Alfredo da Silva nasceu em Lisboa, em 1871, numa família abastada da capital. Em jovem, foi estudar para França, até que a morte do pai, em 1885, o obrigou a regressar a Portugal. Alfredo da Silva e os irmãos receberam uma herança em bens sólidos: prédios, terras e acções das grandes companhias da época (do Gás, dos Caminhos-de-Ferro, do Crédito Predial e do Banco Lusitano). Dado que um tio seu morrera sem descendentes, a firma Silva e Irmão passou integralmente para este ramo da família. (…)
Aos 22 anos, Alfredo da Silva era já suficientemente famoso para que a Carris, de que a mãe era accionista, o convidasse para director. Foi ali que conheceu o conde de Burnay, a quem conseguiu convencer das vantagens da fusão da União Fabril, que pertencia àquele, com a sua, e mais pequena, Aliança Fabril. Foi assim que, em 1898, nasceu a CUF. (…)
“A arte monopolista” de Alfredo da Silva, como se lhe referiria, em 1935, o sociólogo Paul Descamps, cedo começou a dar frutos. Verificando que os resíduos do óleo de purgueira, matéria-prima que utilizava no fabrico dos sabões, forneciam um óptimo adubo, Alfredo da Silva lançou-se na sua produção, em que, desde a promulgação da lei dos cereais, em 1889, se abriam boas perspectivas. A certa altura, Cabo Verde, onde a CUF costumava abastecer-se, já não conseguia fornecer as quantidades de que a empresa carecia, tendo Alfredo da Silva recorrido à Guiné e a Angola.
Nos finais do século XIX, a lavoura alentejana estava a consumir quantidades crescentes de adubo. Tendo começado por o importar, Alfredo da Silva passou a dedicar-se à sua produção no Barreiro, uma vila estrategicamente situada à beira do caminho-de-ferro que penetrava no interior alentejano. (…)
Em 1908, o Barreiro, uma vilória rural da Outra Banda, assistira à inauguração de uma fábrica de ácido sulfúrico, a primeira unidade de um aglomerado que chegou até aos nossos dias como o símbolo da CUF. Esta obra, a que inicialmente estiveram associados Henri Burnay e Martin Weinstein, acabou por ficar sobretudo ligada ao nome de Alfredo da Silva. A vila cresceu durante a Primeira Guerra Mundial e nos anos que imediatamente lhe sucederam. Em 1917, a CUF empregava dois mil operários. Treze anos depois, já ali trabalhavam 16 mil, o que a tornou a maior empresa da Península Ibérica.
Política e exílio
O esboroamento do constitucionalismo monárquico, a que assistira em jovem, levou-o a desprezar os partidos, incluindo o Regenerador, que merecera as simpatias de seu pai. Em 1901, foi um dos primeiros a apoiar a cisão de João Franco. Durante algum tempo foi deputado franquista. Em 1906, acompanhou Franco em várias tournées de propaganda, tendo estado presente na mais célebre de todas, em Alcântara, quando, de pistola em punho, defendeu o primeiro-ministro dos ataques dos populares. (…)
Em Outubro de 1918, o governo declarava o estado de emergência. Inicialmente, todos os que haviam sido excluídos pelo PRP apoiaram Sidónio Pais. Com ele, estavam não só os “heróis” do 5 de Outubro, Machado Santos e José Carlos Maia, mas gente variada, incluindo Alfredo da Silva, o qual viria a aceitar fazer parte do Senado, tendo em várias ocasiões discursado no Parlamento. Na noite de 14 de Dezembro de 1918, Sidónio Pais era assassinado na estação do Rossio por um militante do PRP. Meses depois, no Porto, tinha lugar uma insurreição monárquica: durou 25 dias.
Como não podia deixar de ser, a situação económica e as movimentações políticas reflectiram-se na vida da CUF. Em Abril de 1919, ao lado de outros, os trabalhadores da empresa paralisavam. Directamente envolvido nas lutas político-sociais, Alfredo da Silva foi objecto de dois atentados (em 18 de Julho e em 6 de Novembro de 1919), de que sairia ileso. Tomou então a decisão de se exilar, fixando a sua residência em Madrid.
