Imagine-se num jantar com dezenas de convidados em que nem todos se conhecem. Entusiasmado com o repasto, um dos presentes excede-se e ingere mais vinho do que seria aconselhável. Apesar de a ocasião exigir formalismo, o conviva ignora os manuais de etiqueta, resvala para a má educação e provoca desconforto aos demais. Segundo os escritos do politólogo paraguaio Benjamin Arditi, o bêbedo poderá chamar-se “populismo”. Contudo, o próprio investigador da Universidade Nacional Autónoma do México deixa a dúvida no ar: não poderá esse mesmo convidado estar a dizer, sem filtros nem pudores, as verdades que as democracias e os democratas teimam em ignorar?
Para os populistas, essa resposta é tão evidente como qualquer outra que tenham de dar, mesmo quando os problemas impõem intervenções complexas: só eles são a resposta à degeneração dos regimes que consideram cada vez mais distantes do princípio da soberania popular. Eles sentem o pulsar do povo. Ou, melhor, eles são o povo. E, por entenderem que se trata de uma espécie de direito natural, só eles estão autorizados a falar em nome do povo e em defesa dos seus interesses, contra as elites políticas, económicas e culturais, corruptas e preocupadas em servir-se do Estado.
À primeira vista, o populista parece ser um de nós, independentemente das condições socioeconómicas em que tenha nascido ou da maior parte do seu percurso. Basta-lhe perceber aquele que é o pensamento dominante na sociedade para, depois, navegar ao sabor da lógica maioritária, mesmo que isso implique a denegação do princípio liberal do respeito pelas minorias.
O espetro populista que paira sobre o mundo radica nas emoções mais básicas das massas – da frustração, do ressentimento e do medo até ao orgulho, à inveja e à intolerância. Foi assim que os norte-americanos em 2016 elegeram um presidente que pouco mais prometeu do que tornar o país outra vez grande (resgatando da campanha de 1980 de Ronald Reagan a expressão Make America Great Again), fosse através de políticas xenófobas e anti-imigração, fosse pela via de medidas protecionistas, fosse pela afirmação de um posicionamento belicista no plano internacional.
De igual modo, em 2013, os venezuelanos foram às urnas premiar Nicolás Maduro, que se afirmava como o legítimo herdeiro de Hugo Chávez e, por isso, o representante na Terra do sonho bolivariano por cumprir. Desde então, a crise agudizou-se, a pobreza alastrou, a emigração disparou, foram ensaiadas várias tentativas de deposição do presidente, mas este tem avisado que vai usar “punho de ferro” contra todos os que atentarem contra si.
No dia 28 de outubro, mais um homem que se arvora em salvador do regime – e até promete “uma limpeza nunca vista” aos seus opositores – foi promovido ao mais alto cargo de uma nação. Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), foi eleito presidente do Brasil, depois de uma campanha em que se limitou a agitar duas bandeiras: um combate sem quartel à corrupção (segundo ele, personificada pelo adversário, Fernando Haddad) e tolerância zero para a criminalidade. E, claro, uma miríade de fake news difundidas na internet e amplificadas pela iliteracia militante que grassa nas redes sociais.
O oásis do sul
Em Portugal, têm existido, episodicamente, fenómenos populistas, ainda que sem grande expressão nacional. Alguns dos chamados dinossauros autárquicos impuseram a sua lei com base em discursos simplistas em que quem não está com o líder está contra ele ou, por outro lado, apontando baterias contra o poder central (ou inimigos terceiros) e, ainda, pela via de promessas eleitorais que, posteriormente, viriam a revelar-se desastrosas.
O tubo de ensaio de populismos em Portugal demonstra, aliás, o ceticismo e a desconfiança dos portugueses face ao fenómeno. Da mesma forma que o nacionalismo e o protecionismo propostos por Manuel Monteiro para o CDS-PP não tiveram grande adesão na década de 1990, também não vingou, em 2015, a demagogia frenética de António Marinho Pinto. O ex-bastonário da Ordem dos Advogados até tinha obtido um score simpático (7,1%) nas europeias do ano anterior (em que fora eleito para o Parlamento Europeu como cabeça de lista do MPT), mas quando rompeu com o Partido da Terra e fundou o seu PDR não conseguiu qualquer assento na Assembleia da República.
Seja como for, impõem-se algumas questões. Por cá, estão reunidas as condições para surgir algum partido de índole populista? Que pretextos poderia ter para ganhar espaço e adesão popular? O que devem as forças tradicionais fazer para combater esse fenómeno? Que mecanismos legais podem ser acionados para pôr um freio no populismo e noutros “ismos” (que costumam estar-lhe associados)?
