Em 1991, o dirigente socialista António Guterres era já “suspeito” de estar a preparar o “assalto” à liderança do PS, então chefiado por outro elemento do ex-Secretariado, Jorge Sampaio. Ia haver eleições, nesse ano, e as “tropas” de Guterres, que já dominava o aparelho, não vislumbravam em Sampaio o elã necessário para retirar a Cavaco Silva a maioria absoluta – e muito menos para ganhar eleições. O então presidente da Câmara de Lisboa, eleito em 1989, tardava em arrancar com os projetos estruturais para a cidade – que se veriam, no entanto, pouco depois – enredando-se em estudos intermináveis e emaranhando-se, ainda por cima, no imbróglio burocrático que provocou os sucessivos atrasos na recuperação do Chiado, zona nobre que ardera, num pavoroso incêndio, três anos antes. E corriam rumores, muitos dos quais confirmados, de que alguns barões socialistas, pressionando uma liderança tida como fraca, tentavam influenciar as listas para candidatos a deputados, no intuito de colocarem as suas clientelas. Mas o atual secretário-geral da ONU negava veementemente, por sua parte, ter exercido qualquer pressão: “Fiz um único pedido ao Sampaio”, ouvi-o dizer, uma bela tarde, perto do Largo do Rato. “Que incluísse nas listas o Jorge Coelho”.
Quem era “o Jorge Coelho”? Eu não me lembrava. O cidadão comum não o conhecia. E poucos jornalistas o identificariam imediatamente. Tinha passado pelo governo de Macau, pela mão de Murteira Nabo (que o apresentara a Guterres) e já fora eleito deputado na V legislatura, em 1987, depois de um percurso político que o trouxera da UDP, na juventude, aos terrenos sociais-democratas da vida adulta. Em 1991, Jorge Sampaio não só não beliscou a maioria de Cavaco como “deixou” que ele a reforçasse. Declarando-se, perante as câmaras da televisão, com ar compungido, “chocado” com os resultados, Guterres lançou, ali mesmo, o seu desafio, iniciando a que seria uma das mais violentas e fraticidas campanhas internas do Partido Socialista. Entre os sub 40 de Guterres, em que emergiam nomes como os de António Vitorino, José Sócrates, António José Seguro, Arons de Carvalho, Carlos Zorrinho, Laurentino Dias, Edite Estrela ou Maria de Belém, a que se juntaria o gamista Armando Vara e o sampaísta António Costa, Jorge Coelho rapidamente se tornou o braço direito em que o novo líder, desde que o conhecera, apostara.
Os jornalistas políticos cedo perceberam, numa primeira impressão que se reforçaria nos anos seguintes, que a origem do crescente poder de Jorge Coelho, para além da sua facilidade nas relações pessoais e no profundo conhecimento qdos militantes socialistas – sim, incluindo os da província -, era o domínio que tinha da informação. Por dentro de tudo, de espírito curioso e indagador, Jorge Coelho detinha um manancial que fazia dele um dos homens mais bem informados do País. Melhor do que isso, na sua relação com o mundo mediático, sabia perfeitamente como captar a atenção de um jornalista, o que interessava e o que não interessava, o que era notícia e o que não era. E esse foi um dos principais trunfos para o domínio da máquina eleitoral que levou Guterres ao poder.
Jorge Coelho tinha um manancial que fazia dele um dos homens mais bem informados do País. E essa era a verdadeira origem do seu poder
Para conhecer o “fenómeno”, lembro-me de ter convidado o deputado, para almoçar, no Restaurante 33, de que ele gostava, e que ficava próximo da redação. Espantou-me o estilo terra-a-terra, muito menos afetado do que o dos políticos de então. E o seu forte sotaque beirão, com alguma simplicidade rústica no discurso, fizeram-me pensar o que diabo terá visto Guterres neste homem. Mas, à hora do café, já pensava com os meus botões: “O tipo é uma máquina”.
