“Queres saber se os teus amigos gostam mesmo de ti e te respeitam? Diz-lhes que és bissexual.” Não se estranha que isto fosse um choque em finais do século XIX, quando Freud defendia que os humanos nasciam com predisposição para a bissexualidade. Depois, os tempos começaram a mudar, como cantava Dylan, nos loucos anos da revolução sexual.
Hoje, a ambiguidade ainda é um papão que assusta muita gente. A diferença é que, após décadas de luta pelos direitos da população lésbica, gay, bi e trans, os estudos se centram agora na terceira letra da sigla LGBT, com algumas surpresas. Comecemos pelo Reino Unido, onde um recente inquérito (da You-Gov) feito a partir da adaptação da escala do investigador Alfred Kinsey, criada nos anos 50, revelou que quase um quarto (23%) das pessoas se identificou como não exclusivamente heterossexual, tendo esse valor subido para metade (49%) na faixa etária entre os 18 e os 24 anos. Conclusão: um em cada dois Millennials admitiu desejos, sentimentos e experiências num registo intermédio entre a heterossexualidade e a homossexualidade.
As estatísticas com dados de 2015 reforçam a tendência, já que 1,7% dos britânicos se classificou no grupo LGB e, nas faixas etárias entre os 16 e os 24 anos, o número ascendeu a 3,3 por cento. Neste grupo, e pela primeira vez, a percentagem de mulheres que se identificaram como bi (1,8%) superou o das lésbicas, registando um aumento de 45% no espaço de três anos.
Do outro lado do Atlântico, um inquérito do Centro para a Prevenção e Controlo de Doenças americano, que envolveu mais de nove mil pessoas com idades entre os 18 e os 44 anos, evidenciou que 5,5% das mulheres e 2% dos homens se identificava como bi, superando os resultados obtidos no inquérito anterior (3,9% e 1,2%, respetivamente). Isto não quer dizer que o estigma tenha acabado.
Contudo, uma nova atitude, liderada pelas novas gerações, começa a conquistar terreno, com mais ou menos visibilidade e reações muito distintas por parte de familiares e amigos. Por vezes, é mais fácil responder a terceiros “não tens nada com isso”. Mas aqui, como na vida em geral, o segredo está em cada um encontrar um ponto de equilíbrio, consigo e com os outros.
NÃO, NÃO É UMA FASE
“Justificar a minha identidade é algo que dispenso fazer, embora já tenha dado por mim a explicar que sentir atração por dois sexos não é igual a querer estar com toda a gente.” A estudante universitária Margarida Malheiros, 21 anos, é assumidamente bi. Sem nenhuma ligação amorosa de momento, revela, sem problemas, que viveu dois relacionamentos monogâmicos com homens e algumas relações de curta duração com mulheres e homens.
Cada um desses vínculos, assegura, “implica gerir expectativas, comunicar necessidades e perceber se se é capaz de aderir às da outra pessoa, e vice-versa.” A descoberta da bissexualidade não foi imediata. “Quando eu tinha 13 anos, não via as experiências com raparigas como parte da minha identidade”, admite Margarida. “Só depois de alguma introspeção é que reconheci essas experiências como válidas, sem achar que ‘elas não contam porque não há um pénis envolvido’ e que não são para levar a sério.” Foi com pessoas que conheceu na comunidade queer (significa “estranho”, “fora da norma”, e é uma das letras que foi adicionada à sigla LGBT, ainda que raramente conste do acrónimo) que passou a entender a sua sexualidade num espetro de atração, rejeitando a etiqueta que tantas vezes é imposta a pessoas como ela. Não a confundam, pois, com uma heterossexual que tem contactos ocasionais com pessoas do mesmo género: “Nem eu sou bi-curiosa, nem isto é uma fase.” E remata: “Se não me aceitam, ou me desrespeitam, sou a primeira a afastar-me.” Desengane-se assim quem pensa que a postura “nem azul nem rosa” se resume a um capricho juvenil que passa com a idade. Um estudo longitudinal americano publicado há quatro anos nos Archives of Sexual Behavior revelou, após uma década, que 1,3% das mulheres da amostra (idade média: 47 anos) se identificaram como bissexuais e 1,2% como lésbicas, sugerindo uma orientação sexual fluida numa pequena parte do universo feminino.
