No último mês, o Tribunal Constitucional (TC) declarou inconstitucionais as normas da chamada “lei dos metadados”. A decisão, que foi subscrita por 11 dos 12 juízes do tribunal, reverberou um pouco por todo o espaço público português, envolvendo políticos, juízes, advogados e jornalistas, e instigou um debate sobre uma questão essencial que, antes da sentença do TC, era pouco discutida.
O facto de a própria Lucília Gago, procuradora-geral da República (PGR), defender publicamente a nulidade deste acórdão, posição que sustenta na convicção de que existe uma “contradição entre a fundamentação e o juízo de inconstitucionalidade”, ilustra em pleno não só a relevância de harmonizar a arquitetura legal em torno dos metadados, como também a natureza fraturante deste tópico.
A decisão da PGR é considerada inédita, e levanta uma questão elementar: afinal, o que está em causa nesta decisão do TC?
O que são os metadados?
De acordo com a lei declarada inconstitucional pelo TC, que foi pela primeira vez instituída em Portugal em 2008, à boleia de uma diretiva da União Europeia de 2006, os fornecedores de serviços de comunicação eram obrigados a preservar os metadados dos seus clientes durante um ano. O objetivo principal da UE passou por fortalecer a capacidade das autoridades judiciárias dos estados-membros para combater o terrorismo, que, na altura, se fez sentir em dois atentados sonantes, em Londres e Madrid. E os metadados têm um papel fundamental a desempenhar nessa missão.
Essencialmente, através da consulta destes dados, as autoridades e as operadoras de comunicação conseguem ter acesso a informações específicas sobre os telemóveis e os computadores de potenciais suspeitos criminosos. No caso dos telemóveis, podem identificar a duração, a localização e a identidade dos interlocutores de cada chamada; no caso dos computadores (ou qualquer dispositivo que consiga aceder à internet), podem verificar as horas de entrada e saída, a localização e duração dos acessos ou o endereço IP – um número particular a cada dispositivo. Os metadados excluem, no entanto, o conteúdo das chamadas, particularmente o que é dito em cada uma. Esse tipo de escuta necessita da autorização de um juiz, sendo apenas equacionada no âmbito de crimes mais graves.
Mas esta lógica tem um grande senão: em teoria, as autoridades podem ter acesso aos dados de todos os cidadãos, não só aos de suspeitos específicos. E é nessa realidade que se prende a decisão do TC, que entende que guardar os dados de tráfego e localização de todas as pessoas, de forma generalizada, “restringe de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa”.
Lembre-se que o Tribunal de Justiça da União Europeia já decidira em 2014 que a lei era inválida, pois “infringia no direito fundamental ao respeito pela vida privada e à proteção de dados pessoais”. Após a indicação do tribunal europeu, a provedora de Justiça recomendou em 2019 que a lei portuguesa dos metadados fosse alterada, mas, na altura, a então ministra da Justiça Francisca Van Dunem valeu-se do “calendário legislativo” para justificar que temia não ser possível que o Governo pudesse “apresentar ao Parlamento uma proposta de lei com essa aspiração”.
Quais são as potenciais consequências para a Justiça portuguesa?
A inconstitucionalidade decretada pelo acórdão do TC em relação à lei dos metadados vem com efeitos retroativos, o que pode comprometer milhares de processos judiciais. Desde 2008, quando a lei entrou em vigor, as autoridades passaram a utilizar os metadados como provas legítimas no contexto de processos criminais, e temem que a decisão do TC possa pôr em causa alguns julgamentos ainda em curso.
Os metadados são particularmente importantes em casos de burla na internet e, como noticia o jornal Observador, as investigações relativas a mais de 8 mil processos de burla com MB Way podem já estar em risco. Sem os metadados, a tarefa de identificar e monitorizar os suspeitos e os seus dispositivos tecnológicos torna-se mais onerosa e, em alguns casos, mesmo impossível.
Nesse sentido, Lucília Gago defende que, no mínimo, os efeitos retroativos do acórdão do TC sejam reconsiderados, de modo a não ameaçar a evolução dos processos que recorram a metadados como provas judiciais. Por sua vez, o bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, rotulou esta proposta da procuradora-geral da República como um “absurdo total”, questionando se “alguma vez é possível que uma prova seja inconstitucional e não vá funcionar para os processos anteriores”.
Os juízes do Palácio Ratton estão neste momento a analisar a arguição de Lucília Gago, mas a decisão do mês passado, pela força da sua quase unanimidade – apenas 1 juiz votou contra –, não deve ser alterada. Aliás, os pedidos de nulidade circunscrevem-se na grande maioria dos casos à correção de erros formais, e a Constituição, tal como refere Luís Menezes Leitão, prevê a retroatividade dos acórdãos de inconstitucionalidade.
O ministério da Justiça ainda não se pronunciou formalmente, mas, em esclarecimento enviado à agência noticiosa Lusa, garante estar a analisar o acórdão do “ponto de vista prático e jurídico”, admitindo ainda que a decisão do TC poder vir a ter “um impacto relevante na investigação, deteção e repressão de crimes graves”.