“Qualquer Estado deveria envergonhar-se do comércio da luz escura e sombria. Os Estados deveriam utilizar todas as armas para combater com verdade os traficantes de produtos da morte. Deixem cada um decidir por si e para si. Viver é alegria, é espanto, é curiosidade pelo desconhecido, é ser amigo, mas também é enfrentar dias penosos, muitos deles através da doença. Uma doença terminal não pode acabar por ultrapassar os limites da vivência humana em dignidade.”
Carlos Oliveira
“A eutanásia é um tema controverso com decisões difíceis de tomar. Como não sabemos se será ou não legalizada será imperativo que o governo crie novos centros de cuidados paliativos para amenizar o sofrimento dos que são atingidos por doenças incuráveis.”
Gustavo Reis, Ferragudo
“Lançar temas que se relacionam intrinsecamente com a nossa Vida e a nossa Morte, para a praça pública, tal como foi recentemente feito, criando uma equipa a ‘favor de um lado’ e outra do ‘contra do outro’, talvez não seja o mais indicado. E, juntando o debate deste tema tão importante, que deverá mais abrangentemente ser chamado de Morte Assistida, com uma série de outros assuntos que se ‘atiram’ pública e publicadamente para ser por todos e cada um discutido, mais um batalhão de comentadores que tudo sabem comentar, como se fosse uma banalidade qualquer que amanhã é substituída por outra, é muito, muito pouco.
E, facilmente se constata, se assim se quiser proveitosamente fazer, que se cria uma tal confusão e banalização do assunto que fica dominado por sentimentos instalados e frases feitas, já sem conteúdo.
E com estes estereótipos já em desuso, ‘encosta-se’ no contra os católicos, os de direita, e a favor os não-crentes e os de esquerda, e ‘isto’ hoje já não correspondendo de forma alguma à realidade.
Por outro lado, não se começa por algo que já é legal, e que cada um caso o pretenda livre e informadamente o pode fazer, que é o Testamento Vital, que existe, sendo desconhecido pela maioria dos nossos concidadãos, ou não se fazendo a mínima ideia do seu conteúdo, por ter “passado” no meio de banalidades que fizeram as noticias na altura, da sua mais efetiva entrada em vigor em Julho de 2014.
Esperemos assim, que depois de outros temas que estão ‘em cima da mesa’ – como hoje é uso e costume dizer – e mais uns quanto em catadupa para lá possam ‘ser atirados’, os ânimos se esfriem, e se possa pretender fazer uma abordagem mais calma, explicativa e desapaixonada da ‘morte assistida’ – vulgo, eutanásia!
Nesse momento sendo indispensável a temática e as abordagens serem feitas com mais razão e menos emoção, muito menos agressividade e arrogância de todos, todos os lados, e sem preconceitos, que se arrastam faz décadas. Havendo sempre e ainda bem, quem esteja de acordo e quem discorde, mas sem berros, nem zangas! E até quem possa mudar lúcida e informadamente de opinião!
Já estamos com posições totalmente extremadas, mesmo que nem se saiba de facto do que se está a tratar, mas sendo um tema público e publicitado todos de imediato se tornam entendidos, peritos, e até opinadores.
Já só se vai ‘atrás’ da pessoa que fala bem e defende um qualquer ‘dos campos’, em vez de se querer saber mais e mais do que se está a tagarelar. Já se discute se é a Assembleia da República que vai decidir, ou terá que ser feito um Referendo, e já se “puxa” o eleito Presidente da República para a confusão, e o essencial está por esclarecer. E já se fala se a alternativa será matar velhos, doentes, inválidos como Hitler fazia, ou se, se vai agarrar a vida como se fim não tivesse!
Esperemos então, melhores tempos e vontades para tratar deste tema, que faz parte na nossa Vida e da nossa Morte, e ainda para mais com a única certeza que temos no momento em que nascemos, que vamos um dia morrer. Quem estas linhas escreve já tem a sua opinião formada e assumida, mas não é para aqui e agora chamada, apesar de assumida sem reservas!”
Augusto Küttner de Magalhaes
“Resposta ao ‘Enfermeiro Francisco’
Caro Diretor da Revista VISÃO,
Luto pela implementação dos cuidados paliativos em Portugal há mais de vinte anos, trabalho numa Equipa de cuidados paliativos há mais de quinze.
