Se há uns anos chegasse a um restaurante e visse toda a gente agarrada ao telemóvel a tirar fotografias ao petisco que tinham à frente, provavelmente acharia estranho. Mas hoje já não. Hoje, é até um comportamento bastante normal.
O relatório de 2016 publicado pela cadeia de supermercados Waitrose, do Reino Unido, dá conta de que, no mês passado, um quinto dos britânicos postou uma fotografia de comida nas redes sociais. Se fecharmos o espectro para os britânicos entre os 18 e os 34 anos, a proporção aumenta para um terço. Para eles, não existem dúvidas: “a ascensão das redes sociais mudou a nossa relação com a comida”.
Agora, podemos partilhar comida com o outro lado do mundo numa questão de segundos – não fisicamente, claro. O Instagram é bombardeado, diariamente, com hashtags como #instafood, #foodporn, #delicious ou #tasty, que foram utilizadas dezenas de milhões de vezes.
Mas não partilhamos uma fotografia qualquer. Tem de ter a luz certa, tem de estar numa boa posição e tem, sobretudo, de ser um prato atrativo. Depois, o Instagram ainda nos dá a possibilidade de melhorar a aparência do nosso petisco com os filtros de imagem.
Primeiro o sabor
Enquanto falava com a VISÃO, o Chef Kiko Martins estava a empratar um petisco para o seu novo restaurante O Asiático. “Está a ficar com um aspeto incrível, muito bonito”, dizia ele, lembrando-se que seria interessante tirar uma fotografia – pode espreitá-la aqui. Recusa-se a acreditar que hoje o aspeto visual tomou um lugar privilegiado relativamente ao sabor. “O lado estético interfere no paladar, claro. Mas primeiro o sabor, só depois o lado estético”, repetiu várias vezes.
Nas redes sociais dos seus três restaurantes, vai publicando fotografias dos pratos que confeciona, para “abrir o apetite aos seguidores”. Admite ter algum cuidado nas fotografias que coloca e tem, inclusivamente, a ajuda de um fotógrafo profissional.
O Chef Miguel Castro e Silva sentiu uma enorme diferença de há 3/4 anos a esta parte. Apercebeu-se de que a comunicação visual e virtual tem um impacto cada vez maior e, por isso, é também um fotógrafo profissional a tirar as fotografias para as suas plataformas online.
Quando cozinha, à semelhança do Chef Kiko, estabelece como prioridades a qualidade e o sabor. O empratamento surge como consequência disso. E é aqui que vê uma grande diferença. “Eu acho que, hoje em dia, se trabalha um bocadinho ao contrário: trabalha-se em função do empratamento”, explica.
Chef há 24 anos, diz que no início da sua profissão a cozinha portuguesa se cingia ao bacalhau, ao cozido e à feijoada, mas que hoje os portugueses aceitam muito melhor outros sabores. Com as redes sociais, esses novos sabores ou alimentos chegam a tornar-se modas.
É o caso, por exemplo, do uso de sementes. A quinoa, o sésamo, o girassol e a linhaça, por exemplo, invadiram a internet e viram os seus benefícios nutritivos proclamados pelas redes sociais. Por consequência, invadiram também as casas dos cibernautas.
#instasaudável?
“Estamos numa época de exagero, da exuberância”, referiu o Chef Castro e Silva. É precisamente esse exagero que preocupa os nutricionistas. Em declarações à agência Lusa, Alexandra Bento, Bastonária da Ordem dos Nutricionistas, não desmentiu os benefícios das sementes mas referiu que a grande preocupação tem a ver com o facto de os consumidores acharem que “as sementes são a panaceia dos maus hábitos alimentares”, ou seja, um remédio para todos os males.
As modas de comida contrastam completamente com a ideia de equilíbrio, de ponderação e de versificação que os nutricionistas querem passar. “É preocupante que as pessoas possam acreditar que essas fontes estão completamente certas”, lamenta Nuno Borges, membro da direção da Associação Portuguesa de Nutricionistas.