Se dúvidas houvesse “isto é só na América”, a pesquisa europeia liderada pela socióloga Elizabeth McClintock, com mais de 10 mil inquiridos, deita esse mito por terra: quando expostos a imagens de mulheres e de homens nus ao ar livre, três mulheres por cada homem sentiam atração por ambos os sexos. A equipa explicou os resultados pelo peso de fatores sociais, como o nível de escolarização, e a maior complexidade da química cerebral feminina em matéria de desejo.
SAIR DO ARMÁRIO DUAS VEZES
A âncora tatuada há seis anos diz tudo. Ou quase. Esse símbolo marca o ponto de viragem de Helena Lopes Braga, 33 anos, que juntamente com outras duas mulheres fundou o Actibistas, Coletivo pela Visibilidade Bissexual (com presença na marcha do orgulho LGBT desde 2013 e mais de mil seguidores na página do Facebook). Apesar dos contactos íntimos pontuais, na adolescência, com outras raparigas, os seus relacionamentos tinham sido sempre com homens. Só aos 26 anos, quando já estava em Lisboa há dois, é que se identificou com a letra L, de lésbica. Porém, a atração pelo sexo oposto continuava presente.
Só então fez novo coming out (saída do armário). A viver há um ano com um músico heterossexual, numa relação aberta, Helena entende que “a fluidez identitária acontece nas pessoas mais novas por estarem habituadas a viver na instabilidade e disponíveis para aceitar mudanças”. Porém, “continuamos a ter de lidar com o mito falso de que é mais fácil para as mulheres serem bi, por se julgar que o somos apenas para diversão dos homens”.
A este respeito, não é por acaso que a letra B de “bi” ou “both” (ambos) continua a não ser pronunciada. Nem mesmo em séries vanguardistas como Orange Is The New Black, da Netflix, em que Taylor Schilling, 32 anos, desempenha Piper Chapman, retratada como hipersexual, ambivalente e vista como “o inimigo”, tanto por heterossexuais como por lésbicas. Não admira que tal tenha merecido o desagrado das fãs nas redes e fóruns, povoados por Millennials. O contrário sucedeu com a série The 100, a primeira a assumir, sem reservas, uma protagonista bi (Clarke, desempenhada por Eliza Taylor).
Longe dos tempos em que gays e lésbicas eram considerados pessoas com disfunções sexuais, tendo conquistado direitos um pouco por todo o mundo, parece ter chegado agora a vez dos bissexuais, que se posicionam no caminho do meio e nas suas múltiplas variações. Mas apenas nas faixas etárias inferiores aos 25 anos, escolarizadas e em níveis socioeconómicos mais favorecidos (segundo resultados do Inquérito realizado pelo Centro para a Promoção da Saúde Sexual, da universidade americana de Indiana, em 2015). Aqui, começa a ser visível o poder de uma minoria, para quem ser monossexual chega a ser sinónimo de tacanhez e, até, motivo de chacota.
LIBERDADE SEM MEDO
Voltando aos Millennials, essa geração em que a mobilidade é a regra e a fluidez, também na intimidade, é praticamente um dado adquirido, relacionamentos à distância incluídos. E muita confiança para se abrir ao desconhecido sem reservas.
