“Há uma ou duas semanas que prevíamos que isto podia acontecer. Há mais de uma semana que estavam temperaturas muito altas, 30 e tal graus, e tudo muito seco.” Martim Cardoso, 49 anos, é engenheiro agrónomo de profissão e velejador por paixão. A agronomia permite-lhe olhar com outros olhos para as terras e saber como reage aos elementos. A vela, hobby que herdou do pai e onde desde cedo embarcou a mulher e os filhos, habituou-o a lidar com o vento e a enfrentar as forças da natureza, a ler as circunstâncias, a saber que há uma altura para ter coragem e uma altura para parar.
Naquela terça feira, dia 9, recebeu em casa um punhado de amigos do filho, Lourenço, de 19 anos. Disponibilizavam-se a ajudar, caso o fogo (que deflagrara em S. Roque, na noite anterior) chegasse àquelas paragens. Montaram e testaram a auto-bomba sem lhe dar muito uso. “Estava muito quente. Se regássemos tudo, secava num instante”, explica Martim, contando como foi difícil convencer a mulher a não gastar aquilo que, mais tarde, os poderia salvar.
Falaram entre todos, estabeleceram tarefas, fizeram alguns pactos. Ficou claro que ninguém poria a vida em risco, que não era vergonha nenhuma abandonar o “barco” e que, se fosse preciso fugir, não deixariam ninguém para trás.
A casa, que Martim herdou e para onde foi viver quando casou, há 20 anos, já era dos seus bisavós. Conhece bem os terrenos e conseguia definir zonas seguras e planos de fuga. Fecharam janelas e portadas, tiraram as roupas das camas, espalharam bacias de água pela casa. Fizeram a ronda à habitação. A casa de banho era fresca e de teto alto – poderia servir de “respiradouro”, se o fumo se adensasse. Decidiram que Martim ficaria com o papel de “salvaguardar a casa”, com os rapazes. À sua mulher, Mónica, de 47, caberia “salvá-los a eles”. Ficaria “fora do cenário”, como lhe chamou, a garantir que estavam bem, conscientes e lúcidos (Mónica é psicóloga e consegue ler os sinais). Eram estes os planos.
Ao início da tarde, ainda estiveram no Choupana Hills – Resort & Spa, a ajudar no combate às chamas. Mas pelas 18 horas, aperceberam-se que as chamas iam mesmo chegar a sua casa. “Temos sempre esperança, mas…”. Subiram o terreno do Choupana Hills, atravessaram a estrada e entraram no portão. Tinham de ver, pela ampla janela da sala, por onde andava o fogo, no vale. Aproximava-se. Molharam, então, bem a casa e o terreno e assistiram ao vale a arder, bombas de gás a explodir… “O fogo é parecido com a água na forma como vai encontrando espaços para entrar e rodar. Temos sempre de ter bem a noção de como o enfrentar e quando fugir dele”, explica Mónica.
Martim respondeu a uma mensagem de um amigo, preocupado: “Ele vai chegar e eu vou vencê-lo!” Estava determinado a dar luta. Era altura de ter coragem.
Mónica posicionou-se à entrada do terreno. “Quando as labaredas chegaram, entrei em pânico. Ao longe, pensei que a casa tinha ardido. Fiquei ainda pior quando comecei a ouvir gritos”, relata. Eram ordens e orientações – “Anda para aqui!”, “leva a mangueira para ali” – mas de onde estava, Mónica não percebia se estavam bem, se estavam a fugir, se estavam a chamar por ajuda, por ela. “Aí pensei: isto é coragem ou estupidez?”
Seguiram-se horas tremendas. Mais de dez. Várias vezes lhes foi pedido para evacuar. Ouviu até, de um elemento da autoridade, que “se tudo arder, não sou eu que vou buscar a sua família de loucos a meio das chamas!” Tanto Mónica como Martim confessam ter tido os seus quebrantos. “Se o Choupana Hills ardeu, quem somos nós para conseguir?”, pensou Martim. “Se as autoridades dizem que não vamos conseguir, quem julgamos nós que somos? Omnipotentes? É um ato de loucura?”, passou pela cabeça de Mónica.
Foram conseguindo. Martim, Lourenço e os amigos de mangueiras na mão. Mónica de carro sempre ligado. Ia e vinha. Levava água, telemóveis para carregar. Quando tudo se tornou mais duro, levava alternadamente os rapazes a respirar, ao Estádio do Nacional, mais abaixo. Aí, zona até então protegida, podiam descansar e trocar o fumo dos pulmões por ar limpo. Depois, regava-os a eles e ao carro e voltava para o inferno.
A certo ponto, no meio do breu da noite, do fumo, com “tudo a arder, vi a casa, branca, e subi”, conta Mónica. Tinha de ver como estava tudo, lá em cima. “Devia ser perto da meia noite”, diz. Entrou em casa. “De fora, imaginamos tudo. Por isso entro e não quis olhar para a nossa vida – as memórias, as vivências, não queria ficar com aquela imagem. Queria a outra”, do passado, e por isso andou sempre de olhos baixos. Encontrou-os a todos. “Estavam muito cansados, mas lúcidos. E conscientes de que podia ser ainda pior.” E foi.
Pelas quatro da manhã, o vento rodou e abraçou toda a zona. Levantou-se muito vento. A outra encosta pegou fogo e era por onde iam fugir. Foi aí que apareceu um bombeiro voluntário à civil, com quatro jovens. “Nunca os tínhamos visto”, garantem, mas ajudaram durante uma ou duas horas. Mas quando aumentou o vento… o bombeiro saiu de cena. Foi quando Martim começou a pensar na vida. “Já ardeu”, antecipou. Tinha o seu plano de fuga desfeito, mas sabia que os terrenos agrícolas do outro lado tinham ardido e poderiam passar por lá sem grande perigo.
Mónica informa-o por telemóvel que o vento rodara e que estava em perigo. Não poderia ficar ali e tinha de fugir. “Não deixar ninguém para trás” era um dos lemas, mas Martim, “teimoso!”, não quis abandonar a casa. Brigaram e Mónica viu-se obrigada a descer para o Funchal.
“O Martim já não estava racional”, diz, dois dias depois. Mas ela, olhando para cima, via tudo a arder. Estavam rodeados de fogo e ela só queria perceber como conseguiria voltar a subir. Voltaram a falar. Martim estava exausto, sem voz e já não conseguia abrir os olhos. Mónica arranjou uma maneira de lá chegar.
“Quando o encontrei, ele já tinha inalado muito fumo. “Pai, corre, é o último esforço!”. Depois das palavras de Lourenço, instalou-se um curto silêncio que se estendeu até à eternidade. Apareceram as luzes das lanternas. Meteram-se no carro e seguiram para o mar. Eram sete da manhã quando mergulharam na marina do Funchal, sem saber como ficara a casa. “Mas já não nos importávamos. Tínhamos dado tudo.”
Três horas depois toca o telefone de Mónica. Do outro lado perguntavam: “A senhora está viva?! Deve ser engano”. Mónica insistiu. “Estou viva, quem fala?” Era um dos rapazes que tinha estado a ajudar, durante a madrugada. “Só quero saber se estão vivos”. Estavam, e a casa estava bem, no meio de um terreno feito cinzas. O rapaz começou a chorar.