabalhar assim.
A pobreza faz aumentar a obesidade, como diz a voz corrente?
Os estudos dizem que sim. Se estratificarmos a obesidade por classes sociais, ela prevalece entre os mais carentes e iletrados. Ou seja, os que apresentam menos estudos e mais dificuldades económicas têm menos saúde e mais suscetibilidade para serem obesos, porque não estruturam a sua vida e descuram a alimentação.
É a velha questão: Para comermos bem precisamos de muito dinheiro?
Não precisamos de tanto como se imagina. Mas, quando se tem muito pouco, não se consegue comer adequadamente, porque são precisos, pelo menos, cinco euros por dia, 110 por mês.
Quando seguiu o seu curso, não poderia imaginar como a nutrição iria evoluir. Desde logo há muito mais cursos e profissionais. Como é a empregabilidade na profissão?
Não há nutricionistas a mais, podem é não estar nos sítios corretos para fazer face aos problemas de saúde do nosso País.
Onde faltam nutricionistas?
Claramente nos cuidados de saúde primários e nas escolas, mas essa realidade só muda se o Estado quiser mesmo apostar na saúde da população. Não percebo porque é que isto não acontece…
Já fez pressão para que isso acontecesse?
O mais possível. Ao longo dos últimos anos, já falei com vários ministérios da Saúde e da Educação, tentando demonstrar que não era difícil Portugal assumir a liderança da saúde da população através da alimentação. Desde logo, tem profissionais de excelência, como os melhores nutricionistas.
Hoje, não estaremos a exacerbar a importância da alimentação?
Não, porque é um dos determinantes com mais impacto na nossa saúde. Se me alimento corretamente, terei uma vida com menos sobressaltos. Se não o fizer, só poderei ter sorte se beneficiar de uma genética fantástica. Por isso, devemos educar a população desde pequena para que o ato alimentar seja de prazer e de saúde. Comer saudável tem de ser convívio, família, amigos e equilíbrio. Por outro lado, crescem os mitos e falsos conceitos.
Afinal, sabe-se mais hoje sobre alimentação ou andamos só baralhados
Estamos mais baralhados, claramente.
Qual é o mito mais grave para si?
São imensos. Desde a água engordar, o leite fazer mal ou as sementes serem importantíssimas, mas só as exóticas. As dietas da moda, as paleo, sem glúten… É preciso que as pessoas se capacitem de que atrás disto tudo há negócios. Comer saudável é simples, desde que se vá variando, com bom senso.
Em sua casa, come-se mesmo bem?
Procuro que as refeições sejam o mais possível em família (tento sempre ir almoçar a casa com os meus filhos), e, quanto aos lanches da manhã e da tarde, além de pensar nos meus, sempre providenciei os deles. Não podemos demitirmo-nos dessa responsabilidade.