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O post no Facebook [Não terão o meu ódio] mostrou que uma grande parte das pessoas neste mundo tem vontade de reagir com inteligência, de reagir de outra maneira do que aderindo à narrativa que nos tentam impor. Há muita gente no mundo disposta a aceitar uma reflexão mais construída, mais longa, a verbalizar uma alternativa
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Ela chamava-se Hélène, tinha 35 anos, olhos enormes, lindos, um marido que a adorava e um filho de 17 meses, Melvil. A rajada de kalachnikov de um terrorista que detestava a França matou-a na sala de espetáculos Bataclan, em Paris, a 13 de novembro. O marido, o jornalista Antoine Leiris, fechou-se num mutismo quase total durante dois dias, até a ver na morgue. Fechou-lhe os olhos e, a seguir, escreveu uma carta aos terroristas – Não Terão o Meu Ódio –, que publicou na Facebook. Em poucas horas, este post tornou-se viral. O tom de serena recusa da violência, de indiferença estudada para com os terroristas – “vocês são almas mortas” – apaziguou os espíritos em França, num encontro histórico entre um momento de verdade numa sociedade e as palavras que o souberam dizer.
Cinco meses depois, Não Terão o Meu Ódio tornou-se um livro, com edição portuguesa na Objectiva (Penguin Random House), e já traduzido em mais 17 línguas. A VISÃO encontrou Antoine Leiris em Paris. Olhos azuis, que se fincam sem pestanejar nos olhos dos interlocutores, cabelo loiro, recusa do cinismo, há nele qualquer coisa do Principezinho de Saint-Exupéry. Enquanto esperava pela infusão de um chá preto, o autor confessa que não antecipou o sucesso editorial do seu primeiro livro: “Claro, o post tinha dado a volta ao mundo mas, sendo jornalista, sempre consigo manter alguma lucidez e pensava que o texto não era suficientemente bom para atrair tanta atenção”. O texto é sincero, e é uma das chaves do sucesso: “Não perdoo nada, não esqueço nada, não passo por cima de nada e muito menos depressa”, escreve.
E Antoine Leiris é um verdadeiro escritor, que sabe encontrar as palavras para contar os momentos sem história de uma história de amor – “o nosso ‘era uma vez’”. E essa é a segunda chave do sucesso.
Confessa no epílogo que gostaria de não ter tido de escrever este livro, que ele se lhe impôs. Que sentido dá a esta primeira obra?
É um livro que se tornou completamente exterior a mim. Não o reli, e quando me leem um trecho, é como se me fosse alheio. Há um elemento de desapoderação com este livro. Mas foi a mesma coisa com o post no Facebook [Não terão o meu ódio]. Senti muito depressa que deixara de ser meu, que cada qual se apoderava dele e que o destino do texto me ultrapassava completamente.
Sentiu na altura a que ponto esse post foi tremendamente importante?
O post em si mesmo, para além da minha pessoa, sim. Estamos numa sociedade em que a informação passa pelos meios de comunicação social mais redutores, e a narrativa mais sexy para esses meios é de responder pela violência à violência. Trata-se do bom velho princípio do mais pequeno denominador comum, ou seja: pouco importam as intenções reais do que querem responder à violência pela violência, pensa-se que esta reposta vai atrair mais gente porque é a mais simples. Mas não. O post mostrou que uma grande parte das pessoas neste mundo tem vontade de reagir com inteligência, de reagir de outra maneira do que aderindo à narrativa que nos tentam impor. Há muita gente no mundo disposta a aceitar uma reflexão mais construída, mais longa, a verbalizar uma alternativa – e a minha reflexão não era longa, levou só mais umas linhas do que o simples “embora, vamos partir-lhes a tromba”. Mais tarde, encontrei outras pessoas do Bataclan, e percebi que sentiam o mesmo que eu. Este movimento já existia, mas precisava de palavras para se exprimir. As circunstâncias fizeram talvez com que este post aparecesse no momento em que todos precisavam de um vetor de expressão.
