NÃO PERCA
Portugal ocupa o terceiro lugar dos países da Europa com as mais elevadas taxas de cesariana, apenas suplantado pela Itália e Turquia. Em 2013, quando a taxa chegou aos 35%, o Governo decidiu agir e a Comissão para a Redução das Taxas de Cesariana conseguiu melhorar os números dos hospitais públicos, mas nos hospitais privados o problema mantém-se: duas em cada três mulheres têm os seus filhos por cesariana, as taxas ultrapassam os 66%, o que deixa o país no grupo dos piores da Europa.
Diogo Ayres de Campos, obstetra, professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e presidente desta comissão, explica os riscos acrescidos de uma cesariana e desmistifica a ideia de que o número de cesarianas está relacionado com bons indicadores de saúde de mães e bebés. “Os países do norte da Europa têm taxas de cesariana que são metade da que temos em Portugal e têm os melhores indicadores em termos de mortalidade dos bebés e das mães.” Garante que não está numa cruzada contra as cesarianas, apenas contra as que são desnecessárias e que causam riscos que poderiam ser evitados.
As indicações clínicas para a realização de uma cesariana estão definidas?
Sim, mas há uma certa subjectividade, os seres humanos são todos diferentes. E por vezes aproveitou-se um pouco – no passado aproveitou-se bastante – essa subjectividade para tomar uma decisão mais fácil que é fazer uma cesariana. Tendo-se passado também a mensagem, e por algumas pessoas com bastante influência a nível nacional, de que a cesariana tinha vantagens porque era possível programar o parto, escolher a equipa que ia fazer a cesariana, enquanto que no parto normal isso não acontecia. Isso são de facto vantagens claras da cesariana e ninguém está em desacordo com isso. O problema é o que está no lado oposto a isto, que são os riscos de saúde que estão associados a uma técnica cirúrgica, que envolve todos os riscos acrescidos de uma anestesia, riscos acrescidos de uma cirurgia em que às vezes há lesões dos órgãos à volta, há mais hemorragia, há mais infecção, as pessoas estão mais tempo deitadas e têm mais possibilidade de fazerem êmbolos e trômbolos nas veias. Depois há os riscos para a gravidez subsequente, que são placentas com inserções anormais, ou seja, a implantação da placenta em local anormal na gravidez seguinte, porque há ali uma cicatriz. E os problemas também para o recém nascido.
Que riscos são esses para o bebé?
O recém nascido, quando não passa pelo trabalho de parto, quando não tem as contrações do trabalho de parto, tem muito mais vezes problemas respiratórios. Também não tem o contacto com as bactérias que estão no canal de parto [na vagina], o que faz com que, no futuro, venha a ter maior risco de diabetes, asma e de obesidade. Tudo isto se sabe muito bem da literatura científica internacional e foi isso que nós quisemos transmitir à população em geral e aos profissionais de saúde, que têm dificuldade a chegar a essa informação.
Consegue-se saber quais as principais razões que levam às cesarianas em Portugal? Há uma lista?
Não existe uma lista das razões que levam à realização das cesarianas e por isso a importância de se implementar um programa informático uniforme em todos os hospitais públicos. Saberemos com mais precisão por que razão se fizeram as cesarianas, que são muitas vezes necessárias. Ninguém está aqui numa cruzada contra as cesarianas, só contra aquelas que são desnecessárias e causam riscos que não são justificáveis. Porque as cesarianas são extremamente úteis para resolver a situação com segurança. Mas quando se exagera, quando se parte do principio que cesariana é a forma mais fácil e mais segura de se nascer, aqui é que está o erro e estamos a causar alguns riscos que se calhar as pessoas não sabem.
O que é que deve ser dito a um casal que está à espera de um bebé em consulta sobre a cesariana? E quando?
Eu acho que deve ser dito que, se houver uma indicação qualquer de saúde para fazer uma cesariana ninguém hesita. Mas não havendo, e sabemos que em noventa e tal por cento das situações não há indicação nenhuma, porque a maior parte das grávidas são pessoas saudáveis, a forma mais segura de se ter o bebé é através de um parto normal. Não é de um parto que é provocado, porque isso também tem um risco maior para o bebé e também um risco maior de acabar em cesariana, é de um parto que, chegando a altura certa, o bebé dará sinais de quando é que quer nascer. E começará a ter um trabalho de parto de início espontâneo. É assim que devem nascer a maioria dos bebés em todo o mundo porque é mais seguro. As cesarianas devem ser reservadas para aquelas situações onde há indicação prévia, ou para as situações em que, durante um trabalho de parto não há evolução ou há alguns sinais do bebé que poderá não estar a ser adequadamente oxigenado. Nessas situações, pode e deve ser feita uma cesariana para que ocorra o nascimento de um bebé normal que é o que todos nós queremos.
