Ah, os miúdos de agora! Consomem de forma racional, estudam o mercado, comparam os preços, não usam cartão de crédito e só querem partilhar em vez de possuir. O mundo está perdido!”. A citação é imaginária mas, ironias à parte, bem poderia sair da boca de um fabricante de automóveis ou de um vendedor de artigos de luxo. Os Millennials estão a transformar a economia e a obrigar alguns setores tradicionais a reinventar-se. A “geração Uber” ou “Airbnb” já começou a mudar a face do capitalismo.
Os primeiros da Generation Me (Geração Eu, outro dos cognomes que lhe estão atribuídos devido a um alegado narcisismo que lhes será característico), já têm mais de 30 anos. Chegaram àquela idade de que o mercado tanto gosta: os anos do glorioso consumo, tantas vezes desenfreado, para ter uma casa, um carro e um aparelho de televisão melhor do que o do vizinho. Usando quase sempre, na urgência e à falta de poupanças, o crédito pessoal, o cartão leve agora e pague (muito mais) depois.
Mas isso parece que era dantes. E os sinais estão aí. Claro que a maior parte destes jovens quer ter uma casa própria, mas um número significativo – 30% – diz que não é uma prioridade, a juntar aos 15% que não pensam em comprar um imóvel num futuro próximo (ver infografias). Quando se fala de automóveis ou de bens de luxo, então os Millennials deixam bem claro que preferem gastar o dinheiro noutros voos.
Desde 1989 que, na América, não havia tão poucos endividados sub-35. A crise que perdura desde 2008 também tem feito o seu papel: vive-se pior e, portanto, os Millennials não têm tanto dinheiro (nem tanto acesso ao crédito fácil) quanto as gerações anteriores tinham com esta idade; e houve ainda um efeito dissuasor, uma vez que esta geração cresceu com a instabilidade financeira, o nervosismo dos mercados e a queda de grandes bancos. Muitos deles viram os pais ficar sem emprego, razão mais do que suficiente para não se perderem agora nas dívidas.
Por outro lado, a geração Y cresceu com a “oitava maravilha” do mundo moderno: a internet. Eles são os primeiros nativos digitais e grande parte da sua vida flui dentro do LCD do smartphone. Estão lá os amigos, a rede de contactos profissional, as notícias do dia, a música, os filmes, os vídeos… Está lá todo o comércio, a par de inúmeros sites de comparação de preços de um mesmo artigo, nas diferentes lojas…
Naquele espaço, onde o mundo se liga a qualquer hora do dia e da noite, foi surgindo, muito naturalmente, esta nova economia, chamada “da partilha”. Começou ingenuamente, sem sede de lucro, com o “velhinho” Couchsurfing, um site através do qual uma pessoa pode ficar a dormir no sofá de um estranho, gratuitamente, que é uma forma barata de conhecer uma nova cidade.
Mas de repente… os taxistas estão na rua a “caçar” motoristas da Uber e os hotéis tremem com o imenso negócio do alojamento local disponível no Airbnb. São serviços à medida dos Millennials, que não gostam de acumular, mas de partilhar ou alugar, do carsharing ao cowork.
Uma sondagem recente da universidade de Harvard mostra que 51% dos jovens entre os 18 e os 29 anos não apoia o sistema capitalista. E agora, o que acontece à economia?
Experimentar, não ter
“O digital acabou com a Blockbuster (rede de clubes de vídeo) e a Kodak deixou de ser relevante… Isso foi uma hecatombe. Já a economia da partilha é disruptiva, sim, mas o Airbnb não vai fazer com que os hotéis desapareçam nem a Uber vai acabar com os táxis. Estão é a obrigá-los a mudar. Os setores mais tradicionais da economia têm de se adaptar”, refere Rui Ventura, presidente da Associação Portuguesa dos Profissionais de Marketing.
Os balcões das instituições bancárias tornam-se obsoletos com esta geração que já só usa o netbanco, os agentes de seguros estão em vias de extinção e podemos até questionar, com a evolução do e-commerce, o tempo de vida de algumas lojas físicas de equipamentos eletrónicos ou de vestuário. Mas as questões que os Millennials colocam ao mercado estão para lá da simples migração dos negócios para o digital
“O seu consumo é mais racional, fazem contas, falam com os amigos, comparam os preços, estão em pesquisa constante de informação. E querem menos compromisso e menor fidelização, o contrário daquilo em que o marketing tem vindo a apostar”, explica Rui Ventura.