A seguir à noite de 13 de novembro, houve um compasso de espera terrível. Sentia-se que esta sociedade, no fio da navalha, poderia deixar-se tentar pela “mimética da violência”, descrita pelo filósofo René Girard. Foi nesse momento que chegou a sua mensagem humanista, e foi essa escolha que os franceses imitaram. O seu post tem claramente um alcance histórico.
Penso que foi determinante o fato das palavras virem de alguém do “interior”. Quem estava no exterior dos atentados não se achava com legitimidade para o fazer. Recebi mensagens de pessoas que se sentiram aliviadas quando as leram. Houve quem me confessasse que se estava a fechar na cólera e que se agarrara às minhas palavras para recuperar a razão, dizendo-se: se ele, do interior, recusa o ódio, eu, do exterior, não tenho o direito de o aceitar.
Conta no livro que quase não falou até ter visto a Hélène, morta, na segunda–feira 16, e que logo a seguir chegaram as palavras. “Entravam, saíam”. Começou a “casá-las”, a “separá-las”. Agarrou-se à técnica da escrita para poder fazer aquela escolha, e escrever aquela carta?
Sim. As palavras vieram instintivamente para darem forma a um pensamento que se já se tinha construído. E vieram, também, porque eu senti que ia precisar de me dar uma referência a mim mesmo, para poder dizer-me: é por aí que tu deves ir, e agora tem cuidado porque o escreveste num papel, e se começares a desviar-te do caminho que escolheste, tens as palavras no papel a lembrá-lo. Mas também tinha vontade que este pensamento encontrasse uma expressão escrita para os nossos próximos, para lhes dizer: é verdade que estamos devastados, o Melvil e eu, porque a Hélène era o amor da minha vida, porque era a mamã dele, e a perda da Hélène foi um cataclismo para nós, mas é assim que nós vamos reagir. Começava a ouvir à nossa volta palavras de cólera, coisas do estilo ‘a morte dela não deve ser inútil’, coisas absurdas. Por isso quis também dizer-lhes, com a carta: nós vamos reagir assim e se quiserem fazer como nós, muito bem, senão, não nos imponham a vossa cólera.
Não teve ímpetos de cólera, de ódio?
Claro que sim, a cólera existe em mim! Simplesmente, não me vou deixar guiar por ela. Ponho-a de lado, porque a cólera é um instinto primário, é um instinto animal. Claro que tenho vontade de partir tudo, claro que tenho vontade de me esconder no campo, numa casa equipada com todas as medidas de segurança. Mas porque vivo numa sociedade, porque tenho a responsabilidade da educação de uma criança, e porque quero que o meu filho viva a vida com uma parte de inocência, sou obrigado a recusar a cólera como única resposta e a procurar uma via diferente com a minha inteligência. [Um silêncio]. E depois, há algo de mais íntimo na minha recusa da cólera. Não queria que ela suplantasse o desgosto e a tristeza que sinto com a morte da Hélène que, para nós, representa a perda do amor. E para viver plenamente essa perda e esse desgosto, não posso deixar espaço nenhum à cólera. Tanto mais que a cólera é exponencial. Chega pequena, e se a deixamos instalar-se, cresce, cresce, cresce. E depois há os atentados em Lahore, e ela cresce ainda mais, e há Bruxelas e continua a crescer, e acaba por nos devorar.
O seu post no Facebook transformou-o numa figura icónica. Como tem vivido esse estatuto?
Isso é super simples! Hoje de manhã, às nove horas, deixei o Melvil no infantário, e às 9h30 tinha de estar despachado para receber o canalizador, devido a uma inundação em casa. O personagem icónico fica para os meios de comunicação social, eu vivo como toda a gente. Essa noção de figura não é o meu papel. Primeiro, porque quero ter uma vida para viver, e quero que essa vida seja livre, o que não bate com a obrigação de exemplaridade moral do estatuto de ícone. Depois, enquanto as minhas palavras falam, está tudo bem: as palavras têm uma ressonância especial para cada um, passam a ser das pessoas e podem enriquecer a ação de quem se apodera delas. Mas a partir do momento em que me tornasse no símbolo dessas palavras, as pessoas poderiam delegar em mim as suas obrigações pessoais, com o pretexto que a figura icónica está ali para as representar. Não quero isso. Sou como toda a gente.