O estilo truculento, que usava em comícios partidários, para agarrar a plateia – “quem se mete, com o PS leva!” – era uma fachada populista que escondia um político moderado, dialogante e pró-ativo no diálogo e na resolução de problemas. “E resolvia-os, quer com os sindicatos quer com os empresários”, recordou, esta quarta-feira, Eduardo Marçal Grilo, que com ele privou à mesa do Conselho de Ministros. Graças à informação acumulada e ao domínio dos dossiês, vantagens associadas à relação fácil com o outro e ao sentido do mediático – e ele, consciente das regras do jogo, nunca se queixava quando levava pancada jornalística, coisa rara num dirigente socialista… – foi, nos anos 90, um dos homens mais poderosos do País e, talvez, um dos três ou quatro políticos mais importantes desse período.
Tinha quatro qualidades raras que faziam dele o homem ideal para estar ao lado de um líder partidário: uma, a grande capacidade de trabalho, de organização, de coordenação e de estimular equipas; duas, uma argúcia e intuição políticas excecionais; três, a ligação à terra e ao país real, conhecendo muito bem o que pensava o homem da rua; quatro, last but not least, a sua lealdade: não estava ali para roubar o lugar a ninguém. Apesar de poder ter sido o que quisesse, nunca pensou em disputar as lideranças e prestou serviços a todas – foi, também, o “fabricante” da maioria absoluta de José Sócrates.
A tudo isto poder-se-ia juntar características reveladas na fase final e na fase posterior da sua carreira política ativa: primeiro, o sentido ético demonstrado com a demissão de ministro, na própria noite da queda da Ponte Hintze Ribeiro, ou de Entre-os-Rios. Depois, a sua competência no setor privado (na presidência da Mota Engil, apesar da controvérsia relativa à discussão sobre incompatibilidades, tendo o benefício da dúvida de ter assumido o cargo passado um longo período de nojo após abandonar o Governo) e como empreendedor queijeiro, na sua terra natal, próximo de Mangualde.
Após um jantar com jornalistas, foi “apertado” para revelar se seria ou não Ministro da Administração Interna. Interrogado sobre qual seria a sua primeira medida no MAI, apontou para os carros mal estacionados da Imprensa e disse: “Está tudo multado!”
Do seu sentido de humor tem-se dito praticamente tudo, mas não há nada como citar um exemplo concreto, de uma piada repentista de que fui testemunha. Em 1995, ganhas as eleições e indicado como possível ministro da Administração Interna (afinal, antes disso, começou por ser ministro-Adjunto) chutava para canto, não confirmando nem desmentindo, num jantar com jornalistas, no Chimarrão do Campo Pequeno. À saída do restaurante, para o provocar, alguém ainda lhe perguntou: “Diga lá qual vai ser a sua primeira medida no MAI…” E ele, apontando para os automóveis que vários jornalistas tinham estacionado em cima do passeio: “Estão a ver estes carros aqui? Está tudo multado!”.
A produtora Mandala apanhou-lhe todos os tiques, a inteligência prática, o humor, o desembaraço e a capacidade de mexer os cordelinhos, no boneco mais engraçado do programa Contra-Informação (um “sósia” que Jorge Coelho, no final da série, levaria para casa): o Jorge Coelhone.
A sua demissão do Governo de Guterres foi um marco decisivo na recomposição política que o País viria a sofrer. António Guterres, já de si desanimado pelo que tinha visto em Entre-os-Rios, pediu-lhe “por amor de Deus” (o que é literal, tratando-se Guterres de um católico…) que se mantivesse no Governo. E usou todos os argumentos, puxando ao sentimento: “É um projeto em que estamos juntos, não me abandones agora”. Mas a decisão estava tomada. E Guterres entrou numa espiral depressiva, desinteressado da governação, agora desasado do braço direito que lhe resolvia as coisas. E só esperava um pretexto para abandonar o pântano. A derrota nas autárquicas de 2001 deu-lhe esse pretexto.
O resto é a História conhecida. Podia ter sido diferente, mas não era a mesma coisa.