O sucesso de uma startup como a portuguesa Chic by Choice, por exemplo, que aluga vestidos de luxo, deve-se a esta característica dos Millennials de valorizarem a experiência, sem sentirem necessidade de serem donos do vestido, no caso. Querem “passar por isso” e não “ter isso”.
“Ter por ter” não faz sentido nenhum para Mafalda Maya, 31 anos, joalheira de formação e de profissão.
“Não quero que o meu armário tenha peças que eu não use”, sublinha. Não está “agarrada” às prestações do banco para pagar casa (vive com o namorado), não tem carro nem pensa vir a ter (“Os custos que um carro acarreta! Sou uma privilegiada por poder andar de transportes públicos ou a pé”, diz), não tem cartão de crédito e resistiu a endividar-se com um microcrédito para abrir o seu atelier, em Lisboa: “Fui juntando dinheiro. Esperei três anos até ter o dinheiro todo”, acrescenta.
É um bom exemplo da forma de pensar destes Millennials, que preferem gastar o dinheiro em viagens e no currículo, investindo em formações e workshops. Além disso, Mafalda tem outra característica vincada da geração Y: uma imensa preocupação ecológica. “A quantidade de plástico que usamos é assustadora. Mais do que reciclar, tento não usar. Compro biológico e local. Tenho imenso cuidado com o que como e com os produtos que ponho na pele. Evito comer carne por uma questão de consciência e de pegada ecológica. É isso que quero deixar aos filhos que poderei vir a ter: não uma casa, mas um planeta”, conclui.
Narcisos, olhem-se ao espelho
Nesse planeta não vivem apenas plantas e animais. E a geração Y já se faz notar pelas suas preocupações sociais. Não é à toa que se diz que os Millennials voltaram ao idealismo dos Baby Boomers, também como reação ao cinismo e ao pessimismo da geração X.
“Estes jovens pretendem trabalhar em organizações que ofereçam oportunidade de se focar no desenvolvimento de competências, na melhoria das condições salariais e dos níveis de satisfação dos seus profissionais, mas também que sejam capazes de criar empregos e disponibilizar bens e serviços que têm um impacto positivo na vida das pessoas. Isto é, querem perceber o real significado do seu trabalho e o seu papel dentro das organizações”, afirma Gonçalo Simões, sócio da Deloitte, consultora que tem estudado os hábitos desta geração.
A Generation Me, afinal, olha bem mais longe do que o seu umbigo. É o problema dos rótulos, que os Millennials, aliás, abominam. Com as estatísticas norte-americanas a mostrar um aumento significativo da doença do transtorno de personalidade narcisista, logo a geração Y foi classificada como sendo narcisista e presunçosa, agindo como se o mundo lhes devesse alguma coisa. A proliferação das ‘selfies’ e o facto de não conseguirem dar um passo na vida sem o publicitar – e insuflar – no Facebook, não ajudou.
No entanto, as análises simplistas esquecem que ir ao psiquiatra é hoje algo de banal, o que não acontecia há 30 anos. Além disso, os jovens adultos estão numa fase de afirmação, que muitas vezes é confundida com excesso de autoestima. Ou os Baby Boomers e a geração X já se esqueceram dos seus 20 anos? Num artigo da revista Time, o executivo Scott Hess, que tem um discurso nas conferências TedX sobre os Millennials, brincava assim com o assunto: “Podem imaginar se os ‘boomers’ tivessem YouTube? Podem imaginar a quantidade de Instagrams aberrantes, de pessoas a brincar na lama, teríamos visto durante o Woodstock? Em muitos sentidos, estamos a culpar os Millennials pela tecnologia que existe agora”.
Como “amarrar” um Millennial
Voltando ao mercado de trabalho… Este foco no bem-estar da sociedade como resultado do seu trabalho é, para Gonçalo Simões, a grande mais-valia desta geração. Por outro lado, “a impulsividade e alguma insatisfação natural, de quem tem um foco no retorno que retira no imediato, podem dificultar a atração destes talentos e a sua lealdade, e são porventura os maiores desafios”, continua o especialista.
Nuno Troni, diretor de recrutamento especializado da Randstad, tem a mesma ideia. “Têm uma necessidade constante de mudança, exigem desafios permanentes. A dificuldade, para as empresas, não é a atração dos Millennials, mas a retenção. Eles não gostam de monotonias”, considera.