Hanspeter Kriesi, que há muito tem refletido e publicado sobre o assunto, deposita a maior parcela de responsabilidade no lado dos eleitos. Apesar de aquilo que designa por “crise de representação política” assumir “diferentes formas” nas várias latitudes europeias, salienta que nos países da Europa do Norte e Ocidental – veja-se o Reino Unido, França, a Alemanha ou a Holanda – o quadro resulta da “convergência dos partidos mainstream no que respeita aos temas económicos”, do seu “alheamento” face aos problemas quotidianos das pessoas e de uma certa “negligência em novos conflitos estruturais relacionados com a abertura dos Estados-nação”, seja em termos culturais (multiculturalismo), políticos (integração europeia) e económicos (internacionalização dos mercados financeiros e deslocalização dos meios de produção para países com mão de obra barata).
Em resposta à VISÃO, o docente suíço do Instituto Universitário Europeu enfatiza que o distanciamento entre representantes e representados se deve maioritariamente à “crise económica global e às crises políticas internas que decorreram dessa crise”. Ao contrário do Norte e do Centro do continente, onde os fenómenos populistas encontraram acolhimento em movimentos da direita nacionalista e da extrema-direita, os populistas do Sul “proliferam, acima de tudo, na esquerda radical” – como no Podemos, de Espanha, ou no Syriza, da Grécia. A “exceção”, assinala, é Itália, onde estes “se situam mais ao centro”, como o Movimento 5 Estrelas (antissistema e defensor da democracia direta), e “à direita”, como a Liga Norte (eurocética, anti-imigração e antiglobalização), do agora ministro do Interior, Matteo Salvini, “que beneficiou enormemente da crise de refugiados”.
A austeridade como rastilho
Apesar de os anos de chumbo da Troika terem sido ultrapassados, Viriato Soromenho-Marques é cauteloso nas justificações que dá à VISÃO e observa que o populismo “enquanto fenómeno está em aberto” também em Portugal. “Não ter acontecido não significa que não venha a acontecer”, alerta.
Uma das causas que identifica para que não se enraíze no nosso sistema político e ganhe lastro no tecido social prende-se com “a capacidade de reinvenção dos partidos tradicionais”. “O Bloco de Esquerda é um partido novo”, tendo federado eleitores de esquerda que não se sentiam representados pelo PS nem pelo PCP. E à direita, sustenta, “tanto o PSD como o CDS estão longe de ser partidos estabilizados”. Os sociais-democratas “dependem muito dos líderes e de estarem no poder”, ao passo que os centristas “estão habituados a lideranças carismáticas, sobretudo com Paulo Portas, mas também com Assunção Cristas”.
Além disso, o sociólogo destaca que o programa de assistência económica e financeira deixou o País mergulhado em “paralisia coletiva”: “As pessoas ficaram conformadas com a crise, interiorizaram o discurso de que vivemos acima das nossas possibilidades e sentiram-se culpadas pelo estado a que chegámos.” Essa penitência autoimposta – Kriesi também condena a convergência europeia “em soluções económicas tecnocráticas”, como a conhecida “TINA – There Is No Alternative [Não há alternativa]” – impediu a construção de “uma narrativa convincente” para qualquer populista e travou “a busca de um culpado pela falha do sistema”. Diferente, complementa, teria sido o cenário “se o PS tivesse administrado a crise e o programa da Troika”. “Aí poderia ter acontecido alguma coisa”, sintetiza.
Soromenho-Marques assinala que “houve países que enfrentaram a crise sem intervenção externa”, como a Finlândia (cujo PIB regrediu perto de 10%), onde o clima foi mais propício à eclosão de movimentos radicais. Em Portugal, no entanto, elogia o papel do governo de Pedro Passos Coelho, que assegurou que “a austeridade foi praticada de maneira a que as classes mais pobres, mesmo tendo sido penalizadas, tenham sido protegidas”. “Houve essa preocupação”, atira, antes de vincar que “cá um discurso demagógico, à Salvini, não teria hipótese”.
E se Ronaldo quebrasse a partidocracia?
Para o politólogo José Adelino Maltez, o rótulo do populismo tem sido utilizado de forma abusiva e “não pode ser visto com os olhos da Europa Central”. “O discurso dominante, em Portugal, é chamar populismo àqueles que não são os donos do poder. Portugal tem, há mais de 40 anos, dois partidos que partem e repartem o poder, que assumem quase 80% dos lugares autárquicos e que, de vez em quando, são ameaçados por um outsider, e uma das formas clássicas que têm de matar experiências é dizer ‘Vêm aí populistas!’ ou ‘Vêm aí fascistas!’”, critica, em declarações à VISÃO.
De caminho, o docente universitário ironiza acerca daquilo que designa por “perfume balsemânico do Bloco Central”: “O País está satisfeitíssimo: sai-se do PSD, entra-se no PS… Não há opinião crítica. Isto é um neofeudalismo entre quem está no governo e os outros todos que não deixam criar uma onda de oposição.” Na ótica de Maltez, existe um “duopólio do poder”, dado que PS e PSD “sabem manter esse domínio” desde a revolução de 1974. “A culpa é dos outros! A Igreja Católica deixou de ter intervenção política há décadas, a Maçonaria é aquilo que sabemos, não há forças da sociedade civil”, resigna-se.
