19 de julho de 1987. Há precisamente 35 anos, a noite eleitoral terminava de forma inesperada, com a primeira maioria absoluta de um partido (PSD) na história da democracia portuguesa. Aníbal Cavaco Silva lucrou com o regresso às urnas, 18 meses depois de ter vencido as legislativas, e conquistou, desta feita, mais de metade da votação. Logo nessa noite, o líder social-democrata justificou o resultado com o reconhecimento do seu trabalho e a necessidade de estabilidade. Soa familiar? Três décadas e meia depois, os papeis dos partidos no poder e na oposição inverteram-se, mas as circunstâncias que deram a António Costa a sua primeira maioria absoluta assemelham-se. Resta saber se o socialista será capaz de a segurar e renovar, como aconteceu com Cavaco.
Aníbal Cavaco Silva foi eleito primeiro-ministro em 1985, com menos de 30% dos votos. Todavia, cerca de dois anos depois consolidava a sua posição e os sociais-democratas marcavam a distância para os outros partidos no hemiciclo. A queda do primeiro Governo do então presidente do PSD precipitara-se por iniciativa do extinto PRD (Partido Renovador Democrático), ao propor uma moção de censura que acaba aprovada no Parlamento com os votos do PS (liderado por Vítor Constâncio, em rota de colisão com o então Presidente da República, o socialista Mário Soares, que avisou o dirigente de que esta atitude levaria o País para eleições), do PCP e ainda do MDP/CDE. Dito e feito – Mário Soares dissolveu a Assembleia da República e convocou eleições antecipadas; a oportunidade de que os sociais-democratas precisavam para reforçarem o poder chegara.
Mário Soares dissolveu a AR em 1987 e convocou as eleições que deram uma vitória histórica ao PSD. Foi o início da década do cavaquismo
Portugal acabava de entrar na então CEE – Comunidade Económica Europeia (1986); havia dinheiro de Bruxelas para investir na modernização do país; Cavaco gozava de uma popularidade elevada e viu na crise política um trunfo para usar a seu favor. Ainda na campanha, pediu a maioria absoluta e chegou a sugerir que “não continuaria como primeiro-ministro se, depois destas eleições, o Governo não dispusesse de um apoio maioritário na Assembleia”.
Na rua, a caravana social-democrata fez “uma campanha animada, emotiva e que teve muita participação”, recorda José Silva Peneda, o cabeça de lista por Bragança nas eleições de 1987, que integrou todos os Executivos de Cavaco. “Tinha uma convicção de que seria possível”, adiantou à VISÃO. Mesmo assim, os resultados acabaram por superar as expetativas que tinha. Tal como aconteceu com o então primeiro-ministro, que confessou isso mesmo na sua autobiografia.
O PSD obteve 50,22% dos votos. O que no hemiciclo lhe concedeu o direito a ocupar 148 das 250 cadeiras. O grande derrotado da eleição foi o partido “eanista” PRD, que propôs a moção de censura e caiu de 45 parlamentares para somente sete.
A “queda brutal do PRD” tratou-se de uma “rejeição da força política que lançou Portugal numa crise e derrubou um Governo que estava a governar bem de acordo com o entendimento do povo”, apontou no final da noite, Aníbal Cavaco Silva, citado pela RTP, ainda no seu quartel-general, no Hotel Meridien, em Lisboa. Dali saiu, acompanhado pela mulher, Maria Cavaco Silva, para a Alameda Dom Afonso Henriques, onde acabou a festejar com milhares de portugueses a primeira maioria absoluta de um partido em democracia.
A história que se repete
Dando um salto com 35 anos, José Filipe Pinto, politólogo e professor de Ciência Política na Universidade Lusófona, une os pontos entre 1987 e a atualidade: “A primeira analogia é que as duas maiorias absolutas são resultado da decisão de um Presidente da República [em 1987 Mário Soares; em 2021 Marcelo Rebelo de Sousa], que dissolveu a Assembleia da República. Em 1987 aconteceu a partir de uma moção de censura; desta vez foi desencadeada pela não aprovação do Orçamento do Estado para 2022”.