O informático Pedro Carmo, 29 anos, celebrou, há poucos dias, seis meses de permanência na mesma empresa. É a primeira vez que ultrapassa esta barreira temporal. No último emprego sentiu-se desmotivado e, antes mesmo de terminar o período experimental, decidiu sair. “Não tinha nenhum trabalho em vista, mas estava confiante de que conseguia arranjar um novo com facilidade”, explica este software developer. Não estava enganado. Pedro sabe que não existem muitos profissionais com a sua experiência, o que lhe dá maior confiança na hora de mudar. Mas este não é o único fator. “Gosto da flexibilidade de um contrato a prazo. Gosto, por exemplo, da possibilidade de não voltar amanhã para o mesmo local”, diz.
De acordo com o estudo da Deloitte, 66% dos Millennials espera deixar o atual emprego até 2020. “As empresas têm o desafio de fomentar a lealdade, sob o risco de perderem uma parte importante da sua força de trabalho. Essa lealdade poderá ser conquistada através da promoção de oportunidades de desenvolvimento de competências de liderança, de melhores ligações a mentores e de um maior e salutar equilíbrio entre a vida pessoal e profissional”, diz Gonçalo Simões.
Sim, para estes jovens há mais vida além do trabalho e eles já não estão disponíveis para as noitadas no escritório. Além disso, embora sejam “mais desprendidos do ponto de vista material”, continuam a dar muita importância ao “pacote salarial” na altura de encontrar um emprego. “Valorizam o salário, mas sobretudo os benefícios (seguro de saúde, ginásio, formação…)”, remata Nuno Troni.
Algumas empresas já perceberam a ideia e, na DreamWorks, por exemplo, é possível, nas horas de trabalho, frequentar aulas de fotografia, escultura, pintura, cinema e karaté. A Google oferece refeições grátis, massagens no local de trabalho, aulas de fitness e deixa os funcionários levarem o cão para o trabalho… O operário representado por Charlie Chaplin, no filme Tempos Modernos, ficaria de boca aberta.
O mundo é uma aldeia
“Os empregados têm um ciclo de vida nas empresas”, continua Pedro Carmo, “cansam-se”. Mas existe um sítio de que Pedro não se cansa: a casa dos pais, de onde só agora vai sair para o seu primeiro apartamento. “Não me fez confusão meter-me num crédito a 35 anos”, diz o informático, que vai passar a viver a 10 minutos da casa dos progenitores.
Lar, doce lar… De acordo com o Eurostat, 72% dos jovens portugueses entre os 20 e os 29 anos ainda vive com os pais (a média europeia é de 56%). Mesmo considerando a faixa etária entre os 25 e os 29 anos, a percentagem é alta: 60 por cento (40% é a média europeia). Os baixos ordenados, a precariedade laboral e a maior qualificação dos jovens (com os estudos a prolongarem-se até mais tarde) serão os principais responsáveis. Mas também o facto de esta geração deixar o casamento e os filhos para mais tarde. Em 1980, as mulheres portuguesas casavam-se aos 23 anos; em 2015, a média vai nos 31. A verdade é que os Millennials, a quem os especialistas reconhecem uma capacidade de adaptação sem igual, tanto estão bem em casa dos pais como em qualquer lugar do mundo. Estes filhos da globalização estão formatados para considerar o mundo – e não apenas a sua cidade – quando se trata de entrar no mercado de trabalho. “Quando acabar o curso quero arranjar rapidamente trabalho e, para o conseguir, devo ter de ir para fora do País”, considera Rafael Sequeira, 21 anos, em transição entre o final da licenciatura de Engenharia Mecânica, no Instituto Superior Técnico, para o mestrado na mesma área.
Faltam-lhe dois anos até dar por terminada a passagem pela faculdade mas, ainda assim, não conta sair de casa do pai antes dos 26 anos. “Se ficar em Portugal, espero um ou dois anos para juntar dinheiro e só depois compro casa”, prevê.
Enquanto terminava a licenciatura, Rafael manteve-se ocupado com o desenvolvimento de um carro elétrico de Fórmula Um, com o qual concorreu, juntamente com outros colegas, a um concurso europeu de jovens engenheiros. Há muito que se habituou a ocupar parte do verão a trabalhar como monitor em colónias de férias e, assim, juntar dinheiro para viajar com os amigos e a namorada e para participar no concurso do carro. “Não gosto de esbanjar. Só compro coisas que acho que têm o seu valor, não vou atrás de modas”, garante.
