Foi no Centro de Alto Rendimento do Jamor que Nelson Évora começou a preparação para o Campeonato do Mundo de Atletismo em Pequim, na China que irá decorrer já a partir desta quinta-feira, 20, a 30 de agosto. Foi aqui, também, que recebeu os conselheiros político e da cultura da Embaixada da China em Portugal e o diretor de marketing da Huawei, patrocinadora do Sport Lisboa e Benfica, clube de Nelson. Os convidados, aliás, mostraram-se conhecedores da história do atletismo português. Discutiram Rosa Mota, Carlos Lopes, Naide Gomes e, claro, o próprio Nelson. “Rosa Mota foi a nossa Waterloo”, disse um deles, em bom português – os Jogos de Seul, na Coreia do Sul em 1988, foram a grande derrota da China.
Discutido o atletismo estava na hora de passar à prática. “I’m gonna start training”, avisou Nelson, não fosse algum deles não falar português. E começou a correr. Deu voltas ao campo, saltou barreiras e levantou pesos. No fim do treino, o rapaz de 31 anos, medalhado com ouro nos jogos de Pequim em 2008, ainda teve fôlego para falar com a VISÃO.
Este é o tipo de treino normal?
Nelson Évora: Neste momento da época, é um treino mais ou menos normal, para qualquer atleta que faça cenas explosivas…
Não se treina o triplo salto todos os dias?
Não, não. É impossível fazer o triplo salto todos os dias. Fazemos trabalho de saltos duas, três vezes por semana. Musculação, fazemos também uma duas vezes por semana. Durante a semana é mais trabalho de velocidade, de ritmos, corrida para desenvolvermos um pouco mais a velocidade, que é muito importante e essencial para o triplo salto. O nosso trabalho nesta altura acaba por ser baseado em estímulos muito fortes. Como aconteceu agora [treino de hoje].
Como é o dia normal de Nelson Évora?
Acordo por volta das 8h30, tomo o meu pequeno almoço e dirijo-me para aqui para começar a fazer a recuperação do treino anterior. Depois, volto para casa e almoço. Duas, três horas mais tarde estou aqui outra vez para fazer o treino. Entro às três e tal, começo a treinar às quatro, acabo às sete. Agora vou fazer um pouco de alongamentos com os fisioterapeutas. E hoje tenho agendada uma pequena massagem porque estou um bocado dorido ainda do fim de semana, e amanhã, logo às 10 da manhã, estarei na pista pronto para saltar.
Tem cuidado com a alimentação?
Sei muito bem aquilo que devo e não devo comer. Sei que alimentos devo evitar. Tudo bem que há dias para tudo, mas normalmente são seis dias em que tenho muito cuidado com o que como e depois um dia que como coisas mais calóricas. Mas também não é exagerada. É uma refeição que acaba por ser… O meu biscoito da semana… [risos]
Depois dos treinos, quando chega a casa, o que faz?
Eu agora vou sair daqui extremamente cansado. Vou chegar a casa, tomar banho, jantar e uma, duas horas depois, dormir. Amanhã acordo às oito, tomo o pequeno-almoço, preparo as coisas para o treino e vou calmamente para o treino. Não sobra muito tempo. Amanhã será um dia diferente. Um dia em que farei tudo da parte da manhã. Portanto vou treinar da parte da manhã, farei a recuperação, terei uma refeição a meio da manhã, às onze e meia, para não ficar muitas horas sem comer. E depois só almoçarei por volta das três da tarde, porque logo após o treino faço a recuperação e assim fico com a minha tarde livre. É um dia que posso aproveitar melhor. Tenho um pouco mais de tempo para mim. Não é muito normal.
E saídas à noite? Não há?
Não. Não. Não. Ninguém me vê à noite. [Risos.]
Não deixam?
Não há tempo! Não há energia, não há disponibilidade, não há espírito para… Custa um pouco. O nosso verão é ótimo… O período que custa mais é este. Toda a gente vai para a praia. Toda a gente vai de férias…
Ainda não foi de férias?
Não. Vou só em meados de setembro. 15 de setembro para cima.
Para onde?
Não sei, não sei. Não tenho nada planeado.
Mas é para algum lugar onde se possa aproveitar a praia?
Eu adoro fazer calor. Já fiz as Caraíbas todas. Gostava muito de ir para Cuba… Não sei… Também tenho pouca gente com quem possa viajar. Por isso onde é que irei? Quando surgir oportunidade para ir a algum sítio simpático… O mais difícil é algum amigo poder vir comigo, porque normalmente nessa altura já toda a gente começa a trabalhar. Já ninguém tem férias. E fico sempre limitado. Mas há sempre alguém que me acompanha. Nem que seja o meu treinador, que já o fez. Acabamos por não… Por não ter férias um do outro. [Risos] Mas tem de ser. É o que há! Nós aproveitamos também. É sempre muito agradável passar férias com a família dele.
