“Sabe o que é arrumar 72 packs de seis litros de leite ao longo de um dia? Dizer ‘boa tarde’ ao cliente quatro vezes e não ter resposta, para no fim, depois de fazer a conta, me gritarem ‘Então e saco? Acha que vou levar isto na mão?’ Lidar com as pessoas que roubam, pedir para ver a mala quando o alarme apita, ouvir ‘não’, e não poder fazer nada, porque há só um segurança para seis lojas e ele está longe? Ser obrigada a fazer uma média de 50 segundos por cliente, durante uma jornada de trabalho? Ter de sorrir sempre, por mais esgotante e cansativo que esteja a ser o dia? E ao final do mês receber 618, 620 euros?”
Tudo isto é rotina, diz Alice. Mas é uma rotina que se aceita, ou que se aprende a aceitar, suspira. É o que é, e na verdade não há empregos fáceis. A vida da operadora de caixa de uma loja Dia Portugal/Minipreço do centro de Lisboa só se tornou realmente insuportável quando decidiu ser mãe.
Como o pai da criança era polícia e trabalhava por turnos, Alice tinha direito, por lei, a pedir horário fixo, para conseguir ir levar o filho à escola de manhã e ir buscá-lo ao fim da tarde, e ficar livre aos fins de semana. Ela assim fez: em 2010, entregou nos recursos humanos todos os documentos necessários: atestado de residência da Junta de Freguesia, declaração dos horários da escola e do ATL, declaração do emprego do companheiro. Trinta dias depois, foi-lhe atribuído o horário fixo (depois de tentarem, sem sucesso, transferi-la de loja). Mas as coisas não seriam assim tão simples. Teria de continuar a aparecer no supermercado aos sábados, domingos e feriados. Alice ficou perdida. O que faria ela ao filho nesses dias?
Só ao fim de um ano de uma batalha intensa pelos seus direitos, e com a intervenção da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, ficou a situação resolvida (e o acordo não inclui os feriados, apenas os fins de semana). “Somos crucificadas por sermos mães”, lamenta Alice. O mundo não é a preto e branco, dividido exclusivamente entre oprimidos e opressores também não é fácil para uma cadeia de supermercados, que precisa de gente desde muito cedo até muito tarde, sete dias por semana, acomodar funcionários num horário de dias úteis das nove às seis. Alice compreende isso. O que não compreende é o assédio moral a que diz ter sido sujeita durante e depois do processo de obtenção de horário fixo. “O meu ordenado, entretanto, estagnou. Não fui aumentada durante cinco anos, enquanto via os colegas à minha volta terem aumentos, e quando finalmente aconteceu deram-me mais 3 euros por mês. Toda a gente que pede horário fixo fica marcada. A partir daí, até para sair, fechar a caixa ou fazer uma pausa tinha de tocar imensas vezes na campainha, para chamar a chefe. É uma pressão permanente, horrível.”
As queixas de Alice (que prefere não ver divulgado o apelido, com medo de sofrer represálias) não são caso isolado. A VISÃO falou com vários trabalhadores de grandes superfícies, que descrevem um universo laboral inclemente, de trabalho precário (um em cada quatro funcionários não tem vínculo efetivo), mal pago, feito num ambiente de permanente coerção e medo. E a pisar os limites da lei: no ano passado, uma ação da Autoridade para as Condições de Trabalho que consistiu em 175 inspeções a grandes superfícies resultou em mais de cem procedimentos inspetivos decorrentes de “irregularidades”, fundamentalmente “no âmbito da elaboração de horários de trabalho, registos do tempo de trabalho, intervalos de descanso e trabalho por turnos”.
SEM AUTORIZAÇÃO PARA IR À CASA DE BANHO
O trabalho de uma operadora de caixa é muito mais árduo do que parece. “Imagine-se uma pessoa a passar 60 paletes de leite num dia, e ainda ter de fazer o ensacamento, como obrigam algumas cadeias. Em pé, até, porque há supermercados que retiram as cadeiras porque assim o funcionário é mais rápido. Oito horas a fazer o mesmo movimento com o corpo, na caixa. Ou a cortar queijo: eu, quando vou às compras, não tenho coragem de pedir queijo cortado de fresco, porque sei que é um serviço duro”, diz Célia Lopes, dirigente do CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal. “Por causa de tarefas como essas, muitas vezes os trabalhadores ficam incapacitados, com tendinites, e não conseguem continuar no mesmo serviço.” E a lei permite o despedimento, desde que a empresa prove que não tem alternativa para o funcionário, ainda que a lesão tenha sido feita no trabalho.”Há vários casos de pessoas que trabalham a comprimidos para as dores”, garante Luísa Alves, 48 anos, funcionária de um Pingo Doce nas Olaias, Lisboa. “Tenho uma colega da frutaria que tem 30 e tal anos e já anda de bengala. Uma caixa de sacos de batatas tem 15 quilos… E o ritmo de trabalho é tão intenso que andam literalmente a correr, e os acidentes acontecem.” Segundo um estudo da Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição, mais de quatro mil colaboradores – 4,7% de um setor com 86 700 funcionários – de grandes superfícies estiveram de baixa devido a acidentes de trabalho ou doença, em 2012 (últimos dados disponíveis).