Uma das colegas de Rafael no projeto do carro foi Sofia Torres, de 20 anos, uma jovem de Castelo Branco, que vive em Lisboa com a irmã. “Estamos a morar numa casa que os meus pais compraram há uns anos. Vivo com a mesada que me dão”, conta. Do que recebe todos os meses, ainda põe de parte uma pequena quantia, graças aos cuidados que tem com os preços na hora de ir às compras.
Mas estes “poupadinhos” não consomem? “Consomem”, acredita Pedro Pimentel, diretor-geral da Centromarca, a associação que reúne as empresas portuguesas de produtos de marca. “No fundo, penso que é uma geração tão consumidora quanto as restantes, embora valorize outros tipos de bens”, acrescenta.
Tudo o que é tecnológico, naturalmente. Em Wall Street já se nota uma tendência de os investidores apostarem nas empresas de que os Millennials gostam: Snapchat, Facebook, Amazon, Paypal… O capitalismo também se adapta. Até porque a geração Z (nascidos entre 1997 e 2012, também conhecidos como “os mutantes”) já aí está, quase com 20 anos. Essa não é apenas “viciada” no smartphone; é moldada pelo digital. E se algo ou alguém não está online, é porque não existe.
As diferentes gerações
Apesar das generalizações serem terreno minado, aqui alguns traços que poderão caracterizar cada uma das seguintes gerações:
Geração Baby Boomer – (1946 / 1964) Devem o nome à “explosão demográfica” que se verificou nos Estados Unidos no fim da Segunda Guerra Mundial. Nasceram com o Estado Social e viveram a era do emprego para a vida, da conquista de direitos laborais e de muitos avanços civilizacionais
Nem todos estiveram no Woodstock, mas a contracultura do final dos anos 60 deixou marcas e, por isso, são descritos como idealistas. Têm sido os grandes consumidores do nosso tempo, suportes da economia, mas estão a chegar à idade da reforma
Geração X – (1965 / 1979) É a primeira geração a viver pior do que os seus pais e define-se pelos elevados níveis de ansiedade perante a perspetiva de que não haverá Segurança Social quando chegarem à idade da reforma. Foram os yuppies do final dos anos 80 e, talvez por isso, sejam frequentemente caracterizados como “cínicos”. São a geração do computador pessoal e viram nascer a internet. Já não vivem sem ambos, mas sabem identificar uma máquina de escrever (e uma cassete áudio ou um leitor de VHS). É menos numerosa do que a antecessora Baby Boomer e de que predecessora Millennials. Não admira – os X são filhos da democratização da pílula e da libertação da mulher do seu papel tradicional de “fada do lar”.
Geração Y – Millennials – (1980 / 1996) São nativos digitais, nasceram a saber teclar e comunicam através do texto. São multiculturais, tolerantes, filhos da globalização. Também são conhecidos como Generation Me (Geração Eu), pois são os grandes protagonistas das ‘selfies’. Preferem os produtos personalizados e os serviços “à medida” – é este o grande desafio atual do mercado. Inicialmente apelidados de “preguiçosos”, por viverem em casa dos pais até mais tarde (sobretudo o subgrupo “nem-nem”, que nem estuda nem trabalha), revelaram-se bem mais empreendedores do que os seus antecessores. São bastante mais racionais a consumir, ecorresponsáveis, menos fiéis às marcas, dando sempre preferência à experiência, não à posse.
Geração Z – (1997 / 2012) As nossas crianças e os nossos adolescentes não são viciados em tecnologia como os Millennials: são “siameses” da tecnologia, algo que lhe é tão essencial como o ar que respiramos. E se a geração anterior comunicava através do texto, esta comunica com as imagens e os símbolos – é a era dos emojis em todo o seu esplendor. Num caminho iniciado pela X e aprofundado pela Y, os Z são ecologicamente conscientes e procurarão produtos e serviços sustentáveis. É a geração ‘multitasking’ (multitarefa) por excelência, capazes de trabalhar com vários ecrãs ao mesmo tempo. São mais “certinhos” do que os Millennials, com as estatísticas a mostrar menos consumo de álcool, menos abuso de drogas e menos gravidezes na adolescência