No meio de tanta agitação, os telefonemas para os familiares na Ucrânia, muitas vezes via skype, tornaram-se mais frequentes. Do Maidan às ameaças separatistas a leste, passando pela anexação da Crimeia, as notícias são recebidas com grande preocupação por estes imigrantes.
“(…)Viva vocês, montes azuis
cobertos pelo gelo
E vocês, grandes guerreiros
Por Deus não esquecidos
Lutem – vencerão!
Deus está a ajudar-vos!
Convosco está a verdade
A glória e a santa liberdade!”
Este foi o excerto do poema de Taras Shevchenko, poeta ucraniano, recitado pelo jovem Sergiy Nihoyon, na Praça da Liberdade, umas semanas antes de morrer. Sergiy deixou a sua cidade para se juntar ao Euromaidan (movimento de luta contra as autoridades ucranianas). A 22 de janeiro, viria a ser a primeira vítima da revolução de Kiev, que levou à queda do governo e do Presidente pró-Russo Viktor Yanukovich. Foi também este o pedaço do poema lido por Iryna Melnychuk, no dia 1 de março, no Centro Cultural e Educativo Rodyna, durante a sessão de memória pelas oitenta e oito (número à data) pessoas que perderam a vida na Ucrânia.
O Centro Educativo Rodyna, em Lisboa, recebe todos os sábados alunos do primeiro ciclo ao 11º ano. Os mais velhos estudam matemática, literatura universal, química e outras disciplinas, de acordo com os métodos de ensino ucranianos. Irina, uma mulher na casa dos cinquenta, de olhos azuis claros, é a diretora do centro. Diz que tem “dor no coração” pelo que está a acontecer na Ucrânia e apesar de garantir que não se deixa ir abaixo, não consigue conter as lágrimas. Tem o centro educativo para gerir e o dia de hoje exige de si empenho e concentração.
Numa das salas do Rodyna, vemos um retrato a óleo de Shevchenko, iluminado por uma vela; ao lado, um monte de arroz – que na tradicão ucrâniana é comido depois dos enterros. Iryna retoca a maquilhagem e dá um último jeito ao cabelo. Há que manter a aparência, apesar de ser um sábado de tristeza. “Estamos aqui para recordar as pessoas que perderam a vida em Kiev nos últimos meses”, anuncia, num tom de voz ainda marcado pelo choro. Os alunos e os professores escutam com atenção a diretora. Estão longe do seu país, a sua realidade é outra, mas não esquecem que são ucranianos.
Iryna recorda cada uma das vítimas de Maidan, olhando para uma folha de papel onde estão os nomes completos de todas elas. Passa a palavra ao professor de história. Pavlo, um homem baixo, com a face avermelhada, explica aos alunos e aos colegas como vê a revolução na Ucrânia: “O Presidente disse que sim… vamos fazer um acordo com a União Europeia. E, depois, de um momento para outro, disse que não. Quinhentas mil pessoas saíram à rua para demonstrar o seu desagrado. Foi a gota de água de um descontentamente geral”.
Pavlo continua a explicar: A Ucrânia tem um nível muito alto de corrupção, ocupando a 144ª posição no ranking da Organização Transparência Internacional do qual fazem parte 177 países; O ordenado médio anda à volta das 2 500 grívnias (250 euros), uma quantia que não permite cobrir um custo de vida cada vez mais elevado. Pavlo anda de um lado para outro na sala, nervoso, ao mesmo tempo que relata o que se passa no seu país. Está revoltado com a Berkut (que quer dizer águia em ucraniano), a polícia especial, que considera ser responsável por muitas mortes. “A Berkut devia ter protegido o nosso povo e não Yanukovitch”, diz.
A campainha toca. Todos se levantam e cantam o hino ucraniano, alguns encostam a mão ao coração, num gesto patriótico e de compaixão pelo seu povo. Antes de dar a sessão como encerrada e de a vida na escola voltar à normalidade, Iryna deixa o seu desejo: “Gostaria que a Ucrânia não se dividisse. Que fique só uma…”
No Dia da Mulher
Os meninos e as meninas brincam uns por cima dos outros no relvado do Rodyna. Já vestem peças do traje tradicional, mas ainda não estão prontos. O tempo está primaveril e hoje comemora-se o Dia da Mulher no centro educativo. As aulas dos mais velhos só terminam trinta minutos antes da festa, que está marcada para as cinco e meia. Neste sábado, o ambiente é de alegria. Vêem-se ramos de flores espalhados pelo chão, as professoras e as mães das crianças arranjaram-se especialmente para a ocasião. Na Ucrânia, o Dia da Mulher é uma celebração importante. É também a festa da primavera, que neste país começa no primeiro dia de março.
