Com as saídas do IC8 para Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos cortadas devido ao incêndio, muitas das pessoas que na noite de sábado, dia 16, fugiram das várias aldeias desses concelhos e também das de Pedrógão Grande foram encontrar refúgio no primeiro desvio que encontraram. Em Avelar, localidade do concelho vizinho de Ansião, decorria por essa hora uma festa na sede do clube de futebol local. Quando se aperceberam da gravidade e da tragédia que estava a acontecer lá fora os convivas abandonaram a festa e começaram a organizar um plano de ajuda. Com o apoio dos técnicos da Segurança Social, da autarquia de Ansião, das juntas de freguesia, de várias instituições locais e um número infindável de voluntários, receberam mais de uma centena de pessoas desesperadas a quem prestaram cuidados médicos, alimentaram, forneceram roupa e proporcionaram umas horas de descanso. E o trabalho, assegura Maribel Fareleiro, “ainda mal começou”. A VISÃO foi encontrar a assistente social, de 44 anos, da câmara municipal de Ansião, na segunda-feira, dia 18, ainda o incêndio estava bem longe de estar controlado. O melhor é ouvi-la em discurso direto a explicar como tudo aconteceu e como uma pequena localidade conseguiu mobilizar e organizar uma ajuda que poderia servir de exemplo.
Quando é que se aperceberam do que estava a suceder?
Começamos a receber as primeiras vítimas por volta das 20 horas de sábado. A primeira foi uma criança, uma menina de sete anos que vinha só de cuecas, sem mais roupa, e descalça. Foi uma vizinha que a trouxe até ao hospital de Avelar. Ela estava sozinha em casa porque os pais estavam a tentar apagar o incêndio. Quando chegou vinha muito assustada e nós tentámos acalmá-la, arranjamos-lhe roupa, demos-lhe de comer e levamo-la para a Escola Profissional e Tecnológica de Sicó, para lá dormir.
Conseguiram encontrar os pais da menina?
Sim, estávamos sem linhas telefónicas mas, por volta das 4 ou 5 horas da manhã chegou um primo que ficou mesmo a dormir junto dela. Os pais apareceram mais tarde. Eles já cá tinham vindo duas vezes mas ninguém lhes sabia dizer nada porque a miúda foi encaminhada cedo para o hospital e depois para a escola. Mas depois lá conseguimos falar com eles porque o telefone do pai, de que a miúda nos tinha dado o número, já funcionava. Acabou por ir embora com os pais durante o dia de domingo.
Mas logo de seguida começaram a aparecer mais pessoas. Quando é que se aperceberam da dimensão do que estava a suceder na zona de Pedrógão?
Foi na altura em que começaram a aparecer muitas pessoas e se começaram a concentrar todas no parque de estacionamento em frente ao campo de futebol. Como havia uma festa na sede do Atlético Clube Avelarense, as pessoas que chegavam iam-se aproximando. E fomos vendo que muitas delas estavam descalças, a chorar dentro dos carros e contaram-nos que tinham fugido do incêndio. Nessa altura percebemos que estávamos perante uma tragédia de dimensões de que não tínhamos noção. Ao todo, chegaram a procurar abrigo aqui em Avelar mais de uma centena de pessoas. Era para aqui que vinham porque, não podendo sair em Castanheira de Pêra nem em Figueiró dos Vinhos, esta é a primeira saída do IC8.
Nessa altura mobilizamo-nos de imediato e começamos a montar um plano de intervenção. Estavam aqui mais de cem pessoas no jantar e a maioria delas começou a servir refeições a quem chegava. O presidente do clube, que é também diretor da Escola Profissional e Tecnológica de Sicó, que tem uma residência, tratou de arranjar alojamento para cerca de 40 pessoas. Outras foram para o hospital, as que necessitavam de tratamento, e outras ficaram aqui na sede. Conseguimos reunir colchões e ficaram cá essa noite.
Entretanto começamos também a acionar outras medidas para responder à situação. Às dez e meia, onze horas da noite, tínhamos as equipas prontas no terreno. Uma equipa da Segurança Social deslocou-se de imediato para o hospital particular para receber quem lá chegava, aqui na sede havia gente a tratar de receber e distribuir roupa, outros a receber alimentos, outros a confecionar as refeições, outros a servir. Chegamos a ter aqui mais de 300 voluntários que iam chegando de todo o lado para ajudar.
E quem organizou toda essa logística?
Foi um conjunto de pessoas e entidades. A Segurança Social disponibilizou técnicos e, localmente, foi a câmara municipal de Ansião, em colaboração com as juntas de freguesia que contactou escolas para funcionarem como armazéns de fruta, água e outros alimentos.
Também demos apoio aos bombeiros e às restantes forças de segurança que entretanto ficaram alojadas no mercado municipal, que passou a ser o ponto central deste plano de ajuda.
Foi uma onda de solidariedade enorme e rápida…
Sim, foi fantástico. Ainda no domingo tivemos aqui um grupo de seis voluntários que veio de Setúbal. Trouxeram roupa, bastantes alimentos e até uma canja já confecionada. Tivemos oferta de medicamentos de uma farmácia de Cascais, também. A solidariedade tem chegado de todo o lado.
Como é que se chega ao fim de um dia destes?
No domingo quando saí daqui senti medo. Medo até de chegar a casa. Tive vontade de chorar, de libertar. Não foi fácil ter de comunicar a morte de familiares a muitas destas pessoas que aqui estavam.
E teve muitas situações dessas?
Tivemos uma muito complicada de um casal que ficou preso no fogo dentro do carro. Os filhos estavam aqui connosco e chegou um primo deles que conseguiu passar pelo incêndio e confirmou que os tios tinham ficado queimados mas não tinha coragem de dizer aos primos. Ele depois até veio publicamente agradecer o nosso apoio.
E o trabalho acaba aqui?
Não, nem pensar. O apoio às famílias ainda mal começou. No primeiro momento a nossa intervenção foi alimentar e alojar as pessoas. A segunda fase será o confronto com a morte e a identificação dos cadáveres. A terceira será a intervenção em termos de habitação, saber quais são as necessidades, mas neste momento ainda nem sabemos quantas famílias ficaram sem casa. Sabemos que vamos ter muito trabalho pela frente, que vamos ficar muito limitados porque sentimos que agora a ajuda está a chegar de todo o lado mas depois a onda de solidariedade passa. É normal. Assusta-me as intervenções que têm de ser feitas nas habitações em termos de obras porque as autarquias não estão preparadas e não têm verbas para as fazer e as famílias também não têm dinheiro. Vai ser muito complicado. E vamos ter novas famílias, famílias que vão ter de ser reconstruídas. Vai ser uma realidade muito diferente.