O ofício é espinhoso, mas pode sempre ser pior. “Portas-te mal e vais para a peixaria ou para a cozinha, desfiar bacalhau ou pato durante umas horas.” Esta é uma das ameaças mais comuns nos supermercados, acusa Luísa Alves, que descreve um ambiente de pressão permanente por parte de chefias intermédias, elas próprias pressionadas para apresentarem bons resultados com o menor número possível de trabalhadores.
Nas alturas de maior movimento, uma simples paragem para se ir à casa de banho pode ser um problema logístico tornou-se infame, no meio, o caso de uma mulher que se urinou na caixa, num Pingo Doce, incidente que o sindicato atribui a uma mesquinhez do chefe de serviço, por não ter dado autorização à funcionária para fazer uma pausa (o Pingo Doce, em resposta à VISÃO, garante que a situação foi alvo de um processo de averiguação “que concluiu pela não existência, em nenhum momento, de intenção por parte da chefia de impedir a pausa da colaboradora”).
“PRISÃO DE ALTA SEGURANÇA”
“Guantánamo. É esse o nome que lhe damos.” Rui Ferrage, 56 anos, fala da plataforma logística da Sonae (proprietária do Continente e da Worten), na Azambuja. A comparação com o centro de detenção americano em Cuba, justifica o empregado de armazém, deve-se às exigências de produtividade “desumanas e surreais” e às “cargas pesadíssimas”, que podem incluir preparar 40 paletes diárias de frigoríficos ou máquinas de lavar roupa “Há muitas baixas de pessoas com lesões na coluna; algumas são operadas e, quando regressam, já não conseguem ter acesso a prémios e aumentos porque o problema de saúde lhes afeta a produtividade”, diz.
Mas a alcunha nasceu sobretudo porque as pessoas se sentem presas, acrescenta Ferrage. “As zonas de eletrónica e têxteis são tipo prisão de alta segurança. Vivemos enclausurados. A área dos artigos topo de gama, como os smartphones, então, está mesmo protegida por grades. Para sair, temos de falar com a chefia, que por sua vez chama o segurança. Mas num turno há só dois para uma área equivalente a três campos de futebol, com 400 ou 500 funcionários. Se queremos ir à casa de banho, temos de esperar 10, 15, 20 minutos, porque o segurança pode estar na outra ponta do armazém. E depois fica à espera que a gente termine.” À VISÃO, a Sonae explica que o controlo dos acessos na zona fechada da plataforma logística é imprescindível porque atua “numa área com elevados níveis de inovação tecnológica, existindo, por conseguinte, a necessidade (.) de proteger a propriedade física da empresa”.
Rui trabalha nos armazéns da Sonae há 17 anos. Leva para casa entre 540 e 560 euros, incluindo o subsídio de refeição “Para viver com as condições mínimas, tenho de ter dois empregos: saio do armazém ao fim da tarde e ainda vou dar aulas de basquetebol noite adentro.” Mas que os salários na base da grande distribuição são baixos é informação que não faz erguer sobrancelhas. Afinal, a função de operador de caixa ou de empregado de armazém é trabalho pouco especializado, não pede grandes qualificações, e os rendimentos refletem essa realidade. Tudo é relativo.
Mas a relatividade tem mais do que uma forma de ser aplicada: um estudo da Proteste Investe, publicado em maio do ano passado, coloca a Jerónimo Martins (Pingo Doce) e a Sonae em primeiro e terceiro lugar da desigualdade entre as grandes empresas nacionais, quando se compara as remunerações dos presidentes do conselho de administração com as dos seus trabalhadores. Pedro Soares dos Santos, CEO da Jerónimo Martins, ganhou, em 2015, 90 vezes mais do que o salário médio praticado na companhia; Paulo de Azevedo, da Sonae, auferiu 69 vezes mais.
