Teresa Sousa Mendes tem passado os últimos 20 anos a contrariar os compêndios.
Neles lia que a filha não ia andar aos 12 meses, falar aos 2 anos, ler até aos oito. Muito menos aprender a usar o multibanco, divertir-se em saídas à noite com amigos ou ter uma página no Hi5 e um namorado com quem já passa fins-de-semana em família.
No saco que pousou aos pés da mesinha do Café-Teatro da Comuna, em Lisboa, está o figurino usado por Carolina na peça Perguntas de um Mendigo que Lê, de Brecht, o mesmo que ela vestiu para aparecer nesta revista, ao lado do também actor António Coutinho. Daqui a pouco hão-de ir as duas para casa, depois de um dia na Crinabel a filha e num gabinete de Recursos Humanos a mãe.
Foi um dia passado a trabalhar, diz Carolina, apesar de não receber salário naquela instituição de ensino especial e de solidariedade social. “O teatro era o meu sonho, agora é a minha profissão”, ouvimo-la e acreditamos.
Depois de ter entrado em várias peças com o grupo da Crinabel, e de ter saído dos seus muros para fazer parte de um musical e de uma novela, aos 24 anos Carolina vê-se como uma actriz a tempo inteiro. Até nas dificuldades que prevê para o futuro. “Gostava de um dia poder viver sozinha com o João Pedro, o meu namorado. O único problema é o money, money, money”, ri-se, esfregando os dedos.
Teresa há-de sorrir quando lhe contarmos esta parte da conversa com a filha.
Ela própria ainda não tinha 30 anos quando casou e decidiu ser mãe. “A Carol continua uma sonhadora, como é típico nas pessoas como ela.” Aos 53 anos, sabe que a sua única filha não está preparada para deixar o ninho. “A sua autonomia é relativa.”
DE UTOPIA EM UTOPIA
Carolina pode ser igual às outras raparigas da sua idade nos desejos de emancipação, mas a trissomia 21 corta-lhe um bom bocado as asas. Mesmo que os voos, baixinhos, sejam altos quando comparados com os previstos num passado não muito distante.
“Há dez anos, este artigo não era possível”, nota Miguel Palha, 51 anos, pediatra do Desenvolvimento.
“Agora, além de falarmos em pessoas com trissomia 21 empregadas, falamos no desempenho de um papel social relevante.” Antes de explicar esse conceito, deixe-se claro que Miguel Palha não surge aqui de forma aleatória. O médico é director clínico do centro de desenvolvimento infantil Diferenças, em Lisboa, e fundador da APPT21 (Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21), que criou depois de ser pai de uma criança com trissomia. Hoje, a sua filha tem quase 23 anos e ajuda-o a dirigir a associação.
“A sociedade vive da diversidade”, lembra ele.
Num pequeno gabinete, forrado com cartazes e uma colecção de objectos antigos relacionados com a pediatria, o médico fala de utopias quando fala de trissomia 21. Mas são utopias que se realizam. A anterior, entretanto, já interiorizada pela sociedade, era a inclusão educativa ou seja, a integração de crianças com défice cognitivo no ensino regular. A actual é terem um papel social relevante, que passa por essas pessoas não serem umas “coitadinhas “, contratadas pelas empresas por mero favor.
“Elas têm de ser uma mais-valia”, diz Patrícia de Sousa, 36 anos, psicóloga de Desenvolvimento Infantil.
A PROVA DOS NOVE
Três dias antes e 300 quilómetros a sul, o director do hipermercado Jumbo do Fórum de Faro, Rui Teixeira, de 38 anos, falara nas vantagens de ter como funcionário José Gabriel Vieira. “É uma alegria no trabalho, nunca o vi maldisposto. E nunca falta.” Por causa da trissomia 21, Zé Gabriel apenas precisa de mais tempo para aprender novas rotinas.
“De resto”, garante a sua chefe na padaria, Maria José Guerreiro, 32 anos, “é igual aos outros. Melhor: é mais alegre. E como é todo sorrisos, torna-se fácil de lidar.” Para a sua chefe, José Gabriel foi um abrir de olhos para a deficiência. É ela quem conta com orgulho como ele vem sozinho de Loulé, de autocarro, e que a primeira coisa que faz é cumprimentar os colegas com beijinhos. Logo depois, agarra-se às suas tarefas com zelo, sem tempo para conversas.
