Luzia Pinheiro, 30 anos, investigadora no CECS (Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade) da Universidade do Minho, estuda há muitos anos os casos de agressão (cyberbullying) e perseguição (cyberstalking) através da internet. Continua a espantar-se com a facilidade com que as pessoas se expõem, “como se estivessem num reality show”, sem terem a mínima noção dos perigos que correm. E, conforme conclui na sua tese de doutoramento, “os efeitos são graves: além de perder a reputação, pode a vítima ser estigmatizada pela sociedade, auto estigmatizar-se, entrar em depressão e suicidar-se”. Como já aconteceu. E isto é algo que atravessa qualquer geração. Falamos com ela e ficamos mais alertados.
Porque é o cyberbullying ainda um tabú social?
As pessoas têm ainda vergonha de assumir que são vítimas. Os outros acham que elas é que não souberam lidar com aquilo. Ainda é muito julgado socialmente.
A tendência é para culpabilizar a vítima?
Sim. Mas há uma questão: a vítima pode ser completamente inocente, mas também pode ter alguma culpa, por ter sido ela a expor o conteúdo usado contra ela. Se tivesse sido mais cuidadosa, aquele conteúdo não existiria. Em ultima instância, a culpa é sempre do agressor, porque foi ele quem usou indevidamente o conteúdo.
Há redes sociais mais favoráveis a esses abusos?
Todas aquelas em que temos tendência a expor-nos, em que temos a ilusão de que é só nosso, mas que, na verdade, qualquer pessoa pode aceder. Sublinharia o facebook e o youtube. No youtube, publicam-se muitos vídeos pessoais. Quem quiser praticar cyberbullying tem ali todas as ferramentas de que precisa.
Quais os sinais de que estamos a ser vítimas de perseguição?
Temos de estar alerta sobre as sucessivas tentativas de entrada no nosso email e na nossa conta de rede social. A partir daí, podem ter inclusivamente o nosso número de telefone. Recebermos mensagens privadas de desconhecidos ou chantagens através de chats ou de alguém que criou um perfil que adicionamos num jogo online, por exemplo. A pressão normalmente é psicológica. Pode só querer chatear, mas também pedir que se dispa para uma câmara web. Recebermos avisos de que fomos identificados numa fotografia, que não foi tirada por nós. Relatos de amigos que nos contam que viram coisas que não fizemos. São sinais de que alguém se está a fazer passar por nós, que está a ter acesso aos nossos dados.Colocaram o meu email num site de conteúdos para adulto. Comecei a receber pedidos de amizade de pessoas que não conhecia no messenger. Estranhei porque era um chat privado fornecido pelo email e aceitei um dos pedidos. Essa pessoa pediu-me que me mostrasse na câmara web e perante a minha indignação explicou-me o que se passava.
Esse é um caso de abuso. Pode ser considerado cyberbullying?
Pode, porque é público. O cyberbullying não precisa de ser praticado sempre pela mesma pessoa. Tem é de ser repetitivo: pode ser alguém a divulgar algo, que será republicado por outros. Ultrapassa o nível do abuso e começa a ser perseguição.
Fazer print screen e queixa na polícia
O que se deve fazer quando se deteta uma perseguição?
Mudar as passwords todas imediatamente. E fazer correr um anti-vírus, para o caso de haver um hacker qualquer. Depois, deve-se recolher provas, fazer print screen e guardar. Se o caso for grave, deve-se contactar a polícia e apresentar queixa. De resto, convém fazer um aviso geral aos nossos amigos e familiares, ou meter mesmo um aviso público de que estamos a ser vitimas de perseguição ou de que há alguém a fazer-se passar por nós. Nomeadamente, avisar a empresa ou o nosso patrão.
Avisar a entidade patronal, porquê?
Sim. Se alguém criar um perfil ou email para se fazer passar por nós, pode, a partir daí, aceder a dados da empresa. Imagine que alguém acede ao email do patrão e manda fotos menos corretas ou insultos em nosso nome. Nunca se sabe quem é o agressor. É melhor avisar logo, do que não precaver.
Tem conhecimento de casos desse tipo?
Nos Estados Unidos, uma mulher, à volta dos vinte e tal anos, foi de férias com o namorado. Eram daqueles que filmavam cenas íntimas e trabalhavam no mesmo sítio. Separaram-se, ele criou um perfil falso e mandou as fotos e as filmagens para o patrão, de modo a que parecesse que ela se estava a insinuar. Deu uma grande bronca.
A polícia já está apta a resolver este tipo de casos?
Sim. Tenho algum feed back da Polícia Judiciária. Diz ter pessoas especializadas em cibercrime, preparadas para localizar endereços de IP, encontrar a origem do cyberbullying e identificar os autores. Há quem comece a ser perseguido pelo telemóvel, e só depois nas contas online. A polícia pode pedir o histórico às operadoras. E todos temos um endereço de IP.
Qual a penalização que isso dá?
O cyberbullying ainda não está catalogado na lei portuguesa, só o bullying. Em Espanha já está e nos Estados Unidos dá cadeia. Cá, normalmente, é equiparado ao crime por difamação.
Mas o cyberbullying ou cyberstalking é mais do que difamação, pode ter consequências graves.
Dramáticas. Pode levar ao suicídio. Pode-se perder o emprego, os amigos. Há casos em que a própria família deixa de falar à vitima, por considerá-la culpada. O acompanhamento psicológico para estas vítimas é algo a ter em consideração. Até porque, na altura, pensa-se sempre que se é capaz de lidar bem com isso. Depois, começam a ter comportamentos de muita tristeza e isolamento, levando à depressão.
Qual é a história de Laura Barns, de que fala na sua tese de doutoramento?
Laura Barns era uma adolescente da Califórnia, a miúda mais popular da escola e tinha excelentes notas. Um dia, foi a uma festa típica de adolescentes e bebeu demais, vomitou, adormeceu no chão. Os colegas fotografaram e meteram online. De rapariga mais popular passou a ser a mais gozada. Não conseguiu lidar com isso e, três dias depois, trouxe uma arma de casa, chegou á escola e matou-se. Alguém voltou a filmar, alguns julgando até que ela estaria a brincar. A morte dela ainda está online. Mas há mais casos destes.
Nunca ceder á chantagem
Teve conhecimento de algum em Portugal?
Por cá, o suicídio tem sido muito mascarado ou não foi ainda documentado. Não encontrei muitos dados sobre isso. Encontrei um que terminou bem, mas poderia ter tido consequências graves. Uma mulher marcou um encontro com um fulano com quem falava online já há algum tempo. Não correu como ela esperava e foi cada um para sua casa. Ele sentiu-se lesado, pelo dinheiro que tinha gasto no encontro. Começou a chateá-la na net. Ela protegeu bem a conta, mas ele pesquisou os amigos e familiares dela. Até que ela recebeu uma mensagem dele a dizer que sabia onde ela morava, com uma foto do local posta por um familiar dela. Fez uma ameaça, queria que ela lhe devolvesse o dinheiro gasto no encontro. Ela transferiu a quantia e a coisa parou ali. Teve sorte. Podia não ter parado ali.
Ceder, nesses casos, é a melhor solução?
Eu teria contactado a polícia. Não teria cedido. A polícia poderia armar uma cilada e caçá-lo. Aquilo foi uma perseguição. Ela tinha dados suficientes para agir. Ceder foi um grande risco. Não há certeza nenhuma de que a perseguição pare ali. Principalmente, porque a vítima cedeu. E cedendo uma vez…
Fica-se refém?
Completamente. Ceder só se a polícia o recomendar e for um esquema montado para apanhar quem está a perseguir.
Do inquérito que fez aos estudantes universitários conclui-se que não estão muito sensibilizados para estes perigos.
De todo, não estão mesmo! Apanhei um choque quando vi os resultados. Sabia que era assim no geral, mas esperava que tal não acontecesse com estudantes universitários, supostamente informados. No entanto, encontrei pessoas desinformadas, algumas sem sequer saber o que era o cyberbullying, ou apenas com uma vaga ideia de ouvir falar na televisão.
Estão desinformados sobre o fenómeno ou nem sequer têm noção de como se devem proteger nas redes sociais?
De um modo geral, sobre tudo. Dos dados recolhidos, poucas eram as que estavam informadas, só quem já tinha passado por isso. A maioria não tinha qualquer noção de como lidar com o caso, se fossem vítimas. Basicamente respondiam que não ligariam e deixariam andar.
Há um certo estado de inconsciência?
Há. E a sensação de que seriam capazes de lidar bem com isso. Mas ninguém está preparado para um caso destes, mesmo quem está dentro do assunto. Há sempre um impacto emocional muito forte.
Ainda não se sabe que uso se deve dar às redes sociais e como se pode controlar a informação lá posta?
Não. Há quem use as redes sociais da forma mais simples. Raramente vão ver quais os procedimentos de segurança têm ao seu dispor. Há coisas que colocam automaticamente no estado público, sem perceberem que se pode restringir o acesso. Como se pode usar a net com segurança ainda é muito pouco falado. As pessoas são naturalmente descuidadas no uso das redes sociais, acham que nunca lhes vai acontecer e deixam-se ir. E quando se apercebem das coisas que publicaram, já pode ser tarde para evitar consequências. Tive o relato de alguém que publicou no facebook uma foto sua em biquíni, na praia. No ano seguinte, viajou até um paraíso asiático e encontrou a imagem dela num out door publicitário.
Não ameaçar tirar a net aos filhos
E como é entre adolescentes e pré-adolescentes?
Praticam muito cyberbullying entre eles, usam as redes para gozar com os colegas, sem ter noção das consequências sobre o outro. Para eles, não passam de brincadeiras. Chegam ao ponto de copiar endereços de email das fichas de professores e passam de uns para os outros. Também fazem tudo para descobrir a password dos colegas.
E sabem identificar quando estão a ser vitimas?
Normalmente sabem, por vezes melhor do que os adultos. Talvez porque ainda não têm vergonha.
