Vítima de abusos em criança, nas duas instituições religiosas pelas quais passou durante dois anos, António Grosso só conseguiu quebrar o silêncio ao chegar à maioridade e, desde então, faz por dar a conhecer o seu caso.
Aos 70 anos, o cofundador da Coração Silenciado, associação de vítimas surgida este ano, na sequência do trabalho da comissão independente que investigou tal flagelo nas fileiras católicas, espera do Papa um pedido formal de perdão e de Marcelo Rebelo de Sousa uma audiência há muito pedida.
No podcast Irrevogável, da revista VISÃO, António Grosso começou por criticar a ausência de um sinal na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) de que a Igreja Católica reconhece os erros e os pretende corrigir, a começar por um pedido de desculpas público.
“Quando saiu o programa, reagimos contra o facto de não ser mencionado aquele que é um tema central, em 2023, na sociedade portuguesa, que são os abusos na Igreja Católica. Não estando previsto, durante a Jornada, qualquer evento, a derradeira coisa que esperamos é que, pelo menos, o Papa Francisco, que tem feito uma campanha contra os abusos sexuais na Igreja Católica e todo o encobrimento havido ao longo dos tempos, seja coerente e – em 2023, no País onde se fala de abusos sexuais e onde se realiza a Jornada -, perante toda a gente, exponha a sua opinião sobre o tema”, disse o dirigente da Coração Silenciado, frisando que a associação surgiu perante a reação do clero nacional ao trabalho da comissão Independente.
“O que queríamos era ouvir às autoridades superiores da Igreja Católica, ao Vaticano e, nomeadamente, ao Papa Francisco, alguma referência às imbecilidades que têm sido ditas pelos bispos portugueses. O que motivou a criação desta associação Coração Silenciado foi a nossa indignação perante a reação do bispado português, face ao relatório da Comissão independente, que fez um trabalho extraordinário: ouviu 500 testemunhas em apenas um ano – eu fui uma delas, que, pessoalmente, falei com os membros dessa comissão”, explicou, defendendo que, lá fora, a Igreja Católica, há muito, avançou para indemnizações às vítimas. “A Igreja católica dos Estados Unidos chegou a vender património para poder pagar indemnizações às vítimas. Aqui não há o mínimo esforço”, acrescentou.
Abusado em menino nas duas instituições religiosas em que esteve
O testemunho de António Grosso foi um dos 500 recebidos pela Comissão Independente e que, ao Irrevogável, reproduziu.
“Fui para o Seminário de Santarém quando tinha 10 anos. E, aí, estive um ano e meio, até às férias da Páscoa, do segundo ano. Nas férias da Páscoa, expulsaram do seminário 30 seminaristas, entre os quais eu. O argumento contra mim era o de que eu era má companhia, porque dizia asneiras junto dos meus colegas e falava de coisas íntimas, e não sei quê. Quem sabia dos meus pecados era o diretor espiritual, mas, como ele tinha de guardar os segredos de confissão, convidou um dos meus colegas, mais meu amigo, para me denunciar junto do vice-reitor sobre as conversas que tinha comigo e sobre as asneiras que eu dizia. Então, fui violentamente agredido pelo vice-reitor, um dia em que me chamou ao gabinete, e disse que me ia expulsar do seminário. E assim aconteceu nas férias da Páscoa desse ano”, contou.
Mas a história de António não se ficou por aí: “O prefeito da minha camarata, um tal de padre Carlos, era o que, às duas da manhã, ia à minha cama, levantava os lençóis e apalpava-me, com o pretexto de saber – porque era sempre com pretextos divinos – se eu tinha pecado contra a castidade sozinho. Porque, se o tivesse feito, teria cometido um pecado mortal. Imagine-se isto, dito a uma criança de 10 anos ou 11 anos: se, durante a noite, viesse o diabo e me espetasse um punhal no coração, eu morreria e iria diretamente para o inferno, porque estaria em pecado mortal. Portanto, eu teria de, imediatamente, me confessar e dizer os meus pecados”.