Poderia fazer outra coisa para além do triplo salto?
Neste momento, não. Não me via a fazer outra coisa. Mas…. Certamente no futuro… Vou fazer outras coisas! Se relacionadas com o desporto, não sei. Tenho já em mente alguns projetos. Dentro de um dois anos terei que começar a avançar com eles. Acabar o meu curso.
Que curso?
Marketing e publicidade. Neste momento está parado. Mas é um curso que quero terminar. E depois sim, começar a arriscar mais noutro tipo de projetos, porque também é essa a minha formação.
No início da carreira, alguma vez pensou chegar tão alto?
Não. Nunca pensamos que podemos ir tão longe ou que podemos ganhar uma medalha olímpica. Mas sem dúvida que temos sempre isso em mente. É um dos objetivos. É um dos sonhos…
[O treinador João Ganso passa por Nelson e avisa-o: “10 horas amanhã!”]
… Não sonhava, mas nunca pensei que isso iria acontecer.
As lesões estão controladas?
Está tudo ultrapassado, nada de problemas físicos. Só mesmo cansaço causado pelo treino mas isso é normal. Preciso de um bom período de repouso, depois desta época longa. Desde outubro que estou a treinar, sem qualquer tipo de… Desde outubro tive quatro dias de férias, sem pisar uma pista. É muito pouco tempo sem férias. Mas terei o meu descanso no devido momento.
O que fazia quando estava lesionado?
Trabalhava mais, se calhar, do que trabalho agora. Tinha que voltar a fazer todo o trabalho base, correr, fazer reforço muscular. Acaba por ser o mesmo número de horas de quando estamos a trabalhar a 100 por cento. Porque eram bidiários em termos de tratamento, de manhã, de tarde, e estando limitado fisicamente. Não se pode sair à noite, também não há espírito para isso! Quando falo de saídas à noite, falo de diversão, não é? Extra desporto. Mas vai sempre surgindo um jantar com amigos, ou qualquer coisa assim, que já dá para desanuviar um bocadinho. Mas acaba por ser uma vida um pouco monótona. Nem toda a gente teria paciência para este tipo de vida.
E quando não estava na fisioterapia?
Aproveitava ao máximo o meu tempo. Também ainda faço isso. Passear com amigos, ir de férias, fins de semanas fora. Conhecer alguns pontos de Europa. Coisas normais. Coisas que saem um pouco daquilo que eu faço. Conhecer Portugal nalguns pontos que ainda não explorei bem. Adoro fazer turismo rural. Hoje em dia está muito na moda e o nosso país tem muita qualidade nesse sentido. Desfrutar dos nossos pratos maravilhosos que temos.
As lesão nunca o intimidaram?
Mexem com o nosso psicológico. Mas depois de ultrapassadas há que pôr isso atrás das costas, pensar no presente, dar o nosso melhor e não pensar no que vem depois. Tem de haver um planeamento, mas não é algo que me faça parar para pensar todos os dias no final da minha carreira. Nós vamos sentindo quando estamos a caminhar para lá. E certamente não poderá ser mais cedo do que o previsto. Nem mais tarde, não é? É algo que temos de fazer juntamente com os profissionais que estão ao pé de nós. Fazer uma análise muito dura da realidade. Só assim é que podemos tomar decisões tão decisivas, como é o final de uma carreira de um atleta.
Costuma pensar muito no fim da carreira?
No fim da minha carreira? [Risos] Não. Não penso muito no fim da minha carreira. Já tive muito tempo para pensar no fim da minha carreira durante as lesões. Mas não é algo que em que costume pensar.
Numa reportagem que o Expresso fez sobre si, fala das rivalidades entre os competidores. Qual foi a pior coisa que já lhe disseram?
É muito difícil de me chocar [Solta uma gargalhada].
Mas já disseram alguma coisa?
Chama-se todo o tipo de nomes, nomes menos agradáveis. Isso é o que acontece mais. Tenta-se muito jogar pelo psicológico. Esse tipo de intimidação nunca resulta comigo. Estou sempre à espera do pior dos meus adversários. Por isso, nunca saí de lá chocado com o que fosse. Comigo não, pessoalmente não. Mas há situações menos agradáveis. Atletas que se nota que ficam alterados e que não se conseguem voltar a concentrar para a prova, acaba por haver um pouco de anti fair play.
Durante a emissão televisiva das competições parece que há um ambiente…
Mal mostram os nossos saltos como deve ser. As pessoas não têm a mínima noção do que se passa lá dentro. Dão pouco tempo de antena aos atletas. Mostram somente os saltos. A outra parte da nossa ciência ninguém vê. Ninguém vê que, quando um atleta vai competir num campeonato do mundo, está sozinho. Está completamente sozinho. E no caso de nós [Portugal], que só qualificamos um atleta por prova, não temos com quem poder trocar dois dedos de conversa, só para desanuviar um bocadinho. Estamos sozinhos. E não podemos levar headphones. Não podemos levar nada. Estamos ali por nossa conta. A concentrar, a tentar fazer o nosso melhor durante duas horas, duas horas e um quarto, que é mais ou menos a duração de todo o processo até entrarmos no recinto, na competição… Não é fácil.
