Porque resolveu criar a Fundação?
Para ajudar as crianças. Gostava que algumas pudessem, um dia, passar pela experiência por que eu passei, sentir o carinho que os portugueses me dão.
Que lição costuma passar aos miúdos?
Que não basta o talento. É preciso capacidade aqui [Francis aponta o indicador à cabeça] para ultrapassar os maus momentos. Estes jovens precisam do exemplo de alguém que nunca tenha desistido. Há muitos miúdos pelo País fora com talento, mas que quando estão em baixo não conseguem levantar-se. É nessas alturas que se percebe se temos ou não o que é preciso para sermos campeões. Eu falo-lhes da minha história, das dificuldades porque passei na vida. Na Nigéria, não contava com o apoio que encontrei aqui. Os meus pais não tinham dinheiro. Tinha de ser eu a fazer tudo sozinho, sem ajuda. E comer uma vez por dia e treinar duas não é fácil…
É isso que faz a diferença entre um grande atleta e um atleta mediano?
Acho que sim. Em todos os desportos de alto nível. Conseguir passar os momentos difíceis. Treinar hoje a tentar fazer melhor do que ontem.
Há alguma coisa que lhes diga para evitarem? Para terem cuidado?
Digo-lhes para não fumarem, não sairem demais e pensarem sempre primeiro na escola, nos estudos. Resistir aos maus exemplos. Mas o maior problema não vem dos jovens, vem da família. O importante é termos uma boa vida familiar. Se o ambiente em casa é feito de discussões entre pai e mãe, o filho acaba por ficar perdido.
O que espera dos miúdos que a Fundação apoia?
Não estou à espera de grandes feitos. Espero que estejam contentes com o que fazem. Importante é viverem um momento bom na sua vida. Se chegarem a um alto nível, óptimo. Se não chegarem, não há problema.
O que têm eles em comum uns com os outros? O que faz deles especiais?
Estão psicologicamente muito bem preparados. Isso é que é importante. É o que têm de mais forte. Menos o Cristiano [futebolista], que precisa de mais apoio.
E é isso que também têm em comum consigo? A força psicológica?
Bem, no meu caso é diferente. Em África passa-se fome. É uma vida difícil, muito diferente daqui, que nos prepara para muita coisa. Quem aqui acha que vive com problemas, que vá a África ver o que é viver com dificuldades. Eu e os meus irmãos passámos muitas, muitas dificuldades. Às vezes passávamos o dia inteiro sem comer. Mas mesmo assim andávamos contentes. A minha mãe dizia sempre que amanhã era outro dia. Essa mensagem é importante: amanhã tudo pode melhorar.
Quando nasceu a ideia de criar esta Fundação?
Já a tinha há muito tempo. A minha mãe gosta muito de crianças e passou-me essa paixão. Sempre me disse que se ganhasse muito dinheiro tinha de ajudar muitas crianças. Para que serve o dinheiro? Quem tem muito tem de ajudar.
Quais são as metas da fundação?
Não estou preocupado em formar um campeão para Portugal. Estou preocupado em puxar pelas suas capacidades de viver. Cada jovem pensa está a fazer o melhor para chegar ao alto nível.
Então o principal objectivo não é formar campeões?
Se formar um campeão, é bom. Mas não, não é esse o objectivo. Fico contente se lhes der experiência.
Qual é o seu papel na Fundação?
Por agora, ainda não tenho muito tempo para me dedicar a 100%. Estou a terminar a carreira… Mas falo muito com os jovens do Algarve…
A Carla [meio-fundista algarvia, apoiada pela Fundação] disse que o Francis a está a tentar convencer a ir para as provas de velocidade, mas ela não está convencida…
[Risos.] Pois não…
Por que razão decidiu continuar a carreira mais um ano?
Tenho contrato com o Sporting e os treinos têm corrido bem. E como sou Campeão da Europa… Não quer dizer que vá defender o título [no próximo ano, em Barcelona]. Não é esse o meu obejctivo. O meu objectivo é desfrutar. E como ainda tenho contrato com a Nike, que me quer continuar a apoiar… De qualquer maneira, vou tentar outra vez, mas não garanto nada. [Risos.] Vou lá, a Barcelona, defender a nossa bandeira. Correr com a camisola de portugal é a coisa mais linda. Acho que é algo que vai estar sempre dentor de mim.