Apesar de lembrar que, cientificamente, não há nada que possa provar a influência das redes sociais na alimentação, para o nutricionista, existem poucas dúvidas: a influência é real. “Se estão a influenciar bem ou mal? Eu acho que não está a ir para muito melhor”. E explica: “O mundo dos blogues e Instagram’s é muito competitivo. Há pessoas que vivem disso – das visitas, dos likes. A chamada das pessoas para esses sítios nem sempre se faz da maneira mais séria. Muitas vezes aquilo que é chamativo é aquilo que é berrante. Existe uma certa radicalização do discurso”.
Comer com os olhos
Samanta McMurray, autora do blogue Eat Love With Love, tem consciência do poder que a sua plataforma tem para influenciar a dieta alimentar de quem a segue e confessa que muitas vezes isto a assusta. A preocupação é comum à do Casal Mistério e de Ana Guiomar, autora do Instagram “Mãe, já não tenho sopa“.
Não descobrimos quem é o Casal Mistério, mas de uma coisa tivemos a certeza: ambos gostam muito, muito de comer. Essa foi, aliás, uma das motivações para criarem o blogue. Queriam ter um espaço onde pudessem apresentar críticas aos restaurantes que frequentavam e, também, partilhar algumas receitas que gostavam.
“Quando temos uma comunidade de 150 mil seguidores do Facebook e mais de um milhão de pageviews, por mês, no blog, é evidente que temos uma enorme responsabilidade e temos cuidado com aquilo que fazemos”, confessou “ele”.
Ana Guiomar tem em atenção os seus seguidores mas também diz não pretender dar conselhos de alimentação, nem de nutrição. “Não sou da área da saúde, por isso, não me cabe a mim fazê-lo”. O “Mãe, já não tenho sopa” é, para ela, uma forma de partilhar o seu gosto pela cozinha. O próprio nome revela o contexto informal do Instagram. A atriz explicou que o nome é uma frase clássica no seu seio familiar que dizem, claro, à mãe, depois do almoço de domingo.
Tanto o Casal Mistério como Ana Guiomar têm muita atenção às fotografias que colocam nas suas plataformas. O Casal Mistério tenta sempre colocar fotografias apelativas, com o único critério de publicarem o que gostam. “E temos uma grande vantagem: é que gostamos de imensa coisa”. Já as fotografias que surgem no “Mãe, já não tenho sopa” são tiradas por uma fotógrafa profissional.
Atualmente, Samanta vive nos EUA e dedica-se, precisamente, à fotografia de comida, num estúdio de food photography, em Cleveland. De vez em quando volta a Portugal para dar o Workshop de #instafood que, explica, se baseia “na partilha de truques e técnicas de food styling em ambiente mobile para atingir a fotografia perfeita”. Neste workshop, participam nutricionistas, fotógrafos, chefs de cozinha e até a advogados.
O lado visual da comida talvez nunca tenha sido tão importante como é hoje, graças às redes sociais. Para Ana Guiomar não se pode negar que “o aspeto, as cores, as texturas e até a forma como a comida é disposta no prato são muito importantes na altura de escolher o que vamos ou não vamos querer comer”. Portanto, coloca no mesmo patamar de importância o sabor e o aspeto.
O Casal Mistério não balança os dois aspetos da mesma maneira: “as pessoas comem com os olhos, mas depois o paladar decide tudo. Se não for bom, a comida é um fracasso”.
A fotógrafa admite que “há algumas desilusões, principalmente quando se usam corantes e produtos artificiais para mascarar a aparência”. Mas o momento de saborear começa mesmo antes de darmos a primeira garfada. O segredo, para ela, usar sempre produtos naturais e ter atenção ao empratamento.
Ana Guiomar não duvida que as redes sociais vieram aproximar as pessoas da cozinha, incutindo-lhes o gosto. É o caso da “ela”, do Casal Mistério, que passou de um desconhecimento total em relação à cozinha para ser ela própria a dar dicas aos seus seguidores.
E não só. Samanta acredita que os blogues de comida saudável, como é caso do seu, têm consciencializado os seguidores para a importância da comida saudável. Acrescenta: “somos cada vez mais aquilo que comemos e isso vê-se na partilha diária nas redes sociais.”
(Artigo de Sara Santos Soares)