Do nada, num aterro de terra castanha misturada com argilas esverdeadas, emerge um crânio.
Os especialistas da empresa Empatia-Arqueologia já iam na 5.ª sondagem, das oito que tinham para fazer, quando, por fim, surgiu um achado com um fio condutor.
O crânio não estava in sittu, mas, apesar de “descontextualizado”, reforça indicações anteriores sobre a existência de um cemitério algures no palácio da Boa Hora, lê-se no relatório preliminar, datado de julho último, daquela equipa de arqueólogos.
A partir da 5.ª sondagem, os trabalhos de escavação, à força de enxadas, pás, picos (picaretas mais pequenas), colherins e vassouras, chegariam a outras descobertas com elevado potencial arqueológico, como se verifica pela análise daquele documento, já disponível, para consulta pública, na Direção-Geral do Património Cultural (DGPC).
Surpresa absoluta revelar-se-ia o aparecimento, na penúltima sondagem, a 7.ª, de um conjunto de recipientes, de cerâmica e de vidro, disciplinadamente alinhados, e que, pelas particularidades das formas, seriam utilizados em “laboratórios, farmácias ou hospitais”, escreve a equipa que, entre 17 de junho e 3 de julho passados, procedeu, na Boa Hora, a pesquisas arqueológicas de diagnóstico. Os objetos estavam in sittu, e as peças de vidro foram exumadas, “contendo algumas delas possíveis vísceras ou órgãos humanos”. Em trabalhos de arqueologia, dizem especialistas, uma descoberta destas “não é normal” ocorrer de todo.
Muito por escrutinar
Como manda a lei, as sondagens preventivas feitas pela equipa da Empatia-Arqueologia, abrangendo apenas 32 m2, incidiram sobre os poços geológicos a serem abertos nos locais onde haverá uma intervenção mais intensa no projeto de instalação de uma escola básica e de um jardim de infância, prevista para 2015 e promovida pela Câmara de Lisboa (CML), que reparte agora a propriedade do palácio da Boa Hora com o Ministério da Justiça. O problema é que os achados que vieram à superfície nas escavações de diagnóstico implicam, quase incontornavelmente, trabalhos em maior profundidade.
Desde a sua fundação, em 1633, até ao terramoto de 1755, passaram pelo convento da Boa Hora três congregações religiosas. E os achados mais importantes surgiram todos no 2.° dos três pisos do palácio, com uma lógica aparente. Na 6.ª sondagem, apareceu um muro muito profundo que, de acordo com especialistas consultados pela VISÃO, apresenta “uma orientação diferente da estrutura atual”, sugerindo um “urbanismo antigo”, anterior ao megassismo que devastou o convento, obrigando a uma prolongada reconstrução.
E se, num imaginário fio de prumo, com ponto de partida naquelas descobertas, se descer a direito até ao labirinto de túneis subterrâneos do palácio, chegamos aos relatos de dois antigos secretários do Tribunal da Boa Hora, que revelaram tê-los percorrido, encontrando vestígios de um hospital ancestral, exatamente ali. Por coincidência (ou não…), surge agora o achado dos recipientes com “possíveis vísceras ou órgãos humanos”, que uma antropóloga está a examinar.
No relatório preliminar, lê-se que “a sua deposição, com as peças alinhadas e não partidas, evidencia uma clara intencionalidade e não o intuito de destruir”. Após a entrega do relatório final, a DGPC dirá, em letra de lei, se haverá alargamento das escavações. O que pode implicar profundas reformulações dos projetos da CML e do Ministério da Justiça (instalação, na Boa Hora, do Centro de Estudos Judiciários). Mas mais altos valores civilizacionais se levantam.
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