Rui Tavares é vereador sem pelouro na Câmara Municipal de Lisboa e prepara-se para tomar posse como deputado único do Livre no Parlamento. Não é o primeiro a acumular os dois cargos públicos, nem deverá ser o último. No estatuto dos deputados nada há que o impeça, mas o politólogo José Filipe Pinto admite que “esta possibilidade pode ser vista como um desvio daquela que deveria ser a sua missão única e primordial, durante os quatro anos da legislatura”. Já o cientista político José Palmeiras não vai tão longe, dizendo apenas que podem dar-se casos de “incompatibilidade política”, mas, “como nenhum deputado pode mudar a lei sozinho”, a situação parece-lhe “salvaguardada”.
“À mulher de César não basta ser séria, deve parecer séria”. A frase ocorre ao professor de Ciência Política da Universidade Lusófona José Filipe Pinto, quando lhe perguntamos o que pensa sobre deputados que também ocupam lugares de destaque nas autarquias (exceto o de presidente ou de vice-presidente, que não são permitidos). Isto para dizer que “não legitima a posição dos deputados perante os eleitores” e que “devíamos repensar um pouco a questão das incompatibilidades: tornar as coisas mais claras, especialmente nas zonas cinzentas”. José Filipe Pinto receia, neste caso, que, mais do que a possibilidade de existir um aproveitamento, possa criar no eleitorado a sensação de que os deputados não estão ali a 100%, dando gás à narrativa da redução dos parlamentares. “Eu não quero menos deputados. Quero é deputados com mais qualidade”, refere o politólogo.
Por sua vez, o professor de ciência política da Universidade do Minho José Palmeira não dá tanta importância a esta duplicidade de funções públicas. A única incongruência que encontra é a possibilidade de haver casos “não de incompatibilidade legal, mas política”, em que um elemento de uma autarquia tentasse usar o seu papel no Parlamento para alterar uma lei que o beneficiaria a nível local. Todavia, mesmo nesta situação, conclui que “nenhum deputado tem o poder de mudar a lei sozinho”; precisaria sempre de uma maioria parlamentar. Para além de que influências locais no poder nacional podem verificar-se independentemente de haver um lugar na Assembleia da República – pode acontecer pela via partidária, nomeia.
Por altura das eleições Autárquicas, no ano passado, mais de um terço dos deputados estavam a concorrer a lugares em Câmaras. Não é, portanto, caso raro encontrar parlamentares em lugares de destaque nas autarquias. Num passado recente, o comunista João Ferreira conciliou a vereação em Lisboa com o mandato no Parlamento Europeu; a ex-líder do CDS, Assunção Cristas, foi deputada e vereadora também na capital. O vice-presidente da bancada socialista, Pedro Delgado Alves, foi até às últimas eleições presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, em Lisboa – o que foi aproveitado pela campanha do PSD, protagonizada pelo médico de saúde pública Ricardo Mexia e atual presidente desta Junta, como argumento contra o adversário, que não estaria, segundo o último, a dedicar o tempo suficiente ao Lumiar por causa do cargo no Parlamento. Chegou mesmo a ser apelidado como “autarca-batman”, nas redes sociais.
Em nenhum dos exemplos antes apresentados veio a público algum tipo de aproveitamento ou de negligência relacionada com a coexistência das duas funções e José Filipe Pinto destaca outras zonas mais cinzentas da acumulação de funções, como sendo o de deputados poderem exercer advocacia. Em relação a funções públicas, o politólogo nomeia um exemplo que apresenta no seu mais recente livro “As Europas e os Novíssimo Príncipes. Os escândalos populistas”: “o caso que conheço mais emblemático é o do processo contra um deputado do Parlamento Holandês que queria ser deputado no Parlamento Europeu, mas perdeu o processo”.
No Parlamento há faltas, nas autarquias podem ser substituídos
Independentemente das outras atividades que um deputado possa ter, o trabalho no Parlamento não pode ser encarado como um part-time. No caso das reuniões plenárias, cada membro eleito pode apenas dar até três faltas injustificadas e, se for para além disto, perde o mandato. Desde o contacto com os eleitores (segundas-feiras); às reuniões das comissões (terças, quartas, quintas e sextas), aos plenários (quartas, quintas à tarde e sextas de manhã) e às reuniões dos grupos parlamentares (quintas de manhã), é mais difícil passar pelos intervalos da chuva na Assembleia da República.
Já o trabalho nas autarquias é mais flexível e um vereador pode inclusive ser substituído por eleitos da mesma lista e avisar até no próprio dia. Assunção Cristas chegou mesmo, enquanto vereadora da Câmara de Lisboa, a tentar mudar o dia das reuniões de Câmara, que se realizam à quarta de manhã, para poder participar nestas, uma vez que tinha consecutivamente de pedir para ser substituída por o horário entrar em conflito com o dos plenários no Parlamento, mas Fernando Medina, o então autarca da capital, não acedeu.