Onde tem guardada a medalha?
. [Risos.] Não quero dizer. Ainda me assaltam a casa.
Essa medalha é a melhor recordação da sua carreira?
Sim. Os Jogos Olímpicos… Foi uma coisa excelente. Para qualquer atleta, sóchegar à final já era uma coisa fantastica. Ter sido Campeão da Europa… E ser o primeiro a ganhar os 100 e 200 metros… E ainda ter sido o atleta europeu do ano. [Francis suspira a sorrir.]
Sentiu que o carinho dos portugueses por si aumentou com essa medalha ou foi o mesmo de sempre?
Foi sempre o mesmo. A primeira vez que representei Portugal, em 2002, fui Campeão da Europa, em Munique. Depois disso, foi uma coisa… Quando cheguei a Portugal, parecia um futebolista. Cheguei ao aeroporto e fiquei… [Abre muito os olhos.] Mas eu sou só faço atletismo! Tanta gente na rua… Espectacular. Não acreditei que aquilo estivesse a acontecer. Até chorei. O carinho das pessoas foi demais… Ainda tenho a imagem das crianças a gritar ‘Obikwelu, Obikwelu’.
Está a querer devolver um pouco da alegria que o País lhe deu?
Sim, os portugueses merecem. Quero que muitas crianças passem pela minha experiência.
Onde passou as férias?
Bem, estive uma semana na Inglaterra, mas aquilo não são férias… Está sempre a chover! Foi um passeio. Algarve [Obikwelu mora em Albufeira] significa sempre férias, para mim. Passear na praia, piscina… Penso ir agora à Nigéria ou a São Tomé, antes de começar a época.
De que sente mais falta, quando está fora de Portugal?
Da comida, do clima, das pessoas… Portugal é fantástico. Não conseguiria viver noutro sítio… Quero criar a minha família aqui. Talvez quando for muito velho volte para a Nigéria.
Já começou a constituir família?
Ainda não.
Mas quer…
Sim, está na altura. [Risos.] Tenho 30 anos… Estou até com muita vontade de adoptar uma criança, mas depois penso…. Hum… É melhor arranjar uma mulher primeiro…
Como é o seu dia-a-dia?
Levanto-me às 7 da manhã, tomo o pequeno-almoço, treino até às duas da tarde, durmo uma sesta e, depois, vou jogar golfe. Também tenho tido aulas de natação.
Tem jeito para o golfe?
Sim, mas não todos os dias. Ainda no outro dia fiz um swing espectacular, fiquei a olhar para cima e não via a bola. Pensei: bolas, foi mesmo longe. Depois olhei para baixo e a bola ainda lá estava. [Francis solta uma grande gargalhada.] Mas começo a melhorar.
Quais são as suas maiores qualidades?
Sou uma pessoa muito calma, gosto de fazer as pessoas ao meu lado felizes. E não gosto de mentir. Fico nervoso quando minto.
Qual foi a última vez que esteve com os seus pais? Tem ido à Nigéria
Vou lá todos os anos ver a minha família. Passo lá o Natal. Os meus pais também estiveram aqui em 2004. Mas a minha mãe…. Aqui está frio para ela. É africana…
Como investe o seu dinheiro?
Comprei umas casas e alugo-as. Vai correndo bem. Não como devia, por causa da crise, mas o importante é a saúde [risos].
Que recordações tem da sua infância?
Pffuuu… De muitas dificuldades. Tivemos muitos problemas. O meu pai não conseguia dinheiro para estudarrmos.
Passou fome?
Sim, claro que passei fome. Ate chorávamos de fome. A minha mãe chorava também. Mas ela… a minha mãe e uma mulher de muita força. Não sei onde a vai buscar. E transmitiu essa energia para os filhos. Aprendemos muita coisa com ela. Sempre disse para não desistirmos. ‘Hoje não temos comida, mas vamos tentar e amanhã talvez já dê para comer’, dizia-nos ela. Mas mesmo assim tínhamos alegria. Aqui, as pessoas não têm alegria sem razão. Lá em África, podemos não ter nada e continuar a ter alegria. Hoje não dá, mas amanhã pode dar…
Acha que as pessoas aqui nunca estão satisfeitas?