Os partos provocados levam muitas vezes a uma cesariana. As grávidas têm noção de que a indução tem riscos acrescidos?
A indução tem riscos. E é importante que as pessoas saibam que, se vão ter um trabalho de parto com um determinado profissional, num hospital privado, ou se têm num público com uma equipa preparada, mas não são as pessoas que conhecem, o casal tem que ter a noção dos riscos. Há três aspectos a ter em conta quando se pensa num parto induzido: primeiro, é francamente mais doloroso e mais demorado para a mãe – estamos a provocar contrações que são artificiais, não naturais – o risco de baixa oxigenação do bebé também é maior – depende do método de indução, há uns mais agressivos que outros, mas o risco está lá. E depois tem risco acrescido de o parto terminar numa cesariana, que é duas ou três vezes superior em relação a um parto não provocado. Se as pessoas quiserem correr esses riscos correm, mas têm de estar bem informados.
A altura para a indução também tem peso. Quando devem ser feitas as induções?
A indução, sem patologia nenhuma não deve ocorrer antes das 41 semanas. Mas se o casal, juntamente com o seu médico, decidir uma indução sem motivo nenhum de saúde – não estou a dizer que eu recomende – mas se decidir, não deve ocorrer antes das 39 semanas. Isso está bem demonstrado. Se antes das 39 induzimos um trabalho de parto, o risco de aquele bebé necessitar de ir para uma incubadora, necessitar de cuidados intensivos, é muito maior. Todas as sociedades científicas do mundo inteiro estão de acordo neste aspecto: induções sem motivo clínico, nunca antes das 39. E mesmo cesarianas sem motivo de saúde nunca antes das 39, porque se fizermos uma cesariana programada, sem motivo nenhum, às 37 semanas, o bebé tem vinte vezes mais riscos de acabar nos cuidados intensivos, por problemas respiratórios.
A evidência científica mais recente veio questionar muitas práticas obstétricas, algumas implementadas há anos. Uma delas foi a questão do trabalho de parto estacionário, aquilo que as mães justificam como: “Eu não dilatava”. O que se sabe agora?
O trabalho de parto estacionário é a causa mais frequente de cesariana em quase todo o mundo. Durante muitos anos, nós usámos as chamadas “curvas de Friedman”, que indicavam o que seria a progressão normal de um trabalho de parto. Eram baseadas num estudo dos anos 50, realizado numa população americana. O que mudou e que fez com que se ponha em causa este estudo? Há muito mais epidural, mais intervencionismo na sala de partos e a população também mudou. Há estudos mais recentes nos EUA, sugerindo que o trabalho de parto afinal é muito mais lento do que se pensava nos anos 50. Tudo isso fez com que os americanos tivessem revisto completamente os critérios do que é o trabalho de parto estacionário e algumas dessas evidencias passaram para Europa. Se acho suficiente? Não. Eu gostava de ter um estudo na nossa população, pelo menos europeia, para saber como é na Europa. Em Portugal temos uma média de taxa de epidurais muito acima da média europeia, temos à volta de 90%, alguns países europeus tem apenas 40%, outros apenas 30%, porque as senhoras não pedem epidural, porque acham que é uma dor que se tolera, que é fisiológica, que desaparece. É uma coisa cultural, nós somos um bocado diferentes. Mas gostava de ter essa evidencia na nossa população. Neste momento não estamos em condições de o fazer mas acho que daqui a um ou dois anos, porque entretanto temos muitos dados em programas informáticos, já vamos ter muitos dados sobre a população portuguesa.
Em relação aos bebés muito grandes – a chamada macrossomia fetal – o que deve ser feito? A margem de erro nas ecografias é grande?