Em segundo lugar, “no discurso da vitória, Cavaco falou na vitória da estabilidade e no reconhecimento do trabalho do Governo. Costa agradeceu os votos e disse que era o único a garantir a estabilidade de que o país precisava. Os dois justificaram a maioria com a vontade de estabilidade dos portugueses”, continua José Filipe Pinto. E, em terceiro, “o Presidente da República é, nos dois casos, alguém do partido concorrente”.
E, aqui, Cavaco teve a vida mais dificultada do que tem Costa, na opinião do politólogo: Soares sobrepunha-se mais ao protagonismo de Cavaco. Estava ainda no primeiro mandato e, com as “presidências abertas”, passava a ideia de estar mais próximo do país real do que o próprio primeiro-ministro. Já Marcelo, apesar de interventivo, não se pode voltar a candidatar e “por isso não terá a mesma vontade de rivalizar com Costa”.
Lidar com a maioria absoluta
Embora as circunstâncias sejam propicias a paralelos, as coincidências ficam-se por aqui.
Cavaco Silva ficará para a história “com o seu perfil de professor universitário, de alguém muito rigoroso e não pelas suas competências humanas. Será reconhecido como um grande técnico, alguém que modernizou o sistema, que fez reformas”, traça José Filipe Pinto.
“Foi um mandato fascinante”, acrescenta José Silva Peneda, que assumiu funções, em 1987, como ministro do Emprego e da Segurança Social, após ter sido convidado a integrar as listas do PSD por Cavaco e de ter passado pelo anterior Executivo, de 1985 a 1987, como Secretário de Estado do Planeamento e Desenvolvimento Regional.
“Ligou-me um dia e disse-me `vou-lhe pedir uma coisa e o senhor não pode dizer que não`. O meu nome tinha sido o único a reunir consenso na distrital de Bragança, onde havia problemas dentro do partido. Depois de vencermos, mais ou menos dois dias depois, convidou-me logo para ministro; e realmente havia outras condições para governar, que não existiam da primeira vez [em 1985]. Cavaco tinha a maioria, mas empenhou-se muito no diálogo social e a concertação social é hoje o que é por causa dele”, lembra.
O diálogo de que o antigo governante fala revelou-se inevitável para fazer as grandes reformas que são atribuídas ao PSD nesse mandato, como a revisão Constitucional de 1989, o ponto final da Reforma Agrária, a Lei de Bases do Sistema Educativo ou das Finanças Locais. Tudo medidas que extravasavam a maioria absoluta e que necessitavam de uma maioria qualificada no Parlamento, ou seja, dependentes de acordos com a oposição. “O primeiro-ministro até podia ter tiques de autoritarismo, mas o seu Governo dificilmente poderia ser autoritário, porque eram precisas as tais grandes reformas”, explica José Filipe Pinto.
António Costa terá o mesmo desafio, se quiser avançar com alterações profundas legislativas e verá posta à prova a sua promessa da “maioria de diálogo”. Se caso do ex-presidente do PSD, Rui Rio, havia meio caminho andado para se chegar a acordos, com a eleição de Luís Montenegro, o politólogo antevê que agora estas reformas possam tardar. Até porque o perfil do atual primeiro-ministro é, por contraste com o de Cavaco, “muito mais político do que técnico”, é um estratego.
Costa “é muito hábil no jogo político e cultiva muito mais o ativo do relacionamento com a população e com os seus colegas de partido [do que Cavaco], como se viu agora no caso de Pedro Nuno Santos. Pode vir a ser vítima das suas amizades. Isto nunca aconteceria com Cavaco, que quando tinha problemas não hesitava em deixar cair ministros”, diz José Filipe Pinto. São políticos muito diferentes, mas os portugueses deram-lhes condições semelhantes para governar.