Exacto. Tenho amigos com dinheiro que não são felizes. Nucna estão contentes. E eu pergunto-lhes porquê, se têm tudo. E digo-lhes para apanharem um avião e passarem um mês em África. Quando voltarem, vão dar graças a Deus.
As dificuldades porque passou tornaram-no mais preparado?
Eu sabia que a minha vida ia mudar. Tinha essa convicção. [Obikwelu fecha os punhos.] A minha mãe dizia que a vida muda sempre. Não podemos é desistir. Se queremos uma coisa temos de trabalhar para isso. Se o que queremos custa 12 euros e so temos 50 cêntimos, então temos de continuar a trabalhar.
Tem falado com os seus amigos Sylvester e Wilson? [Os dois colegas da selecção nigeirana que, aos 16 anos, acompanharam Francis na fuga da comitiva, em Lisboa.]
Sim. Com o Wilson falo muito, na net. Está em Portland, Oregon, nos EUA. Uma vez fui lá. O gajo já não parece um atleta. Está com um barriga grande, grande! Gordo. [Faz o gesto abaulado em frente à sua própria barriga.] Ele agora é treinador.
E com o Sylvester?
Ainda ontem falei com ele. Está mais ou menos.
Ainda está preso? [Sylvester foi condenado por tráfico de droga.]
Não, já saiu, há dois ou três meses. [O atleta expira com força, num suspiro longo.] O momento e difícil. Tem de recomeçar a vida…
Vai ajudá-lo?
Não gosto de dizer o que faço pelos outros. Guardo para mim.
Tem saudades de alguma coisa da Nigéria?
Sim. Do Natal. Lá é diferente. Cá fecha-se a porta e não se fala com o vizinho. Lá a porta está sempre aberta. Se alguém vem com fome, come. Passo sempre o Natal lá. Cá só passei uma vez. Fiz imensa comida e ninguém veio. Deixei a porta aberta e ninguém entrou.
Estava sozinho?
Sim. Foi em 1998. Foi o pior momento da minha vida. Ninguém veio comer a comida que fiz. Natal cá nunca mais. [Risos.]
O que acha que estaria hoje a fazer se tivesse ficado na Nigéria?
Não sei. Temos só uma oportunidade na vida. Talvez estivesse a vender pão na rua, a correr ao lado dos carros… Na vida temos de arriscar. Vida é risco.
Que planos tem para o futuro?
Quero ajudar a Fundação a crescer, claro. Se amanhã ganhar o euromilhões, a minha vida passa a ser assim: fico em casa, jogo golfe, levo as crianças a viajar, pago-lhes os estudos, apoio mais jovens; senão… paciência, tenho de continuar a trabalhar para arranjar dinheiro.
Conhece o Usain Bolt? [Recordista mundial dos 100 e 200 metros.]
Sim, é um grande amigo meu. Ainda esta semana estive com ele em Inglaterra.
Como é que ele é?
Um tipo impecável. No outro dia, ele dizia-me: ‘Francis, desfruta a vida.’ Ele é mesmo assim. Não quero saber de recordes do mundo. Quer é desfrutar a vida. É uma pessoa simples.
Não é obcecado com recordes e competição, então?
Não! Ele diz que se correr e ganhar, óptimo; se não, paciência, é a mesma coisa. Mas o gajo é uma festa… Fomos a discoteca em lLndres e ele gastou 20 mil libras. Em champanhe.
Como se explica a diferença com que ele ganha?
É normal. Ele é enorme, tem quase 2 metros. E a técnica… Não há hipotese. Quem tem essa altura tem mais vantagem do que os outros.
O Francis e o Usain Bolt são das poucas excepções na altura. A ideia no atletismo era de que os mais baixos tinham vantagem.
Sim. É verdade. Neste momento, quanto menos passos, melhor. Antigamente, os treiandores pensavam que uma frequência grande é que era boa. Agora é diferente.
Vocês tem uma forma de correr muito semelhante…
Bem, ele é muito forte. Mas o estilo sim… Parece que não estamos a correr rápido. Temos esse estilo de antílope, mais elegante, não o estilo agressivo do Tyson Gay e do Maurice Green.