Ainda para mais, prossegue, “não temos nenhum partido parlamentar que não tenha estado no governo ou não tenha assinado um contrato para formar um governo”. “Todos são partidos de poder”, resume, indo ao encontro da tese da “solução que não estava nos livros” veiculada por Soromenho-Marques, que vislumbra na Geringonça a virtude de ter travado ímpetos extremistas.
Em Portugal, advoga Maltez, o populismo só teria hipóteses de prosperar caso aparecesse “alguém que não precisasse de autorização do sistema partidário para entrar”. Como “um grande empresário que decidisse criar um movimento” e, além disso, “tivesse poder na comunicação social”. “Belmiro de Azevedo nunca quis”, exemplifica. Sobraria, portanto, “um grande futebolista”. “Não é o André Ventura, teria de ser o [Cristiano] Ronaldo”, uma vez que “os portugueses fazem do futebol o seu civismo”.
Maltez equipara o País a “uma estufa”, onde “não há sinais sociológicos” de que algum populista possa brotar. “O que temos é muitos caça-fascistas, tipos que andam sempre à procura de um fascista”, graceja. António Costa e Rui Rio, refere, “conhecem bem a sociologia eleitoral portuguesa”, motivo pelo qual não se deixam assustar – bem pelo contrário – perante o aparecimento de movimentos como o Chega, encabeçado por Ventura.
Quanto a Trump e Bolsonaro (ao qual chama “capitão lateiro que encabeça uma frustração coletiva”), o politólogo distancia-se das análises anteriores e recusa classificá-los como “movimentos regressivos da democracia”. “Estão muito à frente, são futuros cenários da nossa democracia, mas por outra coisa, que é a utilização dos metadados, que alguns reduzem a fake news. São formas novas de uma democracia que tem engenheiros ocultos e percebe onde estão os líderes de opinião. Portugal, felizmente, não tem nada destas coisas. Em troca, temos um sistema completamente reacionário, contrário a todos os modelos europeus”, nota Maltez.
A lei tolera intolerantes?
Se, de momento, poucos acreditam que forças populistas irrompam e contrariem o adágio de que o povo é sereno, não é menos verdade que o combate à corrupção se afigura como principal agitador das massas. Com um ex-primeiro-ministro socialista, José Sócrates, o antigo banqueiro do regime, Ricardo Salgado, e o maior clube de futebol do País, o Benfica, a braços com a Justiça, alguns setores da direita utilizaram a nomeação da procuradora-geral da República para surfar a onda do justicialismo – sem efeito, porém.
Sobra, assim, a agenda de Ventura e do partido que pretende formar, o Chega, que, garante à VISÃO, estará “integrado na direita democrática”, embora, “encarne valores mais radicais”, como a prisão perpétua para homicidas, a castração química de pedófilos ou o trabalho obrigatório para presidiários. O ex-vereador de Loures assegura que não se revê em Trump ou Bolsonaro e refuta as críticas de que promova o ódio ou a discriminação: “Não será uma direita à americana, nem à brasileira, nem à italiana, será uma direita à moda portuguesa!”
O comentador assume que tem lido pessoas a advogar que o Tribunal Constitucional (TC) não deve aceitar a formalização do partido, mas considera que isso seria “um erro que a democracia pagaria caro”. “Nada seria menos democrático”, entende, apontando como exemplos a legalização do PNR e do PCTP/MRPP. Sendo vetado, avisa que recorrerá às instâncias europeias, porque tudo não passaria de “medo eleitoral”.
Ouvido pela VISÃO, o constitucionalista Paulo Otero considera que “não há fundamento material” para o TC recusar a formalização de um partido populista ou radical, desde que este não seja de natureza fascista. “A Constituição apenas proíbe partidos que perfilhem a ideologia fascista. Até é duvidosa a democraticidade de uma Constituição democrática proibir partidos em função de uma ideologia. Só as circunstâncias históricas que estão na génese da Constituição justificam essa norma, que, a meu ver, limita a liberdade de expressão. Sendo uma norma excecional, deve ser interpretada restritivamente, ou seja, não é possível ampliá-la a outro tipo de partidos”, fundamenta. Mesmo que Ventura advogue que não venha “nem mais um refugiado para Portugal” ou que afirme que a comunidade cigana é subsidiodependente, “nada na Constituição impede” a formação do Chega. E pede ponderação aos juízes do Palácio Ratton, perante a pressão pública que venha a ser exercida para chumbarem a nova força: “O TC até pode ter essa tentação, mas o mérito está em resistir.”
Sem aludir a este caso concreto, um ex-ministro do PSD, Miguel Poiares Maduro, avisava há pouco tempo, nas páginas do Jornal de Notícias que “o populismo, partindo da democracia, acaba por a destruir”.