Foi com interesse que li o dossier ‘O Mercado Negro da Eutanásia’ e com surpresa que vi o nome de um suposto enfermeiro Francisco no mesmo parágrafo em que se referem à equipa em que trabalho (ECSCP Beja +). Não temos, nunca tivemos, nenhum enfermeiro com tal nome na nossa equipa. Se o tivéssemos, a sua realidade e experiência seriam certamente outras, como o podem testemunhar aqueles enfermeiros que na equipa trabalham diariamente.
Não trabalhamos na antecâmara da morte, trabalhamos com doentes e famílias vivos, que vivem a Vida, intensamente, até ao fim. Que com o apoio de uma equipa competente e dedicada têm não só a possibilidade de verem os sintomas físicos que os afligem controlados, mas também a oportunidade de verbalizar as suas preocupações e discutir as suas vontades e desejos. Um pedido de morte num doente sem sintomas controlados, em sofrimento intenso, é um grito de alerta para o muito que se pode e deve fazer, haja competência para tal. Não é um grito de morte, é um grito de Vida!
Podemos-vos facultar os testemunhos de centenas de famílias que acompanhamos, de algumas dezenas de doentes e famílias que têm atualmente o nosso acompanhamento, de profissionais de saúde que ao longo dos anos aqui estagiaram. Venham passar um (ou alguns) dia(s) connosco e verifiquem como trabalhamos. Façam vocês mesmos, jornalistas, a experiência que em cada ano dezenas de jovens médicos e enfermeiros fazem quando estagiam com a equipa. Venham conhecer pessoas normais que são extraordinárias e que diariamente nos dão lições de vida, doentes e cuidadores. Profissionais que dão tudo, mas tudo, para que aqueles que a eles se confiam vivam a sua vida com a máxima qualidade até ao fim.
Tenho orgulho na equipa que tenho e com a qual trabalho diariamente, todos os dias do ano. Permita-me, caro diretor, que aproveite a oportunidade que me dá para convidar através de si o ‘enfermeiro Francisco’ e a sua equipa a estagiarem connosco, e a partilhar com os enfermeiros Catarina, Emília, Miguel, Sandra, Mariana, Luís (2), Cristina, Manuela, Anjos, Vanda, Isabel e Sérgio a sua experiência e competência no acompanhamento de Pessoas e Famílias em fim de vida. A fazerem a experiência do controlo de sintomas, do apoio à família, da comunicação adequada com todos os intervenientes, de um trabalho verdadeiramente em equipa, onde todos, doente e família incluídos, são ouvidos e tidos em consideração. Depois dessa experiência acredito que o ‘enfermeiro Francisco’ (e os enfermeiros que com ele se identifiquem) deixe de se sentir impotente e passe a sentir-se mais confiante e apto para acompanhar e apoiar pacientes em desespero por até aí só lhe terem sido oferecidos cuidados desadequados face à sua situação de sofrimento intenso. Contribuir para o controlo do sofrimento de quem se lhe confia na fase final da vida permitir-lhe-á também contribuir para a sua própria realização profissional como enfermeiro.
Cristina Galvão
“O perigo da Eutanásia
Múltiplas opiniões defendem não só a correção da Eutanásia como a sua institucionalização, utilizando os médicos como os agentes mais habilitados para a sua execução o que, desde logo, os investe de uma autoridade que a própria sociedade tem vindo a recusar e que conduziu ao fim do paternalismo médico. Esta será mesmo uma contradição insanável entre a autonomia pessoal do requerente da eutanásia e a sua dependência absoluta de um grupo de sábios que determinarão a sua morte.
Compreendo o apelo moral que diferentes situações, como o sofrimento, a perspetiva de morte ou mesmo a ideia da ‘pessoa não inteira’ (e, por isso, segundo alguns indigna!) despertam. Mas, em abono do contraditório, permitam-me recusar esta campanha, pretensamente moderna, de defesa da Eutanásia.
Historicamente todos sabemos que a mesma tem sido praticada em diversas épocas e em diversas sociedades. Todavia os mais recentes argumentos evocam questões de liberdade individual, aliás confundindo autodeterminação com liberdade de agir fora de um quadro moral e identificando consciência individual com relativismo moral. Apelam estes seus defensores a que o mundo contemporâneo tem de se habituar ao valor da livre escolha e que a morte deve pertencer a cada um (Penso que se referem ao determinismo da morte porque a morte é, de facto, a de cada um).