Iryna está bastante atarefada entre a organização dos horários e os últimos preparativos para a festa. Mesmo assim, recebe a VISÃO com toda a simpatia: “Vou já chamar os professores que quer entrevistar. Pode começar por a Luydmyla, mas… por favor… sente-se e beba um café”. Luydmyla tem 35 anos e três filhos. Há mais de uma década, veio para Portugal com o marido à procura de uma vida melhor. Licenciou-se em Letras, na Ucrânia, mas trabalha como empregada doméstica. Aos sábados, é professora de literatura ucraniana no Rodyna. “Não tenho vergonha do meu emprego. Faço um pouco de tudo: brinco com as crianças, cozinho muito bem, passo a ferro, lavo a roupa…Acho que sou uma boa profissional, por isso nunca me falta trabalho”, diz, orgulhosa. Luydmyla só lamenta ter investido o dinheiro ganho em Portugal numa casa em Khmelnytskiy, a sua cidade natal. “Comprámos o apartamento e agora? Não sabemos o que se vai passar. A situação está difícil por lá”. E Porquê? “Isso é melhor perguntar ao professor de história. Ele sabe tudo sobre o nosso país desde o século II”.
Chegou a hora da festa. As meninas já estão trajadas a rigor: camisa bordada com motivos florais, saia arredondada preta ou vermelha e coroa de flores. Os rapazes também estão como manda a tradição. Os balões voam baixinho e as mesas servem de apoio às guloseimas e aos salgados. A apresentar a festa está uma dupla. Ele vai pondo as músicas. Ela diz piadas ao microfone e desafia a “audiência” para as brincadeiras. Pais e filhos fazem uma grande roda onde vai circulando uma mala cheia de roupa. De repente, a música para… quem fica com a mala na mão é obrigado a vestir o que está lá dentro. “É um jogo de carnaval”, explica Olga, uma professora do primeiro ciclo.
Celebração do poeta Shevchenko
Hoje é sábado, 23 de março. Regresso ao Rodyna para participar na festa de comemoração dos 200 anos sobre o nascimento de Shevchenko, o maior poeta ucraniano de sempre. Nestas duas semanas de ausência, houve alterações significativas na Ucrânia. O desejo de Iryna, que a Ucrânia “fique só uma”, não se concretizou.
As tropas russas invadiram a Crimeia, cercando as unidades militares da região. Alguns militares renderam-se, os outros receberam ordens para abandonar o território. No domingo, 16, a península ucraniana foi a votos, num referendo considerado ilegal pela comunidade internacional. A população disse que sim à reunificação com a Rússia, sendo agora a Crimeia uma federação russa. Entretanto, em Donetsk, manifestações a favor da anexação à Rússia acontecem todos os dias, à volta da estátua de Lenine. Os manifestantes acusam o governo “fascista” de Kiev de os querer matar. Também neste espaço de tempo, a Ucrânia assinou as bases de um acordo de parceria com a União Europeia, o mesmo que desencadeou a revolução Maidan, quando Yanukovich voltou atrás com a sua palavra e recusou assiná-lo. O novo acordo trará ao país cerca de quinhentos milhões de euros através da abolição das taxas aduaneiras da União Europeia, em sectores como o alimentar e o têxtil.
Os alunos, do 7º ano em diante, estão sentados numa disposição de mesas em forma de U. “Como se chama a maior obra de Shevchenko?”, questiona Iana, professora de literatura ucraniana. “Kobzar”, diz um rapaz, primeiro do que os outros. Já ganhou mais um ponto neste concurso sobre a obra e a vida do poeta. “Em que poema Schevchenko satiriza o czar Nicolau I e a sua esposa, a rainha Alexandra?”, é a vez de Luydymila perguntar. “Sonho” (“Son” em ucraniano), replica rapidamente uma rapariga.
Iryna considera a poesia de Shevchenko muito atual, apesar de ter sido escrita há dois séculos. “Um dos dois grandes desejos dele era ver a Ucrânia livre e independente”, recorda aos alunos. Não é à toa que o poeta foi tão evocado em Maidan. Estará o desejo de Shevchenko prestes a cair por terra?