É um tema difícil de estudar ao nível científico. Portanto, o que acontece é que grande parte da evidência sobre se se deve fazer ou não uma cesariana eletiva [marcada] em bebés de alto peso, vem apenas da opinião de peritos e não é baseada em evidência muito forte. Nós sabemos que a ecografia tem uma margem de erro na estimativa do peso e essa margem aumenta nos bebés que são maiores, portanto não é de estranhar uma diferença entre o que é uma estimativa de peso e um peso real que ronde os 20% de diferença. Sabemos que as grávidas diabéticas têm bebés maiores, sobretudo as não controladas, e que muita dessa gordura se acumula nos ombros. Nessas situações há um risco particular que é a distocia de ombros, que é quando sai a cabeça mas não saem os ombros. Passou a tomar-se por rotina que a partir de um certo peso o risco do parto com uma distocia de ombros é tão grande, que não vale a pena tentar sequer. Isso está generalizado. Agora, a grande controvérsia é qual é esse peso estimado. Nalguns países europeus, aos 4,500 kg ninguém tem dúvida que se deve fazer a cesariana, os americanos passaram dos 4,250 kg para os 5 kgs, mas não é baseado em grande ciência….
Mas numa gravida não diabética uma estimativa de alto peso deve significar a marcação de uma cesariana?
Sabemos que bebés muito grandes põem problemas no parto e ninguém quer correr grandes riscos. Tem de haver um peso estimado a partir do qual não vale a pena tentar um parto natural. A grande questão é saber qual é esse peso e não há consenso. Na minha opinião, algures entre os 4,500 kg, mais ou menos, há-de estar a razão. Na maior parte das situações intermédias é que se pode tentar um trabalho de parto normal. Se ele estiver a correr normalmente é porque não há uma grande incompatibilidade entre a dimensão do bebé e a bacia da mãe. Aí, deixamos o parto evoluir. Mas tem de haver um limite superior e não é algo cientificamente bem comprovado.
Perdeu-se a experiência do parto natural, do chamado parto fisiológico, sem medicalização?
Sim, é verdade. Mas na nossa população, a maior parte das grávidas em trabalho de parto precisam de alguma analgesia. Mesmo quando há grávidas que vêm com intuito de um parto desmedicalizado, muitas delas, a certa altura, mesmo estando a andar de um lado para o outro, em deambulação, mudam de opinião. E a partir do momento em que mudam de opinião e querem fazer epidural, toda a desmedicalização vai à vida. Ou seja, passamos a ter uma vigilância muito maior, não só dos sinais vitais da mãe como também da frequência cardíaca do bebé, começam a fazer soros, ou seja, é uma coisa à parte. Se nós continuarmos, e provavelmente será essa a tendência, a ter uma taxa de epidurais à volta dos 90%, resta só 10% de pessoas onde poderá de facto ser útil haver uma atitude menos interventiva no parto.
É pouco…
Muito pouco. Mas para essas pessoas que querem um parto natural devemos ter todo o leque de opções possível.
Uma mulher que pede para que lhe seja feita uma cesariana sem indicação clínica deve ver o seu pedido atendido?
É uma opinião pessoal, não tem nada a ver com a comissão, nunca falámos sobre isso porque é uma margem muito pequena da taxa de cesarianas. Há muito poucas mulheres a pedir, muito poucas. Mas eu acho que, primeiro, a mulher deve ser elucidada de uma forma muito clara dos riscos da cesariana. Desde precocemente na gravidez, porque às vezes as grávidas têm uma ideia inicial e quando nos apanham já chegam com uma ideia feita e é muito difícil voltar atrás. Deve dizer-se à mulher que a cesariana não é recomendada por ninguém e acho que a grávida deve assinar um consentimento a dizer que esta é a escolha dela e que os riscos acrescidos são assumidos pela própria grávida. Há muitas dúvidas sobre o ponto de vista financeiro. Na minha mente, não devem ser os contribuintes nacionais a pagar essa decisão. De maneira que, no meu entender, os hospitais deviam implementar uma forma de, no caso de acederem a esse pedido, assegurarem que os custos não vão para os contribuintes mas para quem tomou essa decisão. E em último lugar, se a mulher continuar a insistir e a dizer que quer, eu acho que se deve fazer a cesariana. Há uma grande percentagem de senhoras que chega ao fim e muda de opinião, mas há outras que não. Acham que, apesar de todos os riscos, decidiram que é assim que querem ter o bebé. E quando já se tomou essa opção, estar a forçar outra coisa cria mais riscos do que fazer a cesariana.
A primeira medida que foi tomada e posta em prática por esta comissão para a redução das cesarianas foi uma medida financeira.
