A discussão do Orçamento do Estado (OE) para 2020 é daquelas histórias que se contam de uma só penada. No fundo, todos sabem, especialmente António Costa, que a proposta de lei do Governo tem, esta sexta-feira, 10, a aprovação assegurada – graças às abstenções de BE, PCP, PAN e deputados do PSD-Madeira – e, portanto, o confronto parlamentar pouco mais será do que um mero formalismo. Talvez por isso, tenha sido tão notório o à-vontade do primeiro-ministro na primeira parte do debate que arrancou esta tarde, mesmo quando da esquerda veio fogo amigo sobre o excedente orçamental (e de como se reflete nos serviços públicos) e da direita foi disparado, insistentemente, o argumento de que nunca a carga fiscal esteve tão alta.
António Costa chegou ao debate com a estratégia de antecipação preparada. Consciente de que a esquerda que lhe garantirá a aprovação do Orçamento do Estado na generalidade ia insistir numa tecla – a opção pelo excedente orçamental de quase 600 milhões de euros em detrimento da aposta no investimento –, o primeiro-ministro avançou com o argumento de que, primeiro, esse excedente acontece apesar do reforço das prestações sociais e do investimento em serviços públicos, dos salários, da coesão territorial e justiça – portanto, em “todas, sem exceção, as áreas de governação”; segundo, esse mesmo excedente que a esquerda diz funcionar como um sufoco da economia é a salvaguarda contra um eventual “novo ciclo económico” que venha a exigir uma “política anti-cíclica”, ou seja, mais investimento público.
“Não”, disse Costa logo na intervenção inicial, “não se trata de imposições da União Europeia, trata-se do dever que nos impomos de preparar o futuro e garantir que os portugueses não voltam a ter de suportar o peso da dívida económica e financeira que deixou marcas profundas”.
A ideia que Costa tentou passar é a de que a responsabilidade governativa impõe que se acautelem medidas preventivas para um futuro incerto. “Não é uma obsessão, é uma opção”, atirou. E, à boleia desse ponto, fez questão de repetir no Parlamento, onde o Orçamento do Estado segue para a especialidade: “Este é o melhor dos cinco Orçamentos do Estado que já apresentei a este Parlamento.”
“É o melhor porque vai além da reposição de rendimentos, acrescenta rendimentos ao já reposto; é o melhor porque vai além dos cortes no investimento, aumentando investimento ao recuperado na anterior legislatura; é o melhor porque vai além da repressão do enorme aumento de impostos; é o melhor porque vai além da redução do défice. Este é mesmo o melhor Orçamento que tive oportunidade de apresentar”, arrancou Costa.
O recado estava dado, era hora de piscar o olho aos “parceiros” com os quais garante continuar a contar nos próximos quatro anos, mesmo que já não haja acordos escritos. É que este Orçamento também é o melhor que já apresentou porque herda o trabalho da anterior legislatura e porque dá resposta às “preocupações” manifestadas pelos partidos à sua esquerda, a que se junta o PAN. Trabalho concluído? Ainda não. “Porque uma melhor proposta não deixa de poder ainda ser melhorada no trabalho de apreciação parlamentar” que se segue na especialidade.
Esquerda viabiliza, mas promete luta
Bloco e PCP ouviram, registaram, mas não quiseram deixar a resposta para mais tarde. Catarina Martins referiu-se, aliás, àquilo que diz ser um Orçamento de “mínimos”, e voltou a defender que, nas eleições de 6 de outubro, o PS conseguiu um “mandato popular para procurar entendimentos”. Numa ideia, os vários pontos de acordo que os dois partidos alcançaram já esta quinta-feira são, por isso, apenas um “primeiro passo” – Costa acabaria, logo a seguir, por reconhecer os méritos do Bloco que levaram a que o Governo abrisse a porta à redução do IVA na luz e revisse as regras para atribuição do Complemento Solidário para Idosos.
