Há música ambiente a tocar no Mercado do Peixe, em Torres Novas. Cá de fora, mesmo com o frio da noite a atrapalhar olhares mais turísticos, dá para ver como o edifício de 1885, em tons verdes e envidraçado, é do estilo moderno, Soubemos depois que no início do século XX era um importante local de venda do peixe na cidade e que seria encerrado nos anos 1990. Estamos aqui a fazer um compasso de espera, até à chegada da líder do Bloco de Esquerda, que é a cabeça de cartaz deste comício, com hora marcada para as nove da noite, mas que só começou quarenta minutos mais tarde.
Entremos, é melhor, que sempre está mais abrigado. Podemos ver que as cadeiras pretas postas aqui para a ocasião já estão todas ocupadas por apoiantes que ainda nem repararam que têm uma bandeira enrolada junto aos seus lugares. O ambiente é familiar, com muita conversa a ser posta em dia. Ao fundo da sala, jaz um enorme painel azul em que se lê a frase que dá título ao programa eleitoral de 2024 e que tanta indignação causou a Pedro Abrunhosa: “Fazer o que nunca foi feito. Habitação. Salário. Saúde.” Da nossa cabeça nunca mais nos sai a música do cantor nortenho, “trago-te em mim, mesmo que chova no verão,
queres dizer sim, mas dizes não, vamos fazer o que ainda não foi feito”. “Ainda não foi feito”, acentuamos, o que é diferente do “nunca foi feito” aqui usado como slogan político. Ficamos sem perceber a polémica e a consequente queixa à Sociedade Portuguesa de Autores (SPA).
Adiante, que hoje é dia de festa. O Bloco de Esquerda comemora 25 anos de existência e esse vai ser o mote para um discurso com travo a História. Mas ainda há que esperar mais um bocado.
Susana Marques, 52 anos, cabelo impecável, brincos compridos da Guess, casaco preto elegante, acaba de se sentar, sem pressas. Com ela, vieram os pais – a comitiva, que se diz apoiante do partido, veio mais em apoio de Ana Alves, 24 anos, filha e neta e a primeira pessoa a usar do microfone nesta noite e com bastante propriedade.
Para sermos mais rigorosos, Ana será a segunda, pois antes do seu discurso, houve um momento musical inaugural. Siul Sotnas, o nome artístico de Luís Santos (é só ler ao contrário!), 46 anos, de blazer de cornucópias colorido, interpretou duas músicas a pedido da organização – “adorava ter tocado do meu reportório”, diz-nos enquanto nos mostra o seu CD Rádio Canibal. Vejam Bem, de Zeca Afonso, serve perfeitamente para as pessoas se concentrarem no palco. Segue-se Maré Alta, um poema que costumamos ouvir na voz de Sérgio Godinho: “Que a liberdade está a passar por aqui!”
Orgulho em não votar PS
Uma das filas de cadeiras da elegante sala, ladeada por colunas de ferro forjado verde, está meia ocupada por um conjunto de homens de boina, pensamos que por causa do frio que se faz sentir esta noite. São todos reformados (“roubados pelo Passos Coelho”), militantes, ou aderentes, como aqui se chamam aos filiados no partido, e alguns já vêm da UDP, a pré-História do Bloco de Esquerda. Os mesmos que escrevem para o jornal O Riachense, da freguesia de Riachos, de onde são naturais – “É fruto do 25 de Abril e totalmente isento”, afirma Manuel Lopes, de 67 anos.
“O meu maior orgulho é nunca ter posto a cruzinha no PS. Votei uma vez em Mário Soares e ainda tenho isso aqui atravessado”, diz Joaquim Madeira, 65 anos, apontando para a zona da garganta, meio a rir, mas muito sério. Vem isto a propósito do voto útil, ou inútil, na perspetiva de quem está nesta sala, como haveremos de perceber depois de Mariana falar disso no seu discurso de meia hora.
Enquanto eles falam no palco, os intérpretes Sofia Fernandes e Luís Areola (ainda se lembram das conferências de imprensa da DGS?) estão em tradução direta, sem rede, para Língua Gestual Portuguesa – há oito anos que o fazem para este partido, mas nunca têm acesso aos discursos antes de (também) entrarem em palco. Não revelam se é neste partido que votam, pois também aceitam trabalho para outros quadrantes políticos, quando os há. “O Bloco já teve mais conteúdos com Língua Gestual, mas com a facada que levaram nas últimas eleições, destabilizou também esta parte, ainda que o esforço se mantenha. Absurdo é que os que mais têm fazerem muito pouco”, nota Areola.