“A Maria quer pão!”, desculpa-se, ao fim de uns minutos, correndo a preparar mais um tabuleiro.
O dia seguinte é a sua folga, dia de treinos na piscina. À frente dos bolos-rei e da música dos D’Zert e das Just Girls, duas bandas nascidas na série juvenil Morangos com Açúcar, está a natação. É atleta paralímpico e já ganhou várias medalhas em nome de Portugal. “Sou bom na mariposa”, diz, sem falsas modéstias.
Aos 25 anos, José Gabriel Vieira gosta de sair de casa todas as manhãs para o trabalho.
E a ideia nem foi dele. Foi dos responsáveis da (AAPACDM) Associação Algarvia de Pais e Amigos de Crianças Diminuídas Mentais que, volta e meia, contactam com empresas à procura de emprego para os seus “meninos” o grupo Auchan é um dos mais receptivos; afinal, tem nos seus quadros mais de uma centena de portadores de deficiência.
A dificuldade em encontrar saídas profissionais é uma realidade também para as pessoas com trissomia 21. Aí, não são diferentes dos demais candidatos a empregados, nota Patrícia de Sousa. Depois de anos a ajudar jovens deficientes a tornarem-se autónomos, a psicóloga mexe-se o mais que pode para eles passarem a prova dos nove.
“É também um desafio para a entidade que os vai receber.”
SONHO DE CRESCIDO
Patrícia de Sousa refere com frequência o seu caso de sucesso mais paradigmático o de Henri Turquin, hoje com 18 anos, que trabalha num centro hípico de Caxias, concelho de Oeiras. A recuperar de uma leucemia (daí não aparecer neste artigo), Henri passou horas e horas a praticar a autonomia.
Com Patrícia, aprendeu a fazer contas no bar da escola, a ir aos correios e à mercearia do bairro da Lapa, onde mora com os pais e os dois irmãos, a andar de autocarro e comboio sozinho, a usar o telemóvel e o multibanco, a fazer tarefas domésticas.
“A partir do 7.° ano, as crianças com trissomia 21 devem ter currículos funcionais, não conteúdos muito abstractos e trabalho de gabinete”, defende a psicóloga. “Temos de ir para a rua com eles e, depois, passar essas experiências para o trabalho.” A mesma atitude pragmática teve Teresa Sousa Mendes, que optou por colocar Carolina num colégio privado regular até aos 17 anos, só com ensino básico. “Na adolescência, os miúdos olham muito para a própria sombra. Aquela escola fez muito bem à auto-estima da Carol, ali ela era feliz.” O mesmo fizeram os pais de António Coutinho, que o mantiveram sempre em colégios do ensino regular, sem dele esperarem grandes rasgos intelectuais. A morar com os tios desde que a mãe adoeceu gravemente, Tó é, aos 43 anos, um homem seguro das suas capacidades.
“No teatro trabalho muito”, diz, já desfardado e calçado. “No grupo sinto-me especial porque ajudo os monitores a tomar conta dos actores mais novos.” António é mais sério do que a colega Carolina.
Não navega na Internet nem sai muito à noite. Tem uma namorada, a Tuxa, que conheceu no Crinabel Teatro, mas não pensa viver com ela no futuro próximo. Enquanto a amiga sabe confeccionar sopas, carne assada e bolos, ele admite fazer um dia o papel de mordomo mas só no palco, goza. O humor é a sua melhor arma. Um sonho recente? Entrar num musical, se possível com Rita Pereira.
MUDAR MENTALIDADES
Os sonhos de Ana Maria Brás são mais comezinhos.
Gostava de poder dormir mais vezes no complexo residencial da Quinta Essência, uma instituição privada para pessoas com atraso de desenvolvimento intelectual, na Abrunheira, Sintra. Aos 19 anos, o que pode ser mais divertido do que as pijamas parties com os amigos que têm a sorte de lá morar? Ana Maria vive com a mãe e o irmão, em Alfaquiques, São João das Lampas, uma zona rural do concelho de Sintra. Todas as manhãs, é a mãe, empregada de limpeza numa escola, que a leva de autocarro até à Quinta Essência, onde ela recebe formação profissional na área da restauração. Ao fim de três anos, já está na fase final da aprendizagem e passa um dia por semana num restaurante.
O próximo passo será ter um emprego a sério.