Antes de partir, concebera a estratégia para consolidar e expandir o seu império. O plano consistia em concentrar toda a actividade fabril da CUF no Barreiro, desanexando do complexo tudo o que não fosse puramente industrial. É assim que, sob a denominação de Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lda., fora constituída, em 15 de Julho de 1919, uma sociedade por quotas que albergava quaisquer tipo de estabelecimentos, agências e sucursais. (…)
Instalado no Hotel Ritz de Madrid, montou um escritório, de onde comandava os seus negócios. O número de unidades marítimas que a Sociedade Geral adquiriu em Inglaterra, em Portugal, em Espanha, na Alemanha e na Holanda ia em crescendo. Habituado a um ritmo de trabalho intenso, Alfredo da Silva suportava mal a vida morna de um hotel. Apesar de, em várias ocasiões, o seu genro, Manuel de Mello, se ter deslocado de Lisboa a Madrid para com ele debater os problemas da CUF, sentia-se infeliz. (…)
Em várias ocasiões, Alfredo da Silva declarou que os seus negócios corriam mal, não devido ao estado de Portugal, mas por ele não estar presente onde devia: “A CUF precisa de mim. Com um mês de Lisboa, tudo muda de aspecto.” (…)
Finalmente, na Primavera de 1927, regressou. Na Assembleia-Geral da CUF, de 21 de Abril desse ano, já estava de novo a mandar em toda a gente. Manuel de Mello, que ganhara alguma autonomia dentro da empresa, teria, a partir de agora, de manter um perfil baixo. Tinha 32 anos e a vida, pensou, à sua frente. Aliás, o período de crise que o país e o grupo económico atravessavam aproximou-os. (…)
O “Salvador” chegou, em 1928, na pessoa de Salazar. O Estado Novo viria a satisfazer muitas das reivindicações dos patrões, do condicionamento industrial à legislação que proibia as greves. Alfredo da Silva aplaudiu entusiasticamente o novo regime, tendo até aceitado, em 1934, um lugar na Câmara Corporativa. Consolidado o sistema político, passou a dedicar-se, em exclusivo, aos seus negócios, cada vez mais prósperos após a aprovação dos decretos relativos à Campanha do Trigo.
Apesar de apoiar a maior parte das medidas aprovadas, nem sempre as suas relações com Salazar foram simples. Ele não apreciava que alguém interferisse na gestão da CUF e Salazar não gostava de quem lhe fizesse frente. Aliás, as ideias de ambos sobre o futuro do país eram opostas. Alfredo da Silva desejava instalar as indústrias por ele consideradas como essenciais, Salazar fugia da modernização como o diabo da cruz. (…)
Em 5 de Agosto de 1942, pouco antes de morrer, Alfredo da Silva ainda conseguiu estar presente na reunião do Conselho de Administração da CUF. Preocupava-o a falta de matérias-primas provocada pela guerra, uma vez que “não queria que nenhum dos seus operários fosse dispensado”. Como seria de prever, deixou instruções minuciosas no caso de em breve vir a morrer. Declarava que os operários não deveriam fazer um dia de luto pela sua morte, devendo continuar a trabalhar: “A laboração não deveria cessar em sinal de luto, mas apenas dada tolerância de ponto ao pessoal que o quisesse acompanhar à última morada.” (…)
O genro Manuel…
Apesar do longo estágio que fizera junto do sogro, era evidente que, sob a direcção de Manuel de Mello, a CUF iria ser diferente. Este herdara o motto da família – “Os Mello falam pouco” – pelo que sempre pretendeu resolver os conflitos de forma serena. Na família aristocrática (os Sabugosa) a que pertencia, os arrebatamentos de Alfredo da Silva não eram bem vistos. A visão que o sogro tinha do mundo era burguesa, urbana, industrial; a de Manuel de Mello, fidalga, bucólica e paternalista.
Alfredo da Silva deixava atrás de si um império. Não só montara a partir do nada a indústria química como adquirira, na banca, nos seguros, no comércio colonial, na navegação, na indústria, uma posição invejável. A CUF absorvera tudo o que estava nas suas fronteiras, da construção naval à celulose, do têxtil à metalomecânica, das moagens ao sulfato de cobre. Num país em que muita gente pensava que a indústria se deveria manter artesanal, os seus actos devem ter parecido a obra de um excêntrico.