“Depois, durante o dia, quando acabavam as aulas, chamava-me ao quarto dele, para me abraçar, para me beijar. Enfiava-me a língua dele garganta dentro. Dava-me rebuçados, para me para seduzir. Esse era o padre que, todos os domingos, curiosamente, nos anos de 1960, vinha a Lisboa, à Igreja dos Mártires do Chiado, celebrar a missa para a RTP – o único canal que havia de televisão. Aquelas mãos, que abençoavam os fiéis através da RTP, eram as mesmas que me apalpavam à noite na cama. E aquela boca, que pronunciava as orações, era a mesma que me metia a língua pela minha pequena boca adentro“, continuou
Depois de Santarém, os abusos mantiveram-se na instituição para a qual foi depois, em Fátima. “O meu pai foi contactado por um amigo, que teria dado boleia a um franciscano, que lhe contou que tinha uma casa de gaiatos na Cova da Iria, onde aprenderiam ofícios. E, então, as coisas arranjaram-se de maneira que o franciscano me viesse buscar a Lisboa e me levasse, com a garantia de que continuaria a estudar lá. Eu era o único, dos 20 rapazes, que ia às aulas, num colégio que havia, e que ainda lá está, mesmo ao lado do Santuário. E lá fui, para o chamado Refúgio da Mãe do Céu, com esse Frei Adelino Novais, que se mostrou muito mais sórdido que o outro, em termos de abusos sexuais, e muito violento, sádico”, lembra.
“Uma vez, levou-me ao Porto à boleia – com aquele hábito franciscano castanho, com os cordões brancos pendurados e a mão no peito, num instante ele arranjava boleia. Era a primeira vez que eu ia ao Porto. Em casa de uma benfeitora (porque ele ia a casa de benfeitores receber dinheiro – que não usava connosco -, além de pacotes de arroz, açúcar e cevada), a senhora disse: ‘já preparei ali um divã para o menino’. Ele disse: ‘não, não é preciso; não é preciso sujar mais lençóis, ele dorme comigo’. Em casa dos benfeitores, ele fazia questão de se aquecer comigo. Na cama ele puxava-me a mão para lhe apalpar os testículos. Eu facilmente adormecia profundamente, como qualquer rapaz de 11 ou 12. De manhã, eu acordava com as minhas pernas todas molhadas, porque ele se masturbava no meio das minhas pernas. Depois, teve a lata uma vez de dizer assim: ‘bom, são seis da manhã, tens de te levantar, para ir à missa das sete; mas vais mais cedo, porque primeiro tens de te ir confessar’. Portanto, quem tinha que se confessar era eu”, descreveu.
Se no primeiro caso, o agressor, padre Carlos, acabou por casar e abandonar o sacerdócio; no segundo caso, o frei Adelino Novais foi encontrado morto junto a uma estrada, há já vários anos.
A primeira vez que António Grosso rompeu o silêncio foi aos 21 anos. Há 21 anos, contou a sua história à revista VISÃO, aquando do caso Casa Pia. Mas as marcas mantiveram-se para a vida.
“Na minha adolescência, sentia-me muito humilhado, muito humilde, com grande complexo de inferioridade, com muita dificuldade em me aproximar das namoradas – porque a dúvida vinha sempre à baila: devo contar, não devo contar; se contar, vai ser um desastre e ela já não quer saber de mim. Havia, sobretudo, uma atitude permanente de uma personalidade humilhada e inferiorizada. De cada vez que me lembrava dessas coisas, em adolescente, eu dava socos na própria cara, com raiva e complexo de culpa – porque se há coisa que esses agressores nos inculcam é a culpa. A partir do momento em que falei, fui me libertando e isso deixou de ser traumático, como fora durante toda a minha adolescência, assumindo aquela posição de que a vergonha que a tenham eles, porque a nós compete-nos a coragem”, assume neste podcast, onde lamenta que Marcelo Rebelo de Sousa ainda não tenha recebido a associação das vítimas.
“Apesar de, no embrião da associação, termos feito esse pedido, para ter uma conversa com o Presidente da República, e algum apoio, face à indignação que tínhamos perante a reação dos bispos. Não fomos recebidos; foram sempre adiando essa receção. Agora que a associação está constituída, voltámos a contactar a Presidência da República e não está nada marcado”, concluiu.
Para ouvir em podcast: