Cerca de 25 minutos de embate dos mais esclarecedores, porque não houve nem murros na mesa nem vozearia sobreposta, foram o suficiente para perceber que se, em 2019, a Iniciativa Liberal protestou quando teve de se sentar no lado oposto ao BE no hemiciclo – porque achava que deveria estar ao centro -, esta quinta-feira os serviços parlamentares estão de parabéns, porque acertaram: Catarina Martins e João Cotrim Figueiredo estão em polos completamente opostos sobre qual deve ser o papel do Estado nos setores considerados essenciais – máquina fiscal, saúde e educação.
Catarina Martins acusou Cotrim de querer com a proposta de “flat tax” – de um IRS igual para todos os contribuintes – beneficiar ricos e fragilizar ainda mais os que menos ganham; aproveitou depois a pandemia para lembrar que não só o líder liberal votou contra “quase todas as medidas sanitárias” nos picos da Covid-19, como ainda “fez um arraial contra a necessidade” das mesmas; e também apontou ao opositor a intenção de fragilizar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) com um “negócio privado da doença”.
Já João Cotrim de Figueiredo, que teve de dar o braço a torcer numa única vez – quando admitiu que chega aos debates sem um programa eleitoral para ser analisado [“Tem toda a razão, apresentamos no sábado, atrasámo-nos uns dias”] – contrapôs à visão da coordenadora do BE propostas de uma perspectiva liberal que dará bons resultados nos países europeus onde é poder.
O líder liberal assegurou que, sob o comando da IL, o País pagaria menos impostos com uma taxação única de IRS, e quem não paga agora também não veria alterada a sua situação; assegurou, ainda que forma tímida, que votou “contra os excessos” dos Estados de Emergência e não contra as medidas sanitárias; e que é o BE que “não deixa que o SNS se modernize” e dá, assim, a mãos aos privados.
Se todo o debate pareceu taco a taco, na reta final o tom não se alterou. Cotrim chutou para canto uma pergunta sobre Educação, para acenar que “o Bloco de Esquerda, que em tempos já foi o partido querido pelas camadas mais jovens, perdeu completamente essa capacidade de ser o farol para os que querem um Portugal mais moderno”. E Catarina Martins alertou o eleitorado jovem e urbano, a quem a Iniciativa pisca o olho, que as “formas digitais de exploração laboral e especulação financeira não são moderninhas”.
IMPOSTOS
Numa tentativa de impedir que Catarina Martins cavalgasse a proposta-bandeira para os impostos, que a IL avançou em 2019, de 15% de IRS para todos os contribuintes, João Cotrim Figueiredo assegurou que na altura o objetivo foi de provocar “a discussão”. Mas, na essência, a intenção do partido mantém-se agora para estas legislativas, de modo que “ninguém paga mais, todos pagam menos, exceto os que passam a pagar zero”.
Ora, à falta de um programa eleitoral dos liberais, foi com aquela mesma medida que Catarina Martins aproveitou para encostar Cotrim à parede com a acusação de que se trata de “uma proposta extremada da direita”. “É muito boa para os ricos”, ironizou a bloquista, que contrapôs com a medida que já tinha tentado arrancar do Governo PS nas negociações do Orçamento para 2022: nove escalões de IRS e descida do IVA sobre a energia.
SALÁRIO MÍNIMO
Após lhe ver apontada por Catarina Martins a sua alegada posição contra o aumento do Salário Mínimo, levado a cabo pelo Governo PS, Cotrim assegurou que não é essa a sua visão. Na verdade, defendeu, o modelo a seguir pelo País deveria similar ao dos Estados europeus que não têm essa tabulação salarial, mas que se regem por salários mínimos setoriais e, eventualmente, locais. Por isso, não é “contra a subida”, mas, sim, “contra a existência”.
Catarina Martins criticou tal pretensão, classificando-a de “dumping” salarial, principalmente se a diferença de valores fosse entre municípios, que lutassem entre si pela fixação de empresas. “A IL dá ideia de que se lança para as coisas sem as pensar”, lamentou.
PANDEMIA
O tema não era um dos estava no elenco a discutir, mas Catarina Martins trouxe-o para a mesa e ainda estocou a Iniciativa Liberal com a má memória do arraial lisboeta, em pleno confinamento, que o partido de Cotrim realizou. A coordenadora bloquista foi um pouco mais atrás, e lembrou que o liberal votou “contra quase todas as medidas sanitárias” no primeiro ano da pandemia, invocando a saúde da economia. “O extraordinário é que o fez por considerar que os negócios não podiam parar. [Mas] morreram 19 mil pessoas em Portugal”, jogou na cara do deputado.
Cotrim, que mostrou não esperar tal ataque da líder do BE, disse que o voto foi “contra limitações das liberdades das pessoas”, que os vários Estados de exceção impuseram. “Discutir e usar mortes de pessoas não é fazer política séria”, advogou, tentando travar ali que Catarina desfiasse ainda mais o tema, mas a bloquista ainda frisaria que os liberais europeus que estão em governos, como na Holanda ou Alemanha, ou avançam para medidas de confinamento rigorosas ou aplicam passes sanitários, respetivamente.
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
João Cotrim Figueiredo assegurou que a IL não quer o desmantelamento do SNS, antes com um outro formato que responda às necessidades dos portugueses – principalmente numa altura em que Portugal é dos países europeus que tem “das taxas mais altas” de população com seguros de saúde – “quase 40% das pessoas”. “Quem não tem disponibilidade de reformas o SNS vai ser responsável pela sua implosão e colapso. Quem não deixa que o SNS se modernize e se torne efetivamente capaz de responder às necessidades de saúde das pessoas é o melhor amigo dos negócios privados”, acenou, ironizando que “no programa eleitoral do BE diz-se que se quer salvar o SNS, mas não se salva o que está bem [..]”.
“Pode ter problemas, mas uma coisa é certa: o SNS não fecha a porta a ninguém. Não diz: ‘ah, o orçamento já acabou, agora o senhor vá para casa porque não vai ter o tratamento que precisa’”, retorquiu Catarina Martins, que disse a Cotrim que “o problema não é se os privados são chamados ou não [a colaborar na resposta do SNS], porque os hospitais privados têm 50% das receitas garantidas pelo Orçamento do Estado, e os laboratórios privados 70% das receitas”. Para a bloquista, é insólito que a IL defenda para o SNS modelos europeus “financiam fortemente os seus sistemas”, como é o caso da Alemanha – com um financiamento três vezes superior ao nacional.
FRASES DO DEBATE
JOÃO COTRIM DE FIGUEIREDO: “O Bloco de Esquerda, que em tempos já foi o partido querido pelas camadas mais jovens, perdeu completamente essa capacidade de ser o farol para os que querem um Portugal mais moderno”.
CATARINA MARTINS: “Formas digitais de especulação financeira ou formas novas de exploração laboral não são moderninhas. Essa ideia de um Portugal, em que só alguns têm oportunidade e a generalidade é completamente abandonada, é uma ideia absurda e velha”.