Sobre a vida privada de Alfredo da Silva sabe-se pouco. Em 1894, casara-se com Maria Cristina Dias de Oliveira, de quem teria uma única filha. Ainda novo, instalara-se no belo palácio que os donos de uma metalurgia lisboeta, os Colares, tinham construído no Alto de Santa Catarina. Mandaria ainda edificar, no Monte Estoril, o palacete em estilo D. João V que ainda ali existe, tendo depois comprado uma quinta pombalina em Sintra. Como qualquer burguês que se prezasse, tinha uma amante francesa. Nas suas Memórias, Joaquim Paço d’Arcos relata um encontro que tivera, em 1933, num comboio, quando Alfredo da Silva se fazia acompanhar por uma senhora com dois cães pekinois ao colo.
Não me parece que o industrial fosse atreito a snobeiras aristocráticas, mas na sociedade portuguesa era bom estar relacionado com membros da aristocracia, e Manuel de Mello, o noivo escolhido para a filha, era descendente dos marqueses de Sabugosa. Além disso, a fim de o treinar nos negócios, Alfredo da Silva sentia que precisava de um sucessor masculino que com ele trabalhasse. Terá ainda imaginado que, descendendo aquele, pelo lado materno, da família Lima Mayer – que pertencia à alta burguesia lisboeta – dela poderia ter herdado alguns valores modernos.
Manuel Augusto José de Mello nascera na Quinta Velha, em Sintra, em 26 de Julho de 1895. Durante a infância, ali viveu, após ter deixado Lisboa, onde, no final da Rua do Salitre, se erguia o palacete mandado construir pela família. Depois de ter frequentado um liceu em Lisboa, o pai decidiu mandá-lo, juntamente com os seus outros dois filhos, para a Suíça, a fim de prosseguirem estudos, mas os resultados de Manuel não foram brilhantes, tendo acabado por desistir do curso. Em 1915, devido à Primeira Guerra Mundial, o pai mandou os filhos regressar ao país e, dois anos depois, Manuel era recrutado para a tropa. Foi durante este período que as duas famílias começaram a planear o casamento de Amélia Silva com Manuel de Mello. Em Janeiro de 1918, Manuel, que estava na frente da batalha em França, correspondeu-se com a menina. O namoro prolongou-se por dois anos.
Alfredo da Silva preparou cuidadosamente a entrada do genro na empresa. Como não era homem para esconder sentimentos, a certa altura perguntou-lhe se ele estava disposto a casar-se também com a CUF. (…)
Quer internacional quer nacionalmente, o período que se segue à morte de Alfredo da Silva foi bastante agitado. (…) A continuada escassez de alimentos convidava à insurreição, o que levou a que, durante uns meses, e apesar da forte repressão do governo, as greves se sucedessem. (…)
Depois do fim da guerra, o grupo iniciou um processo de transformação tecnológica, tendo em vista prosseguir a diversificação da sua produção. Em 1947, Manuel de Mello associava-se a outros na fundação da Soponata (Sociedade Portuguesa de Navios Tanques). A navegação aérea começava igualmente a interessar-lhe, mas esta iniciativa demorou muitos anos a concretizar-se: a TAP, em cuja lista de sócios fundadores aparece o seu nome, só nasceria em 1953.
… e o neto Jorge
Em Junho de 1948, os estatutos da CUF foram reformados de modo que Jorge de Mello, então com 27 anos, pudesse ocupar o lugar de vogal do Conselho de Administração. Cinco anos depois, chegava a vez do irmão José Manuel. O primeiro ficaria ligado aos ramos químicos, o segundo aos sectores financeiros e de construção e reparação naval. (…)
Por vezes, a interferência do Estado no quotidiano das empresas irritava aqueles que, em última análise, dela beneficiavam. Para só citar um caso, veja-se a fúria de Manuel de Mello, e sobretudo de seu filho Jorge, quando, em Maio de 1954, o então ministro das Corporações, Soares da Fonseca, decidiu castigar os operários da fábrica Sol, uma empresa têxtil que pertencia à CUF, por terem faltado durante o 1º de Maio, coisa que a direcção tinha autorizado. Segundo o relato que o ministro enviou a Salazar, Manuel de Mello sentira-se tocado no seu “prestígio”, enquanto o filho, Jorge, lhe comunicara que considerava a medida “negadora dos seus direitos de patrão”. Exaltado, este até sugerira ao ministro que o mandasse para a cadeia, enquanto, pelo meio, ameaçava com o recurso directo a Salazar. Mas as escaramuças de orgulho ferido depressa passaram.