A coordenadora do Bloco de Esquerda considerou ainda que os números atirados para cima da mesa pelo Governo são ainda “insuficientes” para as atuais necessidades do país, a começar pela Saúde. “O esforço” de mais quase mil milhões de euros de investimento no setor – que o Bloco reclama como sendo uma conquista sua – “é importante, mas não aumenta o peso do SNS no PIB nem chega para financiar todos os investimentos que são considerados necessários”.
O PCP foi o primeiro dos antigos parceiros a matar o suspense em torno da votação de sexta-feira. Pela voz do líder parlamentar comunista, João Oliveira, ficou a saber-se que, apesar de todas as reservas com que olham para a proposta do Governo, os deputados do PCP dariam o primeiro passo para a viabilização do documento na generalidade. Mas isso, ficou claro no arranque do debate sobre o Orçamento, não faz baixar o tom das críticas.
Desde logo, em relação ao suspeito do costume. Costa garante que não por submissão a Bruxelas que quer reservar uma folga de 600 milhões de euros nas contas deste ano, Jerónimo responde com metáforas. “Chamemos-lhe um pífaro, se quiser, mas que há imposições, há, é uma realidade incontornável”, defendeu o secretário-geral comunista.
“Não estamos na política de terra queimada dos Programa de Estabilidade e Crescimento e atos da troika, [também] mas não estamos perante uma resposta plena aos problema do país”, insistiu Jerónimo, que questiona a ideia de continuidade face aos orçamentos anteriores. Depois da gratuitidade dos manuais escolares, do aumento de pensões e reformas e da redução das tarifas nos passes sociais, agora há um vazio. “Não encontramos nesta proposta de orçamento algo de comparável com o avanços destas medidas”, notou.
O orçamento para 2020 é a solução que faltava? Costa reconhece que o documento “não resolve todos os problemas”, tal como os anteriores não resolveram. Mas, como fez com o Bloco, sublinha o “contributo” do PCP no virar da página da austeridade e desafia os comunistas a ir a jogo para “melhorar” o que existe. “Enquanto houver caminho para andar, temos um dever que é continuar a andar e seguir o rumo que começámos em 2016”, atira, a fechar, o primeiro-ministro.
Ainda sem sentido de voto anunciado para a votação na generalidade – sendo que o voto já não será determinante para esse desfecho – , a deputada única do Livre centrou a sua intervenção no Salário Mínimo Nacional. Joacine Katar Moreira considera que “este não é minimamente um Orçamento do Estado de um partido oficialmente de esquerda, com uma ótica de esquerda” e, inclusive, “desilude quando o aumento do Salário Mínimo Nacional não dignifica os trabalhadores”. O ponto de partida dessa discussão deve ser, para o Livre, os 750 euros. O objetivo são os 900 euros em 2023.
Costa lembrou que o SMN não é determinado pelo Orçamento mas ainda concedeu que, “em matéria de Administração Pública, vamos ter seguramente um aumento de vencimentos que os colocará acima do salário mínimo nacional”.
O orçamento-avestruz e o Wally
O porta-voz do PAN, André Silva, estabeleceu um paralelismo curioso, falando da proposta como o “Orçamento-avestruz” por ignorar vários problemas nacionais, desde logo por “falta de coragem de afrontar alguns interesses” e “setores que se julgam intocáveis”. Elencando algumas iniciativas que gostaria de ver consagradas no OE – das verbas para o Fundo Ambiental, ao IVA da eletricidade ou à revisão dos escalões de IRS -, adiantou que esse “pacote de propostas” poderá determinar o sentido de voto final. O recado foi claro: caso não haja “sinais de convergência” com o caminho do PAN, sobretudo no combate às alterações climáticas, o documento “não pode merecer a nossa aprovação”.
A direita, essa, voltou a aparecer algo perdida no debate, fruto das suas próprias circunstâncias – PSD e CDS elegem novos líderes nas próximas semanas – e também da nova geometria parlamentar em que ao PS bastam abstenções “violentas” dos antigos parceiros da geringonça para ter os principais instrumentos da governação viabilizados. Rui Rio deu o mote. O líder parlamentar do PSD contrariou a tese de Costa de que este era o melhor Orçamento dos cinco que já apresentara aos deputados. “Não é o melhor nem é o pior. É um Orçamento de continuidade”, condenando o aumento da carga fiscal em 0,2% do PIB, ou seja, 434 milhões de euros em impostos e contribuições.