Essa medida entrou em vigor em 2014 e no início houve alguns mal entendidos porque alguns hospitais acharam que teriam um corte no pagamento, mas depois de esclarecidos penso que não houve recepção negativa dessa medida. Porque quando há esses incentivos, há uma pressão que vem desde a administração do hospital até às direções de serviço e há uma pressão no sentido de se limitar as cesarianas. Nós podemos pensar que isso é positivo por um lado e menos por outro. Mas se ao mesmo tempo, se transmite uma informação muito clara da razão pela qual se pretende reduzir as cesarianas, dos riscos que estão associados à cesariana, penso que não é entendida só como uma medida de repressão, mas como uma medida que é necessária. A compensação será também a diminuição dos riscos que se corre. As duas coisas juntas foram uma parte do sucesso destas medidas.
Mas como se explica que a realização de um ato clínico, que deve ter um motivo médico, passa a ser menos praticado por questõess financeiras ou pressõess administrativas? Não deveria ser ao contrário?
A pressão administrativa só por si não faz sentido. Só faz sentido quando há uma justificação para essa pressão, mas percebo o que está a perguntar. Porque realmente parte-se do princípio de que algumas daquelas cesarianas eram desnecessárias e o que temos para achar que elas eram desnecessárias é a comparação com outros países, onde havendo uma taxa de complicações até inferior ao que temos em Portugal, há um número de cesarianas muito menor. Os países do norte da Europa, da Escandinávia, têm taxas de cesariana que são metade da que temos em Portugal e têm os melhores indicadores em termos de mortalidade dos bebés e das mães, e também de morbilidade, das doenças. De maneira que achamos que, provavelmente, algumas das cesarianas que se fazem são desnecessárias.
A taxa de cesarianas baixou nos hospitais públicos, mas nos hospitais privados ela é mais do dobro do que no público. E estamos na cauda da Europa porque a taxa de 66% nos privados faz disparar a taxa total. Não deveria agir-se sobre os hospitais privados?
A maior parte dos partos em Portugal dá-se nas instituições públicas – cerca de 85% ou até mais, e tem-se mantido sempre assim. Se nós conseguirmos reduzir as cesarianas nos hospitais públicos atacamos grande parte do problema. Ficamos com os restantes 15%. O facto de termos conseguido reduzir valores que andavam à volta dos 33% nos hospitais públicos e agora andam à volta dos 28%, é algo que nos deve dar alguma satisfação e não desvalorizarmos só pelo facto de o problema não estar totalmente resolvido. Deve orgulhar-nos. Isto teve uma repercussão na taxa nacional, que andava à volta dos 36%, agora anda à volta dos 33%. Continuamos ainda na cauda da Europa, mas já não tão afastados do pelotão. Não estamos tão mal como estávamos. Mas ainda é preciso fazer mais coisas. Eu acho que podemos reduzir ainda um bocadinho nos hospitais públicos porque as medidas propostas pela comissão não foram todas implementadas ainda.
E restam-nos as taxas dos hospitais privados: 67,5% de cesarianas, em 2012 houve uma ligeira descida. A comissão está muito mais limitada naquilo que pode propor para os hospitais privados. Aquilo que nós propomos é usar alguma desta experiência que tem a ver com financiamento, que tem a ver com alguma divulgação dos riscos, com o treino dos profissionais de saúde… Nós sabemos que, informando a população, serão as próprias grávidas a dizer não, não quero ter cesariana, porque sei que tem riscos acrescidos e talvez tenha sido isso que já tenha afectado um pouco a descida nos hospitais privados.
Falou de envolver as seguradoras…
Nós sabemos que as cesarianas têm um risco acrescido de complicações, portanto é natural essas complicações gerem custos acrescidos. Para as seguradoras acho que é importante – e é o que se passa na maior parte dos países europeus – que haja um pagamento muito diferente consoantes seja um parto normal ou uma cesariana e haver um pagamento maior no caso de o parto ser normal. Funciona a favor das seguradoras.
Mas se os hospitais privados cobram quase o dobro por uma cesariana do que por um parto normal, como se faz isso?
Quem tem de tomar a iniciativa aí são as seguradoras. Acho que não é do interesse delas estarem a pagar mais por uma técnica que tem riscos acrescidos e que esses riscos têm custos acrescidos. De maneira que faz sentido reduzir os preços da cesariana. Nós propusemos, no relatório final que enviámos ao secretário de Estado da Saúde, que houvesse um contacto directo com as seguradoras para tentar defender estas ideias. Pensando que temos realmente de fazer alguma coisa na medicina privada, porque neste momento a taxa é tão mais elevada que faz disparar a nossa taxa nacional de cesarianas.