(…) Nos anos 1960, as actividades da CUF intensificaram-se, pelo que Manuel de Mello sentiu que era necessário reforçar a administração, tendo decidido convidar alguns membros da família Sabugosa. O recrutamento fez-se com a entrada de José António Maria José de Mello, 3º conde do Cartaxo (irmão mais velho de Manuel de Mello) e dos seus irmãos João Maria José de Mello e de Diogo José de Mello. Não era a primeira vez que o assunto era abordado. Em tempos, Alfredo da Silva olhara um pedido similar com condescendência: “Mande então vir o primo que é nobre”, dissera. Seja como for, durante estes anos, a CUF manteve um grande dinamismo. Em 1961, em colaboração com estaleiros suecos e holandeses, nascia a Lisnave. Seria o último grande projecto ligado ao nome de Manuel de Mello.
Tal como o sogro, a actividade política de Manuel de Mello reduziu-se a ser procurador na Câmara Corporativa e Presidente do Grémio dos Armadores da Marinha Mercante e, tal como o sogro, quis deixar uma marca filantrópica, que se traduziu na criação do Hospital da CUF, ainda hoje em funcionamento, de bairros operários, de escolas, de uma colónia balnear, de farmácias e de creches. Pouco tempo antes de morrer, criaria ainda a Fundação Amélia da Silva de Mello, destinada a apoiar projectos na área da educação e assistência. Em 15 de Outubro de 1966, com 71 anos, morria, sendo substituído pelo seu filho mais velho, Jorge de Mello.
Em 1988, tive oportunidade de falar com ele. (…) Antes da entrevista, recolhi alguns dados biográficos. Jorge Augusto Caetano da Silva José de Mello nascera em Sintra, em 1921, durante um dos mais agitados períodos da República. Com poucos meses de vida, conheceu o seu primeiro exílio, quando, ao lado do avô, deixou Portugal. Sabe-se pouco sobre a sua infância e a sua adolescência, excepto que Alfredo da Silva lhe dera “uma educação germânica”. Em 1945, casava-se com Maria Eugénia d’Orey Mendonça e Menezes, filha do 4.º marquês de Olhão e 3º marquês de Valada, de quem teve 10 filhos, e de quem, após o 25 de Abril, se viria a divorciar, tendo-se casado, em segundas núpcias, com Maria do Pilar Salazar de Sousa.
(…) A certa altura, pedi a Jorge de Mello que me contasse a forma como a CUF se tornara o maior grupo económico português. Fê-lo com exemplar clareza. Como eram precisos sacos para os adubos que a empresa produzia, o grupo lançara-se no ramo têxtil; como eram necessários barcos para ir buscar a juta, o grupo carecia de uma companhia de navegação; como já tinha uma rede comercial montada para os adubos, o grupo lançou-se na produção de sulfato de cobre para as vinhas. Numa palavra, num país onde nada existia, a CUF teve de fazer tudo.
