Ana trabalhava naquela empresa de comercialização e reparação de automóveis há mais de 25 anos e era responsável por planear e organizar o departamento de contabilidade. Certo dia de junho de 2014, um sábado, entrou nas instalações, digitalizou documentos internos da empresa, reencaminhou-os para um email interno e depois para um email externo. Esses documentos eram nada mais, nada menos do que um mapa de processamento de ordenados da própria, além dos extratos de conta corrente de dois anos da firma (2006 e 2007). Dois meses depois, os patrões descobriram que Ana, que só devia entrar na empresa nos dias úteis, tinha entrado nas instalações naquele sábado. Descobriram também que tinha feito aqueles documentos sair da empresa, através da cópia dos mesmos para o seu email. Ana acabou despedida na sequência de um processo disciplinar.
A empresa alegou que o comportamento de Ana revelava “desinteresse” e “desleixo” e “desconsideração” pelos superiores hierárquicos. Havia afetado “o bom ambiente de trabalho” e violado “os deveres de lealdade e de obediência”.
Ana contestou. Disse que entrara na empresa a um sábado e enviara para si própria aqueles documentos, mas apenas com o objetivo de estudar informações de que precisava para responder a questões que lhe tinham sido postas pela própria empresa. Contou que não foi a única vez que entrou nas instalações a um sábado: já o fizera antes e continuou a fazê-lo para terminar trabalhos em curso, e os chefes sabiam. Por essas razões, avançou para o tribunal, argumentando que o despedimento tinha sido sem justa causa, e pedindo uma indemnização correspondente a 45 dias por cada ano completo de antiguidade – mais de 90 mil euros -, além de uma indemnização por danos não patrimoniais pela “má fé” da empresa, cujo valor deveria ser determinado pelo tribunal.
O tribunal de 1ª instância decidiu não haver razões para o despedimento e obrigou a empresa a pagar mais de 100 mil euros de indemnização à antiga funcionária, em substituição da reintegração. A empresa não se conformou e recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa. O tribunal superior entendeu que mesmo que a funcionária tivesse violado alguns deveres a sua conduta estava justificada.
Na semana de 2 a 6 de junho, o diretor-geral perguntara a Ana qual era o seu salário, pois pensava que a sua remuneração não seria assim tão elevada. Como esse salário tinha sido fixado em 2007, na sexta-feira a funcionária e o diretor-geral foram procurar no arquivo a documentação que explicaria a razão de ser daquele ordenado. Como não encontraram aquela pasta específica, no sábado Ana voltou para a procurar. O tribunal deu como provado que usou esses documentos para explicar ao chefe e ao técnico oficial de contas porque recebia aquele valor, em reuniões do dia 9 e 11 de junho. Esse mesmo chefe tinha informado os trabalhadores que não poderiam ir trabalhar aos sábados. Ana terá violado essa ordem mas por um motivo de força maior: terminar trabalhos, nomeadamente fechar contas.
“Objetivamente, se alguém se desloca à empresa para terminar algum trabalho, nomeadamente de contabilidade que tem de ser feito até dia certo, ao sábado, sem que exija o pagamento de trabalho suplementar, mesmo quando há uma ordem para não se deslocar às instalações, tal integra uma desobediência ilegítima às ordens dadas? Principalmente quando não é dada qualquer outra explicação para essa ordem? E a ser uma desobediência é a mesma grave? Não será mais grave se algum prazo de apresentação de documentação ou informação às Finanças ou à Segurança Social for ultrapassado com as consequentes coimas?”, perguntam os juízes desembargadores, acabando por concluir que a justificação dada pela funcionária “é plausível”: “Tinha de encontrar documentação e não tinha possibilidade de o conseguir fazer durante o horário normal de trabalho.”
E remeter documentos internos para fora da empresa, não é grave? Seria, sim. “Caso os documentos não tivessem sido remetidos para o mail da autora, mas para terceiros ou para fora da empresa.” Neste caso tinha acesso aos documentos “em virtude das suas funções” e precisava dos mesmos para explicar o valor do seu vencimento. E além do mais, acrescentaram os desembargadores, em nenhum momento se provou que terceiros tinham tido conhecimento do teor daqueles documentos, documentos esses que por sinal nem eram “atuais” e diziam respeito à própria trabalhadora.
Para um despedimento com justa causa é necessário que haja uma impossibilidade de continuação da atividade profissional, por violação grave de deveres. Não era aqui o caso, concluiu o acórdão que acusa ainda a empresa de má fé, pois os chefes bem sabiam que Ana só precisava daqueles documentos porque lhe haviam pedido explicações.