Penso exatamente o contrário, isto é, ao agir num contexto de princípios morais deveremos, pela crítica, construir uma ética o mais coerente possível. Ao argumentar não pretendo impor mas igualmente recuso que me imponham decisões morais. O objetivo destas linhas é que me contestem o mais possível porque a aceitação, aparentemente benévola mas acrítica da Eutanásia e, pior ainda, a sua institucionalização médica ultrapassado a liberdade individual do suicídio tem enormes perigos, impercetíveis para muitos. O seu determinismo será o maior de todos, porque transforma o fim de vida num imperativo moral e social, acabando alguns (a família? os médicos? Os burocratas? Os funcionários do Estado?) a decidir a morte dos mais frágeis os quais, iludidos, atualmente pensam estar a defender a sua liberdade ao aceitar a morte como uma suposta decisão individual.
Num extremismo de arrogância intelectual, alguns deputados da Nação até defendem a existência do direito à morte como um direito aceite e inquestionável! Recusam, por esta razão sem justificação, que a Eutanásia seja objeto de um referendo. Tal certamente não acontece na nossa sociedade que considera o suicídio um mal e que não poupa esforços à sua prevenção, interpretando a sua ocorrência como um sofrimento pessoal e social.
Igualmente advogo que não deverá ser objeto de um referendo mas por ser um Bem indisponível, cuja proteção determina, por exemplo, que a nossa sociedade já não aceite motivos de culpa para executar pessoas não inocentes, isto é, não consideramos a pena de morte aceitável e muito menos referendável. Em última análise aquilo que defendem os promotores da eutanásia como solução é o direito moral ao suicídio, nas mais diversas circunstâncias que o próprio considere adequado e a sociedade aceitável.
Para além do alívio do sofrimento psíquico e físico inerente ao processo de morrer, deveremos escolher o momento para morrer, até antecipando situações que o próprio considere inaceitáveis? Este é o verdadeiro conceito de Eutanásia – a morte como solução – até porque o alívio do sofrimento que decorre da compaixão humana, já fundamenta a Medicina e é já objeto dos cuidados ditos paliativos, para além de outras respostas de carácter espiritual que a Humanidade construiu ao longo da sua história.
Mas este conceito de Eutanásia é, desde logo, incompatível com o fardo de sermos sujeitos morais, detentores de obrigações e direitos. Necessariamente limitados pela própria natureza falível do conhecimento e, por maioria de razão, da razão moral, não podemos deixar de defender que o principio prudencial mais importante, no que se refere ao respeito pela vida humana, é recusar ser interveniente no determinismo da Morte, até pelo simples facto de ser esta atitude o único impedimento a que o direito à vida passe a ser contigente e objeto de permanente violação.
Não discutimos que o ser humano seja capaz de se matar, isto é uma evidência incontestável. O que devemos recusar é a defesa da sua virtude moral, confundida muitas vezes com a defesa de uma autonomia irrestrita, impossível em qualquer sociedade.
Porque, ao aceitarmos que existe o direito moral a que cada um decida pôr termo à vida iremos, inevitavelmente, criar as instituições que o deverão facilitar – será certamente mais correto prestar auxílio a um ato moralmente bom do que dificultar ou impedir a sua concretização!
Por absurdo que pareça não será esta uma sociedade da compaixão mas uma sociedade que promoverá a morte e legislará sobre o seu determinismo estabelecendo as circunstâncias da sua utilidade. Organizará instituições e autoridades que melhor o decidirão, aliás como fica provado nos países que a permitem e que concluíram da necessidade dos médicos para a realizarem. Nestes países já se dispensa a necessidade da existência de um pedido do sofredor e até aqueles que não tem sequer capacidade para o formular, como as crianças, os dementes ou os deprimidos, já são submetidos a eutanásia.
Concluindo, aqueles que pretendem, ao defender a Eutanásia, um controlo da vida e pretensamente da sua própria morte, irão ficar sujeitos ao juízo de terceiros que determinarão porquê, quando e como deverá a sua vida terminar.
Mas, se quisermos aprofundar o contexto ético, considero a Eutanásia um erro moral!
Existem alguns que consideram que a vida deve ser sujeita a parâmetros de qualidade.
Isto é, existem vidas em que ‘a qualidade’ é tão má que, além da natural compaixão por estas pessoas, teremos a obrigação moral de contribuir para acabar com tal situação, de preferência matando-as a seu pedido! Apesar de subjetivo todos qualificamos negativamente certas vidas como a do doente vegetativo, do deficiente profundo , ou do demente irreversível. Ninguém deseja passar por tal situação e o ideal será mesmo que as mesmas não existam. Mas, nestes casos a Eutanásia será, mais de uma aceitação moral, o institucionalizar duma morte, duma Morte que aceitamos como BOA.
