A crónica é um género vulnerável, de inseguro governo. O cronista move-se entre mundos dispersos e irresolúveis, o do tempo que passa e o do tempo que permanece e, espécie de melancólico Juno bifronte, fala num presente dilacerado, metade passado e metade futuro, metade significado e metade signo.
Filha de Cronos, de quem se diz que devora a própria descendência, a crónica é serva do jornalismo e desprende-se dificilmente da notícia. Aomesmo tempo, porém, no seu inconstante coração pulsa a nostalgia da literatura e da confessionalidade.
Por isso a crónica está condenada à infidelidade e à duplicidade. Para ficar de bem consigo mesma, há-de ficar de mal tanto com o jornalismo como com a literatura. O jornalismo nunca lhe perdoará a sua vocação paraa digressão e para o excesso, e a literatura a sua torturada ligação aos factos e acontecimentos.Quem se surpreenderá, pois, que a crónica, como género, tenha má-consciência de si? E que, perseguida por persistentes fantasmas, se refugie na ironia ou, vencida, tantas vezes se renda, seja à literatura seja ao jornalismo?
No anterior Portofolio dava-se conta, a partir de um acontecimento concreto (um filme de Manoel de Oliveira e uma jovem jornalista que não o viu), de algum do jornalismo maioritário que hoje por aí se faz, à volta de ministros e “figuras públicas”. (Sei de um crítico literário a quem um jornal pôs como condição escrever apenas sobre livros cujos autores fossem “gente conhecida”…) Aconteceu porém que, tendo-se abandonado à ficção irónica, não foi a crónica, pobre dela, capaz de resistir à tentação dos factos, e fez do que poderia ter eventualmente sido matéria de notícia (a factualíssima Agência Lusa), controversa matéria de uma coisa outra, mais do que jornalismo e menos do que ficção. Protestou a Agência Lusa quenão era verdade. E não era. Ou melhor (e é esta a moralidade da histó-ria): era e não era.
Chegada aqui, a crónica detém-se. Começou a escrever-se complacentemente, olhando-se no espelho das suas próprias incertezas e perplexidades, mas é tempo de ir ao que hoje a traz: uma notícia de jornal (os factos, sempre os factos!). Escreve o Público que os velhos estão revoltados com o que a Porto 2001 fez do “seu” Jardim da Cordoaria. Tiraram-lhes as mesas onde jogavam à sueca; e os bancos de madeira onde, aos fins de tarde, preguiçavam derramadamente ao sol foram substituídos por blocos de granito sem costas! O oitocentista Jardim da Cordoaria foi terraplenado, limpo de sebes, desvios, recantos secretos. Deixou de ser um sítio e tornou-se num local de passagem.
A crónica não imagina o Jardim da Cordoaria sem velhos. Mas a crónica tem decerto pouca imaginação, pois que os arquitectos e urbanistas da Porto 2001 imaginaram-no assim, lavado e estéril como um hospital, aberto, dizem eles, à cidade, e fechado à lentidão e à intimidade.Quem poderá (lá vem, hesitante, a literatura) abraçar a amada num friobanco de granito “aberto à cidade”?
Ocorre à crónica um longínquo poema de Manuel da Fonseca. Os que mataram o Jardim da Cordoaria, suspeita, foram os mesmos que mataram a Tuna do Zé Jacinto que, todos os domingos, “tangendo violas e bandolins,/ tocava a marcha Almadanim”: o desamor e a desmemória.