Mesmo com uma crise de preços e apesar dos apoios extraordinários lançados no final do ano – o mais recente a pagar em dezembro – a diferença entre receitas e despesas do Estado volta a superar as expectativas do Governo. Em vez dos 1,9%, estimados em outubro, o défice orçamental não ultrapassará os 1,5% do PIB, revelou António Costa, em entrevista à VISÃO.
“Neste ano, previmos um crescimento de 6,5%, e ele será, pelo menos, de 6,7%. Previmos um défice de 1,9%, mas ele não ultrapassará seguramente 1,5%”, anunciou o primeiro-ministro, respondendo a uma pergunta sobre a possibilidade de um orçamento retificativo em 2023.
A possibilidade de o Governo ultrapassar a sua meta de défice já tinha sido adiantada pela UTAO no verão, antecipando que a “receita possa continuar a beneficiar do contexto inflacionista”. O Conselho das Finanças Públicas (CFP) fazia contas semelhantes sobre o impacto da subida de preços nas contas públicas, estimando que o défice ficaria em 1,3% do PIB. A subida dos preços tem representado uma torneira de dinheiro para o Estado e ajuda a explicar a subida de 19% das receitas de impostos até outubro.
Por outro lado, aumentos de despesa – como o apoio de 125 euros pago a todos os contribuintes com salários até aos 2.700 euros ou o modelo de atualização das pensões (50% pago este ano, resultando em aumentos mas baixos no futuro) – pressionam as contas de 2022. O próprio Ministério das Finanças decidiu, em outubro, manter a meta de -1,9% e a instituição internacional mais otimista, a OCDE, só previa -1,8%.
As contas tinham, afinal, muito mais margem. Segundo António Costa, o défice não ultrapassará os 1,5%. Um resultado alcançado apesar de a nova medida anunciada pelo primeiro-ministro custar mais 240 milhões de euros.

Ajuda da inflação
A força da receita parece ser avassaladora. É que o número do défice é uma novidade, mas é também uma consequência natural das declarações recentes do ministro das Finanças, que anunciou que a economia portuguesa iria crescer 6,7% este ano, acima dos 6,5% inscritos no orçamento.
“Hoje podemos dizer que as projeções no Orçamento do Estado em relação ao crescimento para este ano vão ser ultrapassadas”, disse Fernando Medina, numa conferência segunda-feira. Baseando-se nos dados que saíram até ao terceiro trimestre, o governante antecipava que o PIB poderia dar um salto de 6,7%.
Como a VISÃO já tinha escrito, só uma travagem a fundo nos últimos três meses do ano impediria que a meta de crescimento de 6,5% fosse atingida. Mesmo num cenário de estagnação, esse valor seria superado em 0,2 pontos. Será o valor mais alto em mais de 30 anos.
O maior otimismo sobre a totalidade do ano consolidou-se após um terceiro trimestre melhor do que os economistas esperavam. Os últimos meses trouxeram “a confirmação de uma recuperação expressiva do setor do turismo e o mercado de trabalho bateu novos máximos”, explicou na altura Paula Carvalho, economista-chefe do BPI, à VISÃO.
Apesar da aceleração dos preços, o consumo das famílias continuou a crescer. “Num contexto de aceleração da inflação, que atingiu os 10,2%, em Portugal, e os 10,7%, na Zona Euro, em setembro, os dados do crescimento do PIB surpreendem pela relativa normalidade. Aparentemente, o consumo privado não estará a ser excessivamente penalizado pela subida geral dos preços”, escreveu o NECEP, da Universidade Católica.
Não há uma explicação óbvia para este comportamento dos consumidores. Talvez as medidas de mitigação estejam a ter efeito, mas as mais relevantes só chegaram às carteiras dos portugueses nos últimos três meses do ano. Podemos estar também a assistir ao esgotamento das poupanças acumuladas por alguns durante a pandemia (em ano e meio, a taxa de poupança recuou de 13,4% para 5,9%). Ou simplesmente demora algum tempo até que os padrões de consumo se adaptem.
Um PIB mais alto e receitas fiscais insufladas traduzem-se em rácios de défice e de dívida mais baixos, o que ajuda a explicar a revisão do défice anunciada agora por António Costa. “Os agentes económicos não ajustam no imediato as suas decisões de consumo e investimento, com benefícios sobre a receita fiscal, em particular nos impostos que incidem sobre o consumo dos agentes económicos, isto é, nos impostos indiretos”, referia o CFP.
Hábito socialista
Esta tem sido a imagem de marca dos governos socialistas liderados por António Costa: chegar ao final do ano com défices abaixo do orçamentado. No passado, isso deveu-se a níveis de crescimento acima do previsto, incapacidade para executar o investimento público e, com menor relevância, o recurso a cativações.
Contudo, os exercícios anteriores foram sendo acompanhados por reversão de medidas de austeridade e/ou um contexto económico favorável. Agora, tal como durante a pandemia, os portugueses enfrentam dificuldades. Neste caso, uma crise inflacionária que está a roubar poder de compra de forma transversal às famílias. No terceiro trimestre, o salário médio recuou 4,7% em termos reais.
Neste contexto duro para muitos portugueses, terminar o ano com um défice muito baixo talvez não fosse politicamente apetecível, o que explica a apresentação desta medida de última hora pelo primeiro-ministro. Ainda assim, mesmo com ela, o défice ficará 0,4 pontos abaixo da meta do OE, o que mostra que havia margem para ser ainda mais ambicioso nestas medidas sem comprometer o equilíbrio das contas.
O que está então a motivar o Governo para ser conservador nos apoios? António Costa e Fernando Medina tentam acelerar a consolidação orçamental, procurando evitar ao máximo que Portugal receba alguma atenção negativa da parte dos mercados financeiros, num momento de agravamento dos juros, de possível recessão na Europa e quando se debate o regresso (e reforma) das regras orçamentais europeias.
Isso percebeu-se cedo na apresentação do Orçamento do Estado para 2023, quando o ministro das Finanças foi destacando a importância da descida da dívida pública. No arranque desta década, Portugal terá uma das maiores diminuições de dívida do mundo. O objetivo é afastar o país de Grécia e Itália (as economias mais endividadas do euro) e colocá-lo até abaixo de Espanha, França e Bélgica, algo que deve acontecer nos próximos dois anos.
“Aquilo que quero deixar como ministro das Finanças é que a dívida pública passe a ser um ativo nas condições de financiamento da economia”, afirmou Fernando Medina à CNN. No seu primeiro ano à frente das contas públicas do país, essa prioridade ficou clara.