Queixam-se aos pais?
Mais depressa contam aos professores. Depende muito da relação que têm com os pais. Se forem daqueles que não castigam nem lhes tiram o acesso à internet, até contam. Mas quando há a mínima hipótese de desconfiarem que lhes vão retirar a net, não contam. Têm medo. Para eles, ficarem sem computador e internet é gravíssimo.
Nesses casos, os pais nunca devem ameaçar tirar o computador?
Não. É o pior que podem fazer. Pode-se ser vítima de cyberbullying quer se use ou não computador. Mas se usarem computador, têm mais possibilidade de saberem que estão a ser vitimas e de se defenderem. Os pais tiram o computador, porque o filho foi irresponsável, pensando que assim evitam que ele seja uma potencial vitima. Mas sem computador, nem sequer saberão o que está a acontecer. Os pais devem ir ver com os filhos o que se está a passar, ensiná-los a alterar as passwords, ver que procedimentos de segurança devem usar. Há passwords ridículas, como o 00000, 123456, ou o próprio nome. Se algo for detetado, devem dar logo conhecimento á escola e á policia. Muitas vezes, o agressor é da escola, um colega ou até grande parte da turma.
Que cuidados deve ter um pai?
Alertar os filhos para que não aceitem certo tipo de comportamentos, de linguagem e ameaças. Aquilo que não se considera correto no dia-a-dia também não é correto na internet. Devem ensiná-los a ter cuidado com as pessoas que aceitam como amigos e a não se exporem demasiado, não contarem conversas de casa e ter muito cuidado com as fotos que colocam. Devem ensinar a diferença entre o que é privado e o que é público. Os miúdos nunca devem dizer onde moram.
Isso não é ensinado nas escolas?
Não é algo que venha nos programas escolares. É algo que fica à mercê da vontade ou interesse do professor. A experiencia que tive não foi muito positiva. As escolas têm medo de perder reputação se assumirem que há ali bullying ou cyberbullying. Tentam esconder.
O inquérito que fez foi em 2013, houve alguma evolução de então para cá?
Gostava que estivessem desatualizados, mas ainda refletem muito a realidade. Continuei a acompanhar casos e quase não houve evolução. E isso é grave.
Em que aspeto?
Continua a ser um tabú, continuamos desinformados e a meter coisas na internet que não deviam lá estar. Cada vez mais se age no facebook como se se estivesse num reality show! Peguei num perfil aleatório do facebook que estava semi-aberto (o que quer dizer que tem conteúdo público e privado): mulher portuguesa, com formação superior. Não sou amiga dessa pessoa. Fui seguindo esse perfil ao longo de um ano. Consigo dizer-lhe o que ela faz à segunda, à terça, à quarta, à quinta, à sexta e ao fim de semana, os destinos de férias e com quem viajou. Inclusive onde mora e trabalha e por onde anda entretanto.
Pôs-se na pele do potencial agressor?
Sim. Para perceber o que consigo fazer se a quiser perseguir. Ela mete tantas fotos e tanta informação que fico a saber tudo. Estamos a falar de alguém com mestrado, que sabe usar um computador. Mas tem lá fotos de biquíni cai-cai, dentro do mar. É fácil despi-la com fotoshop e mostrá-la como se estivesse completamente nua.
Há uma ânsia de se mostrar?
É isso. Aquilo é muito forte, mesmo sabendo que pode trazer consequências gravíssimas. Só vai ter consciência de que se expos demais, quando algo acontecer. Há outros exemplos, não fiz isso só com uma pessoa. Tirei vários perfis aleatórios para fazer estudo de caso e ver como as pessoas continuam a comportar-se na internet.
Está a preparar outro estudo?
Estou a ponderar lançar um livro e a trabalhar num projeto de pós-doutoramento, sempre a investigar esta área.
O que se deve fazer para evitar o cyberbullying?
* Não partilhar fotos e vídeos de momentos íntimos com o namorado. São um perigo. Podem ser roubados por terceiros ou usados por um dos envolvidos, se a relação acabar mal.
* Cuidado com as fotos que podem ser manipuladas por programas de computador, como o fotoshop. Zero de poses em biquíni.
* Ter noção de que o que se põe online permanecerá para sempre, mesmo que seja apagado pelo próprio. Entretanto, pode já ter sido partilhado e copiado e já se perdeu o controlo
* Não usar fotos de casas ou locais, que possam ser identificadas por outros.
* Não usar dados pessoais, que permitam que alguém se aproxime demasiado.
* Não usar dados do local de trabalho, ou dar indicação das rotinas do dia-a-dia.
* Escolher muito bem a password e mudá-la de tempos a tempos. Evitar o óbvio, como o 00000, 123456, datas de aniversário ou os nomes próprios
* Ter vários níveis de segurança e partilha. Ter consciência de que mesmo um conteúdo circunscrito aos nossos amigos, pode ser indevidamente usado por um deles e outros lhes podem aceder.
* Fazer de quando em vez uma pesquisa com o próprio nome num motor de busca para ver que conteúdos aparecem.