HORÁRIOS-SURPRESA
Se já é angustiante viver com salários tão baixos, mais complicado se torna ter uma vida familiar quando não se consegue sequer organizar o dia seguinte consequência das mudanças constantes de horários, até de um dia para o outro, situação que, aliás, está na origem de grande parte dos processos levantados pela Autoridade para as Condições de Trabalho. “É um molho de horários. Contra tudo o que está estipulado no Contrato Coletivo de Trabalho, que determina turnos planeados com pelo menos um mês de antecedência, acontece muito quererem que eu hoje entre às 7h, amanhã às 11h, depois às 7h, depois às 13h”, diz Luísa Alves.
Célia Lopes, do CESP, o sindicato, acrescenta ao problema das escalas as pressões sobre os trabalhadores para não tirarem folgas ao fim de semana e separarem os dias de descanso. “Assim uma pessoa não descansa. Quando temos dois dias, no primeiro limpamos a casa e no segundo descansamos. Se só temos um dia, limpamos a casa, vamos trabalhar e daí a 3 dias, quando chegar a folga seguinte, já está na hora de limpar a casa outra vez.” Uma fonte oficial do Pingo Doce fundamenta as dificuldades de gestão de horários com as “taxas de absentismo elevadas” e as flutuações de movimento de clientes ao longo do dia, o que “aumenta a pressão sobre as equipas, resultando num desafio de gestão difícil para os responsáveis das lojas”.
É essa dificuldade de gestão que leva muitas vezes as chefias a sugerirem às mães solteiras a mudança de loja, quando estas pedem o horário fixo. Mas essas alternativas são presentes envenenados, aponta Paulo Borba, responsável por uma loja do Dia Portugal/ Minipreço em Miratejo, junto a Almada, e dirigente sindical. “Acompanhei o caso de uma senhora, mãe de dois filhos, que trabalhava na Rua Morais Soares, em Lisboa, e morava ali ao lado, em Arroios, que pediu o horário fixo porque o marido foi trabalhar para Angola. Quiseram logo convencê-la a transferir-se para Sintra. Se ela aceitasse, estava desgraçada da vida. E como hoje há cada vez mais mães solteiras, isto está a agravar-se.” No supermercado que gere, Paulo Borba diz esforçar-se por conquistar as melhores condições possíveis para os seus colegas. “A minha loja é das poucas que conheço que tem espaço de refeição. Nas outras? As pessoas comem na rua, no carro, no jardim, na casa de banho. Não ganham propriamente dinheiro suficiente para irem almoçar ao restaurante.”Esse combate pelos direitos dos trabalhadores tem-lhe custado caro, assegura. “Estive 20 anos a trabalhar na empresa com a folha limpa. Imediatamente depois de assumir a função de dirigente sindical, e apesar de não ter feito nada diferente, levei quatro processos disciplinares. Quatro!”
Um dos primeiros litígios que Borba acompanhou foi precisamente o de Alice, a operadora de caixa que passou mais de um ano a lutar pelo direito a não trabalhar aos sábados e domingos. “Foi uma guerra difícil”, recorda Alice, “e ainda assim não consegui os feriados: 15 dias antes de um, tenho de ir trabalhar todos os dias meia hora mais cedo, para compensar esses dias. Mas podia ser pior.”
Pode sempre ser pior.
OS PROBLEMAS MAIS FREQUENTES
Os funcionários de supermercados e dirigentes sindicais ouvidos pela VISÃO fazem uma longa lista de queixas. Estas são algumas:
> Troca constante de horários
> Objetivos de produtividade “desumanos”
> Salários baixos
> Assédio moral
> Perseguição aos delegados sindicais
> Tentativas por parte das chefias de transferirem os funcionários quando estes reivindicam o direito de ter horário fixo
> Ausência de local para refeições
> Aumentos arbitrários
QUEM É O TRABALHADOR DE SUPERMERCADO?
Mulher, sub-40 anos, empregada a tempo inteiro. É este o perfil médio dos funcionários dos supermercados, segundo um estudo da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, referente a 2012 (últimos dados disponíveis)
> Há 86 700 trabalhadores nas grandes superfícies em Portugal
> 72,8% estão efetivos
> 68,6% são mulheres
> Apenas 10% trabalha em part-time (a média da UE é 23%)
> 73% tem menos de 40 anos
> 45% está há menos de 5 anos na empresa
> 8,4% de taxa de absentismo (55,4% por doença ou acidente de trabalho, 29,5% por maternidade/ paternidade)
Reportagem publicada na VISÃO 1253