Já houve algum adversário que o elogiou?
Acaba sempre por haver aqueles atletas, os mais jovens, ou algum atleta que de alguma forma influenciámos. Acho que o mais simpático que eu já tive foi um atleta dizer-me que tinha visto milhares de saltos meus e que tinha aprendido muito com os saltos.
Dentro da competição?
Antes. Antes. Isso acaba por ser um elogio. Um adversário nosso admitir que que aprendeu com aquilo que viu do nosso trabalho acaba por ser um elogio muito bom. Deixa-me muito muito satisfeito.
Como é a relação com o treinador? Já lá vão 24 anos…
24 anos… É mais do que uma relação atleta/treinador, de amizade também, muito respeito, muito carinho.
Há bocado apercebi-me que o chamou professor. Ainda não quebraram essa..
Não! Foi um hábito que ficou. Por mais nada. Foi um hábito que ficou. Eu trato-lhe por professor. Temos a noção de que é importante separarmos as coisas. Estamos, aqui, no nosso meio profissional. Amigos, amigos, negócios à parte. Não é? E aqui há que separar. E trato-o com o máximo respeito possível em todos os locais em que estou com ele. Mas aqui faço essa distinção. Faço questão de lhe chamar professor porque ele é o meu treinador. É assim que nós tratamos treinadores aqui. Se fosse no futebol, era mister. Se fosse noutro sítio, não sei. Mas aqui é assim.
Sente muita pressão quando está em competição?
Espera-se sempre pressão. Mas no nosso caso as pessoas não estão à espera que os nossos atletas façam um bom resultado. O problema do povo português é que espera sempre o ouro. Se não for ouro é sempre uma derrota. Então acaba por haver um pouco de pressão. Treino todos os dias! Dou o meu melhor. Já consigo ser um dos melhores do mundo. Já é algo muito bom.
Se sei que dei o meu melhor e que tudo fiz para chegar lá o mais forte possível, saio de consciência tranquila. Eu acho que todos os portugueses deviam se sentir bem representados e orgulhosos por um atleta representar as cores nacionais, representar o país. Por isso não penso nessa tal pressão.
Quando está na posição para começar a correr não há nenhuma distração?
Não. Ali é um momento decisivo. É um momento em que nos isolamos completamente em termos de barulhos, de pensamentos, mente vazia. Pensamos em duas, três coisas. E é em pôr tudo na corrida de balanço, o mais rápido possível para atingirmos a velocidade necessária para voar.
Em que é que se pensa quando se está a saltar por cima da areia?
Só quero ver os 17 metros bem atrás de mim! [Risos] É o meu foco. Os 17 metros são sempre o meu ponto de referência.
As pessoas reconhecem-no na rua?
Sim, as pessoas reconhecem muito algo que eu tenho feito. Sinto-me muito satisfeito. É um reconhecimento do meu trabalho. As pessoas vão vendo notícias minhas e vão acompanhando a minha carreira. Só tenho pena que as pessoas não consomam aquilo que faço. Não vão aos estádios para me verem saltar. Não há esse hábito. Acho que é a única mágoa que eu tenho. A nossa realidade desportiva é essa. As pessoas não apoiam como deveriam apoiar. Mas no meu caso, tenho o reconhecimento devido, mas muitos não têm. Não digo que as pessoas não deveriam ver todas as competições. Mas as mais importantes, como as do circuito mundial. As pessoas não são bem informadas. Também há a culpa dos dois lados. Não digo que a culpa seja minha. Mas os responsáveis pela modalidade não fazem uma comunicação devida e as pessoas também não respondem de uma forma correta também aos níveis competitivos que existem cá em Portugal. Assim é difícil. E é algo que me deixa, muitas das vezes, triste, já que visto tantas vezes a cor da nossa bandeira. Gostaria também que as pessoas me dessem apoio pessoalmente.
Qual é a coisa que mais gosta de fazer para além do desporto?
Adoro passar tempo com os meus amigos e rir-me, porque tenho amigos muito divertidos, muito palhaços [risos]. É uma das coisas que mais gosto de fazer, estar entre amigos e estar a falar de todo o tipo de assuntos e rir-me. E acho que não há nada melhor na vida do que isso.
E a coisa que gosta menos de fazer?
O que gosto menos de fazer?… O que gosto menos de fazer é algo extradesportivo quando estou extremamente cansado. Porque a minha mente precisa mesmo de dormir, descansar, tenho pouco tempo para o fazer e a minha disposição não é a melhor.
Qual é o seu segredo?
O meu segredo? [Risos] O meu segredo é a paixão. A paixão. É isso que me faz ir à luta quando muitos já teriam desistido. Sem dúvida. É a paixão.