O presente mais adorado
“É esquerda, é bloco, é Bloco de Esquerda!”, é assim, e sob uma enorme ovação, que Mariana Mortágua entra no Mercado do Peixe, ao lado de Helena Pinto, fundadora do partido, e autarca na região, vestida de roxo, que traz consigo um grande embrulho para oferecer à líder. Lá dentro encontra-se um cartaz da campanha do Bloco pela despenalização do aborto, em 2007, em que a mensagem “Vota Sim para Mudar a Lei” é clara, e em que ainda se acrescenta “Punida com 3 anos de prisão”. Helena quis perpetuar esta luta, tão marcante para o partido que, além dos direitos, resgatou a dignidade das mulheres. “Só nessa data, em pleno século XXI, é que se retirou do código penal a lei que punia com prisão quem abortasse. Era medieval”, lembra.
Antes de Mariana se dirigir ao palco, já sem sobretudo, para falar aos cerca de 150 presentes, ainda é tempo de ouvir Luís Gomes, líder da distrital de Santarém, e Bruno Góis, que está sentado à esquerda da líder, na primeira fila. “Somos mais do que uma cruz no papel”, será o soundbite do candidato por este distrito.
“A liberdade está a passar por aqui”, começa assim o discurso. E lembra que foi de Santarém que saiu a coluna de Salgueiro Maia rumo à revolução, como uma das justificações para ser neste distrito que o Bloco assinala os seus 25 anos. É por ser uma data tão importante que Mariana se dedica ao revivalismo. Por exemplo, lembra que a primeira vez que uma bandeira do Bloco saiu à rua foi para pedir a independência de Timor Leste: “Aquele povo ganhou o direito à autodeterminação.” Daqui, partiu para expressar a sua solidariedade com a Palestina, “o povo mais massacrado do mundo”, e acorda assim um coro de gritos: “Palestina vencerá!”.
“Nenhuma vitória é para sempre”
Ao pequeno périplo histórico, segue-se o repassar pelas principais conquistas do partido. A saber: despenalização das drogas leves, igualdade e respeito pela comunidade LGBT, e, mais uma vez neste dia, a “vitória histórica das mulheres”. Apontando para o cartaz oferecido, que agora se arrumou junto a um dos pilares, virado para a plateia, garante que “a direita foi derrotada”. Não termina este assunto sem lembrar que se acumulam obstáculos à efetivação do direito conquistado em 2007, quer através da escassez de encaminhamentos, quer pelo número crescente de objetores de consciência. “Nenhuma vitória é garantida para sempre. O voto no Bloco é a certeza de que não passarão.”
A última mensagem da noite é a história de um arrependimento, como lhe chama Fernando Rosas. Mariana evoca o fundador para iniciar a velha conversa do voto útil, que no dia seguinte se transforma num amargo de boca, inútil. “O voto em nós abriu caminho, sempre, e isso muda a vida das pessoas”, grita, com o rosto a ficar vermelho do esforço oratório para se fazer ouvir por cima das palmas. “Daqui a poucos dias, seremos uma força determinante para um novo Abril. Cinquenta anos depois, vamos virar a página!”
O comício acaba, mas poucos desmobilizam de imediato. Uns aproveitam para falar com Mariana, outros para se despedirem até à próxima ação de campanha. Mas Paula Monteiro, 34 anos, e Ana Filipe, 43, ambas da região, aproveitam a deixa para posarem com o cartaz histórico na mão. “É uma vitória da esquerda”, relembra Ana, como se hoje ainda ninguém o tivesse dito. “Vejo que, sempre que há uma hipótese de retirar direitos, são os das mulheres que ficam ameaçados”, acentua Paula, da concelhia de Santarém.
As bandeiras já estão enrolas e arrumadas em caixas de plástico cinzentas, ao fundo da sala. As cadeiras pretas empilharam-se num instante, com a ajuda dos apoiantes. Mas o que nunca acabam são as fotos com Mariana, que já tem o sorriso certo para ficar sempre bem no retrato. À saída, já de sobretudo vestido outra vez, pega no cartaz que Helena Pinto lhe ofereceu, protege-o debaixo do braço, e anuncia: “É inesquecível. Acho que vou levá-lo para casa.”