Ao aceitar este juízo iremos generalizar o princípio da utilidade desta solução e, deste modo, involuntariamente dar origem a um ‘Darwinismo’ social. Teremos, para tal, de destruir toda a construção moral de proteção dos mais fracos e do valor intrínseco da vida humana que caracterizam a nossa civilização. Direitos que tão laboriosamente foram defendidos, atualmente quase universalmente aceites e que estão consubstanciados em múltiplos documentos, marcos da nossa própria civilização e que, deste modo, terão que ser rasgados.
O primeiro e mais fundamental de todos é o direito à vida.
Poderemos violar este nosso direito? Ou, dito de outra forma, será este direito alienável pelo próprio? Caso tal não seja possível, será inconsequente discutir se a autonomia do agente moral- o ser humano- pode ser irrestrita. Isto é, se pode decidir o momento de morrer, violando o direito à vida, até porque não existe um direito à morte, por antinatural.
Aliás, a discussão da eutanásia é também a discussão moral do suicídio. Relembro Albert Camus quando considerou que, a existir um problema moral, seria o do suicídio.
O suicídio como expressão do princípio da autonomia individual é moralmente correto? A autonomia será um valor absoluto? Podemos dispor da nossa vida como a derradeira atitude de dignidade? Ou, pelo contrário, existirão limites impostos pela mesma dignidade (isto é, a dignidade da vida humana) e a autonomia individual não permite dispor da nossa própria vida!
Certamente a origem da vida não foi resultante da nossa própria vontade, mas podemos determinar o seu fim. Isto é um facto. Independentemente deste realismo, sabendo que os factos, por si só, não impõem valores morais e se nos é vedado dispor das vidas dos outros, será moralmente aceitável dispor da nossa própria vida? Este ato violará o conceito da dignidade da vida humana? Este conceito que apresenta um caracter único, um valor especial que a nós próprios atribuímos, quando constatamos que somos a única espécie de vida que possuí uma perspetiva moral das consequências das suas ações.
Agimos submetidos a conceitos do bem e do mal. Esta responsabilidade e as obrigações que daqui emergem implicam que determinados atos, como o do suicídio, ultrapassem o individual e revelem um aspeto social , mesmo simbólico, que não pode ser desprezado.
Ao terminar voluntariamente com a própria vida, independentemente das razões aduzidas, assume o suicida que esta só tem valor para o próprio, o que não é verdade.
Assume o direito de dispor da mesma ao ajuizar que existirá uma vida que não vale a pena viver. Em relação a juízos da qualidade de vida aceito que só o próprio o pode fazer. Mas, se concordar com esta justificação, necessariamente o valor da vida humana passará a ser de caráter instrumental, possibilitando a emergência de valores sociais que, negando o indeterminismo da morte individual, aceitarão que a mesma seja promovida quando a vida deixar de fazer sentido, de valer a pena viver, com o perigo de tornar o suicídio um imperativo moral. Este, numa sociedade idealmente aberta poderia depender, eventualmente, somente do juízo individual mas, numa sociedade menos crítica ou menos livre, passará a ser determinado por outros. A possibilidade de decidir pela morte, mesmo que seja numa sociedade livre e que tal pareça presumivelmente melhor para quem a assume, nunca resultará neutra. A mera existência da mesma promove a decisão de optar pelo suicídio, porque a continuação desta vida se fará sentir não só como um peso para o próprio mas como um fardo para a sociedade.
Os valores, para serem valores morais, tem que ser universais, intemporais e descobertos pela nossa razão crítica e o valor da vida, se não a queremos disponível e instrumentalizável, tem que ser moralmente indisponível, mesmo para o próprio, porque esta aceitação da inviolabilidade da vida humana terá um valor prudencial e todos, mesmo os suicidas, podem errar irreversivelmente.
Todavia, na vida real e perante um ato tão radical e absoluto, apesar de concluirmos que possa ser moralmente incorreto, habitualmente ficamos imersos na tragédia sentindo a inutilidade de expressar qualquer censura moral, aliás inconsequente relativamente ao caso concreto. Censura moral absolutamente errada na maior parte dos suicídios que, creio, resultam de atos de desespero e de perturbação do juízo crítico do próprio suicida. O suicídio “filosófico” em que pretensamente alguns enquadram a discussão da Eutanásia, a existir, será a exceção! E sim, será este o que merece a nossa reprovação porque a sua aceitação abre portas a uma sociedade, mais que respeitadora da liberdade individual ou da consciência individual, será uma em que a vida só terá um valor instrumental e só se for útil para a sociedade! Concluindo, uma sociedade de imposição, uma colmeia de formigas mas não sociedade humana.”
Leonel Cardeira, Lisboa
Médico
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