E o líder social-democrata prosseguiu: “Se comparamos a proposta de Orçamento para 2018 com esta, aí o aumento da carga fiscal é de 0,8% do PIB”. Por isso, Rio não aceita que os socialistas tenham torpedeado o “brutal aumento de impostos” do período da troika, quando, desde que governam, tenham feito um “aumento maior do que aquele que criticaram”.
Sem apelar a inversões drásticas, pediu, no entanto, que “todos os anos se retir um bocadinho” do peso fiscal aos ombros dos portugueses e advogou que o Orçamento deveria trazer mais incentivos às Pequenas e Médias Empresas e à poupança. A finalizar Rio introduziu Wally no debate. A personagem foi uma metáfora para os 590 milhões de euros que a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) prevê que nunca sejam descativados. Sugeriu que o mecanismo é pouco transparente e mostrou-se “convencido” de que Centeno até Costa “enganou”.
O primeiro-ministro não fugiu ao guião que utilizou para ripostar a toda a direita: a carga fiscal não aumentou, mas, ao invés, resulta apenas do aumento das contribuições, fruto do aumento do emprego. Quanto aos misteriosos 590 milhões, foi contundente: “Num Orçamento em que o conjunto da despesa vale 96 918 milhões de euros, a sua preocupação ser 0,6% desta despesa diz tudo sobre as suas críticas a este Orçamento.”
Pelo CDS, Cecília Meireles tratou de vincular toda a esquerda à proposta de lei do Executivo ao salientar que, “para esta nova geringonça”, o voto a favor dá agora pelo nome de abstenção. Ladeada por Assunção Cristas, a chefe da bancada centrista lamentou que a diminuição dos impostos não seja “uma prioridade” e fundamentou: “O Governo pretende arrecadar 35 vezes mais de impostos do que pretende devolver em IRS às famílias portuguesas”, dando, de seguida, exemplos da discrepância entre a “propaganda” do Governo e a realidade.
De caminho, condenou a criação de um gabinete de segurança na saúde e atirou-se à ideia de dar aulas de autodefesa aos profissionais do SNS. Uma medida “gravíssima”, observou.
Costa não se alongou, mas referiu que PS e CDS não comungam da mesma visão sobre impostos. Entre a redução de impostos e a melhoria dos serviços públicos, disse o primeiro-ministro, prefere a segunda hipótese.
Ao seu estilo, André Ventura, presidente e deputado único do Chega, também carregou na tecla da carga fiscal – usando o ceticismo de Bruxelas como escudo – e questionou Costa sobre “se é ou não verdade que o Orçamento retira competências ao Tribunal de Contas [TdC]” e se “o incumprimento do Estado, com as famílias e com as empresas, vai continuar”. O líder do Executivo ironizou afirmando que Centeno “tem acertado sempre”, ao contrário das instituições europeias e assegurou que a eliminação do visto prévio do TdC em algumas obras servirá apenas para “agilizar” os processos e responsabilizar “quem executa essas despesas.
Já o presidente e deputado da Iniciativa Liberal, João Cotrim de Figueiredo, notou estar de acordo com a redução da dívida pública, ainda que foi partidário de outra via, mas disse que o excedente orçamental deveria “ser devolvido aos portugueses”. Fiel à cartilha de redução do peso do Estado na economia, vincou que nos dois anos de geringonça em que os impostos foram mais baixos o País cresceu mais e desafiou Costa a clarificar se “nos próximos anos” Portugal “vai crescer mais em impostos”.
O primeiro-ministro recusou embarcar no “pensamento mágico” de que menos impostos significam mais crescimento, mas lá repetiu que este ano serão pagos pelas famílias “menos 50 milhões de euros de IRS” e pelas PME “menos 60 milhões de euros” em IRC.