“Gosto de uma pessoa pelo que ela é e não pelos genitais.” Helena Costa, técnica de turismo (natural de Guimarães, estudou no Porto, viveu no Algarve e trabalha na Alemanha), assumiu-se como lésbica aos 16 anos e teve a sua primeira namorada aos 20. Ao longo dos quatro anos que durou o relacionamento, a companheira mudou de sexo, com a aceitação de Helena e a adaptação da família à nova realidade. Nessa altura, percebeu: “Não podemos definir nada em pedra.” Aos 26 anos, a vimaranense aceita a sua bissexualidade e namora há seis meses com um homem hetero e monogâmico, que vive no Algarve. “Apaixonei-me por ele e temos uma relação aberta, para que eu possa exprimir de forma livre, ainda que até agora só em teoria, a minha sexualidade”, esclarece. “Decidimos ficar noivos e tencionamos viver juntos quando eu regressar a Portugal.” E o que lhe garante que funciona? “O segredo é comunicar sem limites, porque as pessoas não são brinquedos.”
Catarina Amorim Santos tem 25 anos e está há três numa relação aberta com um dinamarquês heterossexual. Depois de ter feito Erasmus em Madrid e o mestrado na Dinamarca e em Pequim, a técnica de comunicação está em Bruxelas há seis meses. De resto, foi nessa altura que o casal decidiu “abrir a relação”, por discordarem da ideia de posse e por ser claro para ambos que não haveria mentiras. Ela sabe que é bissexual desde a puberdade e confessa que sempre se sentiu atraída por mulheres, apesar de não ter tido relacionamentos com nenhuma. Ambos sabem que ela não gosta menos dele se nutrir sentimentos íntimos por outras pessoas, e que este acordo é passível de ser alterado, se qualquer deles sentir desconforto. Acima de tudo, une-os a mesma causa: “O amor, e o modo como escolhemos manifestá-lo, é também um ato político.” Porque importa lutar contra o que acontece em todos os lugares onde Catarina já esteve, e que ela designa de “apagamento da identidade bi”.
O PREÇO DA (IN)VISIBILIDADE
O que todos os estudos destacam e os visados confirmam é que assumir uma identidade sexual não normativa, como é o caso da preferência pelos dois géneros, sai cara, devido aos estereótipos dominantes: se for homem, “ainda não sabe que é gay mas para lá caminha”; se for mulher, “é porque gosta de experimentar e está confusa, mas faz o deleite do sexo oposto”.
Depois de ter colaborado no serviço de atendimento psicológico da associação ILGA Portugal, a psicóloga Carla Moleiro, diretora do Centro de Investigação e Intervenção Social do Instituto Universitário de Lisboa, confirma que “as pessoas LGBT tendem a manifestar índices mais elevados de sofrimento psicológico e uma vulnerabilidade acrescida, pelas experiências de exposição ao estigma e violência interpessoal, na família, entre pares e no meio laboral”. Isto acontece porque, apesar das mudanças legislativas, os discursos em que os jovens cresceram mantiveram-se os mesmos. Ou seja, subsistem as dificuldades de expressão, mesmo que haja uma maior aceitação parental, no contexto escolar e, até, “entre profissionais de saúde”, refere Gabriela Moita, que faz parte do grupo de trabalho LGBT da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
Foi por isso mesmo que muitas figuras públicas se recusaram a estar confinadas a esta dicotomia e decidiram dar voz a identidades não normativas, mesmo que no início fosse à boleia do “lesbian chic”. Entre as veteranas, Madonna e Angelina Jolie, a que se seguiram Drew Barrymore e Gillian Anderson (a agente de Ficheiros Secretos). Há sete anos, Lady Gaga fez saber que o single Poker Face era sobre a sua atração por mulheres e as fantasias com elas quando estava com o namorado. E Christina Aguilera, bem como Cynthia Nixon (uma das quatro amigas da série O Sexo e a Cidade), tornaram públicos os seus romances com ambos os sexos. Mais recentemente, seguiram-se os manifestos de jovens estrelas do showbizz.