Pelo meio, é apanhado a desempenhar também o habitual papel das mulheres com uma vida pública, mas com os pés assentes na terra, por entre as fraldas, as compras e a cozinha [gargalhada de Antoine Leiris]. Ora, num episódio marcante, as mamãs no infantário do Melvil não viam as coisas assim…
A história é bela, porque é uma prova de amor de várias mamãs que nos cozinhavam comida de bebé com muito carinho, pensando que um papá sozinho não o consegue fazer. [O casal tinha abdicado de qualquer ambição gastronómica e o Melvil, habituado às sopas instantâneas e pré-preparadas, não gostou da comida caseira]. E depois, a história também é bonita, porque eu poderia ter tido a tentação de alindar as coisas e escrever que o Melvil comeu tudo, mantendo assim a mentira diplomática que fizera na altura, mas quis ser sincero. E essa sinceridade também tem beleza e poesia, e faz com que os leitores acreditem na sinceridade do resto do livro. Embora às vezes eu me pergunte se as mamãs compreenderam e aceitaram bem…
Como se preservou da bondade à volta, simpática mas intrusiva?
Comecei por dar a entender ao Melvil que a partir daí, a família somos nós os dois, mas que “nós os dois” é ótimo; que somos aventureiros e muitas pessoas vão visitar-nos – avós, tios, amigos meus, os amigos dele e as mamãs deles, e que faremos algumas coisas com eles, mas que a célula familiar somos nós os dois. Sim, houve que levantar uma barreira à nossa volta, mas sem nos isolar, sem fechar a porta. É um equilíbrio difícil, mas agora, cinco meses depois, o Melvil encontrou as suas referências e o seu ritmo, e já posso deixar a porta um bocadinho mais aberta. Somos rotineiros – já o éramos com a Hélène, mas agora ainda mais. Só que ele cresce, e temos de mudar o conforto dos hábitos em que nos tínhamos instalado desde novembro.
Descobri no livro que o primeiro nome de batismo de Hélène era Luna – a Lua.
Hélène era o nome para toda a gente, era o da sua personalidade solar. Luna, ficava-lhe bem, e era só para nós.
Como vê o futuro do Melvil?
Ele fará o que entender, mas quero que tenha a vida mais normal possível. O meu medo tem sido que ele sinta esmagado pela imagem de um “pai herói” que lhe seria comunicada por outros e que em consequência ele se sentisse obrigado a aceitar tudo de mim, sem protestar. A minha sorte é que amigos e familiares próximos não assumem nada essa postura e eu não deixo entrar em casa a tempestade do exterior. O Melvil dá-se conta de que não sou um papá perfeito – ainda ontem, o momento de o deitar não foi um modelo de perfeição – e agora tenho a certeza de que mais tarde não terá problema nenhum para me dizer que sou um chato, ou que não percebo nada, ou essas coisas todas.
E o seu?
Para já, é arranjar emprego, porque ser autor não chega para viver. Tinha deixado o trabalho na Radio France antes do verão, porque queria escrever um livro. Tínhamos o menino e a Hélène e eu estávamos fartos de correr todos os dias atrás de tudo o que nos aparecia para fazer, e tínhamos vontade de tirar tempo para viver os nossos sonhos. A situação económica é tal – em Portugal deve ser a mesma coisa – que toda a gente tem medo e preserva antes de tudo o que já tem, mesmo se isso implica comprometer-se com situações de que não gosta. Tinha a impressão de ter chegado ao fim de um ciclo e não queria deixar-me guiar pelo medo. Contava com o apoio da Hélène, que tinha talvez algum receio da situação mas que não o deixava transparecer para me dar confiança. Agora já comecei a trabalhar no livro seguinte e tenho a estranha impressão de que será o meu primeiro livro.