“O que eu quero mesmo é estar numa cozinha”, diz. “Só acho difícil cortar manga.” Na Quinta Essência, desenvolve-se a autonomia dos deficientes actualmente, são 31, oito deles com trissomia 21 com o objectivo de integrá-los na sociedade. “E isso passa por terem um trabalho”, nota Babuxa Simões de Almeida, 57 anos, uma “faz-tudo” por ali, desde as Relações Públicas até à imprescindível angariação de patrocinadores, na verdade uma espécie de padrinhos que asseguram o percurso de vida de 17 dos jovens.
A funcionar há pouco mais de três anos, a Quinta Essência foi pensada para receber apenas pagantes, mas a procura levou os seus accionistas a optar pela criação de bolsas sociais (os tais apadrinhamentos), atingindo, assim, uma maior heterogeneidade de classes sociais. Faz sentido. Afinal, a deficiência não discrimina origens.
Em Portugal, há 12 mil a 15 mil pessoas com trissomia 21, estimando-se que nasçam entre 140 e 180 novos portadores por ano. Números suficientes para se apostar na mudança de mentalidade de quem emprega, defende Miguel Palha, que envia um recado a quem nos governa: “Os empregadores devem ter consciência social, mas convém dar-lhes mais incentivos.” Para que valha a pena continuar a contrariar os compêndios.
António Coutinho, 43 anos, Carolina Sousa Mendes, 24 anos
Tó é comedido nas palavras e cândido nas respostas. “O que faço como responsável do Grupo Crinabel Teatro? Apago a luz e fecho a porta”, diz o actor, seriíssimo.Ouvem-se gargalhadas, é Carol, que acha graça a quase tudo o que diz o seu ídolo, o culpado de um dia ter apostado na carreira de actriz. “O meu sonho”, diz ela, “é termos um espaço só nosso, porque a sala onde estamos não dá para nada.” Se António é uma celebridade entre os actores com trissomia 21, por causa da série Médico de Família, Carolina não lhe fica muito atrás: entra na novela Feitiço de Amor e fez parte da peça Cabeças no Ar. Mais dois sonhos dela? Fazer televisão com o Tó e viver com o namorado.
José Gabriel Vieira 25 anos
Há seis anos que a padaria do hipermercado Jumbo de Faro não tem segredos para o Zé. Nem tempos mortos. “Os pães, os bolos, isto é tudo meu!”, diz, a rir, enquanto alinha papo-secos congelados em tabuleiros de ir ao forno. Uma breve interrupção, a pedido do fotógrafo, e logo recomeça a tarefa, rápido mas cuidadoso. Mais conhecido mediaticamente pelas medalhas que ganhou na natação, aqui Zé Gabriel é um funcionário que cumpre horários e ordens, como os outros. Diferente, nele, só o bom-humor contagiante, notam os colegas. E se desaparece uns minutos, já sabem: deve estar escondido numa das câmaras frigoríficas, a comer pastéis de nata miniatura.Ana Maria Brás 19 anos
“É o meu chou-chou”, diz Maria João, a cozinheira, num abraço apertado. Embora Ana Maria tenha recebido formação que a habilita apenas para tarefas simples como separar talheres, aqui deixam-na preparar legumes e mesmo fazer salame de chocolate, o seu doce preferido. Ser diferente “dá mais trabalho”, diz, com um sorriso envergonhado. Mas sente-se compreendida, na Quinta Essência, instituição privada para pessoas com atrasos de desenvolvimento intelectual onde segue um currículo profissional e encontrou amigos iguais a ela.
Trissomia 21: O que é?
Já se chamou mongolismo, por causa do aspecto exterior dos seus portadores, e síndrome de Down, apelido do médico inglês que descreveu, pela primeira vez, este défice cognitivo. Hoje, sabe-se que resulta da presença de um cromossoma 21 supranumerário (três em vez de dois), daí a designação trissomia 21.
As pessoas com trissomia 21 têm baixa estatura, cabeça pequena, pescoço curto e largo, olhos rasgados, orelhas pequenas e de implantação baixa, língua grande e cavidade oral pequena, além de mãos e pés quadrados e pequenos.
A esperança média de vida de uma criança de um ano é de 43 anos (défice cognitivo grave) e de 55 anos (défice cognitivo ligeiro a moderado). Cerca de 40% a 50% apresentam uma doença cardíaca estrutural, cuja gravidade é variável.