Em qualquer destes casos, está presente um maior foco na pessoa, na igualdade e na experimentação, sem se ficar refém de categorias fixas e lineares na vida íntima. Em caso de dúvida, basta ter em conta a definição consensual da reputada ativista bissexual texana Robyn Ochs, atualmente com 58 anos, acerca da orientação (e visibilidade) bi: “Potencial para sentir atração, romântica ou sexual, por pessoas com mais do que um sexo e/ou género, não necessariamente ao mesmo tempo, não necessariamente da mesma forma e não necessariamente no mesmo grau.”
AMOR NÃO ESCOLHE SEXO
O inquérito à sexualidade dos portugueses realizado em 2007, com uma amostra representativa de adultos e de que resultou um livro, em 2010, permitiu concluir que “as práticas não são sinónimo de orientação sexual”. A socióloga Sofia Aboim, coautora do livro, confirma que foram mais as mulheres a confessar experiências sexuais com parceiros de ambos os sexos (5,2%) ao longo da vida (face aos 3,9% de homens inquiridos), mas apenas 1,6% delas se identificaram como bissexuais (e só 1,4% dos homens o fez). Como ler estes dados? “Já então se assistia à maior flexibilidade de práticas e à liberalização da sexualidade feminina nos grupos etários mais novos.” Se o estudo fosse replicado hoje, “seria de esperar um aumento da orientação não heterossexual, sobretudo no grupo com 18 anos, que hoje tem 27, e talvez fosse preciso alargar o léxico de definições (transexuais, queer, pansexuais).” Para Joana Peres, coordenadora do centro LGBT da ILGA, a bissexualidade foi uma descoberta tardia. “A primeira vez que me apaixonei profundamente por uma mulher já tinha mais de 30 anos, o que é completamente diferente do que se tivesse acontecido na adolescência. Até então, eu era uma heterossexual que casara e tivera duas filhas.” Contrariamente ao que se pensa, a técnica de intervenção social esclarece que “é mais comum ser lésbica ou gay como transição para a bissexualidade do que o contrário”, embora reconheça que, em casos minoritários, algumas pessoas tentem rotular-se como tal, “porque tudo é preferível a ter de ser o ‘paneleiro’ ou a ‘fufa'”, diz a ativista.
Na sua vida pessoal, Joana confrontou-se com o dilema de ser bi: “Se não a afirmar, a minha orientação não existe, porque não a veem; quando estou com um homem sou vista como hetero, e se estiver com uma mulher serei olhada como lésbica.” Teve a sorte de ser aceite de braços abertos pela família e no círculo de amigos, o que conta, e muito.
Aos 47 anos, tem uma nova relação, também com uma mulher: “Mas sei que podia apaixonar-me por um homem.” E é com orgulho e um brilho nos olhos que dá a conhecer o novo serviço de apoio a vítimas da ILGA, financiado pela Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade. Porque há mitos a desfazer: “Um homem bissexual ainda é olhado como alguém a quem falta masculinidade, uma mulher bissexual ainda é vista como insegura, indecisa ou promíscua.” Mesmo no seio da comunidade LGBT portuguesa, onde, é um facto, há mais mulheres a sair do armário como bi do que homens. E, apesar de tudo, isso é mais fácil do que há uma ou duas décadas.
As filhas, com 10 e 15 anos, sabem que a mãe faz parte de uma minoria. “Sabem que eu vivo em verdade. E essa é a minha batalha diária.”
BISSEXUAIS FAMOSAS
MILEY CYRUS, 24 ANOS,
A artista disse à mãe, aos 14 anos, que era bissexual. Hoje, prefere identificar-se como pansexual (quando o género é indiferente).
CARA DELEVINGNE, 24 ANOS
A atriz e modelo britânica não tem problemas em falar do tema na primeira pessoa.
ANNA PAQUIN, 34 ANOS
A protagonista Sookie da série True Blood, da HBO, com conteúdos LGBT, também se assumiu como bissexual na vida real.
LADY GAGA, 30 ANOS
“Isto é o que sou e o que sempre fui”, revelou a cantora e ativista, há oito anos, admitindo que Poker Face era sobre a sua atração (também) por mulheres