Não me peçam para falar de números, datas. Vivo com eles, mas não sei dar-lhes forma, confundo-os e, frequentemente, esqueço-os. Apesar disso, gosto de falar do abstrato, do que não se vê. Herdei isso da minha carreira na bioquímica. E ainda hoje me acontece: “vejo” uma coleção antes mesmo de existir.
Quando era criança, desenvolvia as minhas fantasias, os meus mundos. Adorava sentir o cheiro dos lápis de cera, encher de cor uma folha branca, tudo o que tivesse a ver com criação. Ultrapassava o simples gosto. Era uma necessidade de expressão, a minha forma de ver o mundo, talvez por não compreender muito bem o que se passava à minha volta. Tinha terrores noturnos quando me questionava incessantemente sobre os porquês. Mas ninguém me explicava nada. Era um silêncio geral. Até que, aos 15 anos, floresceu a Revolução de Abril e deu-se a explosão do meu ser e do mundo à volta.
Nada foi mais revelador do que as minhas aulas de biologia do 5.º ano (hoje o 9.º), meses depois do despertar da liberdade. Era lecionada por uma investigadora da Gulbenkian que passara longas temporadas nos EUA. A clareza das teorias de Darwin, o modo elucidativo como era dada a matéria – com a ajuda de slides, projetores, toda uma panóplia de ferramentas inovadoras para a altura. Até os livros eram diferentes! Para mim, foi um choque, que me levou a optar pela biologia como carreira.
E iluminou-me como pessoa.
A outra margem
No meu 4.º ano de licenciatura, na Faculdade de Ciências de Lisboa, surgiu a hipótese de lecionar a disciplina de Biologia a alunos do 12.º ano. Agarrei-a de imediato e, sem saber, estava a cumprir o meu destino. Hoje, acredito profundamente na reincarnação, no karma e sei que ensinar foi um salto na evolução da minha alma – aprendi a partilhar, a deixar para trás o ser solitário que era na outra vida.
Um dos casos que mais me permitiu evoluir foi o da Alice. Vestida de nazi dos pés à cabeça, de cabelo rapado, logo na primeira aula, deu-me um empurrão, quando eu entrava na sala. Atirou-se para o chão e esperou pela minha reação.
O meu nervosismo duplicou, mas controlei-me e não dei-lhe atenção. Ao longo desse ano estive sempre ao seu lado e amadureceu imenso. No fundo, a nossa amizade foi importante para ambas e foi uma pena perder-lhe o rasto.
O adeus, sem mais nem menos
Aos olhos da sociedade, eu era a formatação do sucesso. Trinta anos, casada, dois filhos, entretanto doutorada em Bioquímica e docente na Faculdade de Ciências da Lisboa. Mas essa realidade não se me entranhou na derme – a ideia de sair ganhava mais sentido. Foi uma decisão dardo, isto é, calhou bem no centro do alvo. Fechei essa porta académica e nunca voltei atrás. Semanas depois, já tinha novo caminho traçado: a decoração.
Nessas andanças passei cerca de 14 anos, dividindo-me entre a minha loja de decoração, a Coisas da Terra, com a Rosarinho Gabriel e a Vista Alegre. Trabalhava imenso, mas foram oportunidades fantásticas pois, como era responsável pela minha loja e pelas montras, eventos e stands da Vista Alegre, viajava imenso pelo mundo a ver feiras de decoração. Mas, a certa altura, comecei a sentir que via sempre o mesmo… Foi assim que, numa viagem repentina à Índia, decidi passar a criar a minha coleção de decoração, com uma visão própria. E nasceu, há sete anos, a TM Collection.
Ao criar o meu espaço, desenvolvi algo com que sempre sonhei: peças com o meu cunho, que fossem uma expressão do belo e ao mesmo tempo agradassem ao público em geral. Fi-lo porque a sociedade de massas onde vivemos não se preocupa com o que é único, mas sim com o formatado. Tenho uma cliente de Sevilha que vem todos os anos de autocarro ao meu armazém. Diz que é só para “se inspirar”, parece-lhe um dia de férias.
É isso que procuro transmitir, sensibilidade e paz.
Dedicava-me só à decoração, mas a certa altura queria também adornar o corpo com o belo, embora não saiba coser, confesso. Há dois anos transportei as linhas suaves da decoração para a roupa. Estreei-me na ModaLisboa. Nunca imaginei que estaria um dia no meio deste espetáculo da moda. Não se enquadra na minha personalidade. Mas tinha um sonho de criança que dentro em pouco tempo realizarei: embora a TM Collection ainda tenha muito para mostrar, farei os figurinos do próximo bailado do Benvindo Fonseca, para a Gulbenkian. Será como o fechar do ciclo da infância.
Depoimento recolhido por Bárbara França Silva