Em dada altura, disse-me que, antes do 25 de Abril, já existiam na CUF comissões de trabalhadores que, nas alturas em que havia coisas importantes a discutir, se sentavam ao lado dos patrões. Não o fez para se gabar de quaisquer pergaminhos democráticos – longe dele tal ideia – mas por o assunto vir no decorrer da conversa. Ao contrário do que se pensa, excepto possivelmente durante as lutas dos anos 1940, o PCP teve dificuldade em se implantar entre os operários da CUF, não só por, num contexto de extrema miséria, serem favorecidos como por permanecer forte a tradição obreirista que levaria os trabalhadores a admirar mais o anarquismo do que o marxismo. (…)
A prisão
Na madrugada de 25 de Abril, na sua quinta de Riba Fria, Jorge de Mello recebeu um telefonema de um dirigente da Legião Portuguesa, avisando-o de que havia tropa insurrecta na rua. Interrogado pela mulher, respondeu-lhe: “Está tudo perdido, esquece as nossas casas, esquece a nossa vida, esquece tudo. O grupo CUF está a ruir nesta noite.” Pouco depois, António Serra Lopes, um jovem e brilhante advogado, entrou no seu escritório para lhe mostrar o programa do MFA (Movimento das Forças Armadas). Jorge de Mello pediu-lhe que lho lesse. Serra Lopes foi interrompido antes de passar à 2ª página, pois o dono da CUF estava ansioso por saber a sua opinião. O seu colaborador voltou a ler o ponto 6 do programa, que dizia: “O Governo Provisório lançará os fundamentos de: a) Uma nova política económica, posta ao serviço do Povo Português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e a alta excessiva do custo de vida, o que necessariamente implicará uma estratégia antimonopolista.” Eis como o Jorge de Mello reagiu: “Não me parece mal.” E logo a seguir perguntou-lhe: “Ó Serra Lopes, temos algum monopólio no grupo?”
A CUF era, de facto, o maior grupo económico nacional, detendo perto de 180 empresas, responsáveis por cerca de 4% da economia portuguesa e por quase 50 mil postos de trabalho. Em rigor, não era um monopólio, mas era assim que era visto e, como tal, um alvo a abater. Na altura, o grupo alargara a sua presença a Moçambique, Angola, São Tomé e Guiné-Bissau. No leque das empresas contava-se a Compal, a Tabaqueira, a Lisnave, a Setenave, os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, a Fisipe, a Soponata, a Companhia de Nacional de Navegação, o Banco Totta & Açores e a Companhia de Seguros Império. (…) Nos meses seguintes, a vida de Jorge de Mello não seria fácil. Ao lado de alguns dos mais importantes industriais, incluindo o seu irmão José Manuel de Mello e o cunhado António Champalimaud, esteve activo na organização de alguns movimentos de empresários, como o efémero MDS/E38. Sem tradição de activismo, os empresários não souberam organizar-se, acabando quase tudo em ruínas após o golpe de 11 de Março de 1975.
Em 12 de Março de 1975 (…), os militares entraram no gabinete de Jorge de Mello, para o prender. Este ainda pensou em usar a pistola que tinha na gaveta, mas considerou que seria uma estupidez. Já na rua, [o tenente Eduardo] Rosário Dias comunicou-lhe irem para Caxias, o que sossegou Jorge de Mello, uma vez que chegou a pôr a hipótese de ir ser fuzilado.
Fuzilado não seria, mas foi sujeito a humilhações, tal como a de se ter de despir várias vezes. Às 18 horas, entrava na cela 7, no 2º piso. Na cela contígua estavam, desde a véspera, alguns membros da família Espírito Santo. As celas – pequenas, húmidas e sem condições sanitárias – eram as mesmas onde tinham vivido, durante anos, os prisioneiros políticos do Estado Novo. (…)
Seja como for, estas detenções não duraram muito tempo. Embora o suspense sobre o que lhes poderia acontecer certamente tivesse causado insónias aos presos, os dias em Caxias foram suportáveis. O grupo de grandes patrões e banqueiros ali detidos optou por se distrair com brincadeiras infantis, tais como jogos da batalha naval, o Monopólio e a bisca. Em 15 de Março, em nome do Conselho da Revolução, o almirante Rosa Coutinho ordenou a “libertação imediata” de Jorge de Mello e de outros seis presos ligados ao Banco Espírito Santo. A isto não terá sido alheia a intervenção de José Manuel de Mello, quer junto do Presidente da República, marechal Costa Gomes, quer junto das embaixadas brasileira e francesa. O Presidente Giscard d’Estaing – que gostava de caçar em Portugal – enviou mesmo um ultimatum a Vasco Gonçalves: “Se Jorge de Mello não for libertado rapidamente, a França tomará as devidas opções.”
Renascer
No Verão de 1975, após a tomada de posse do V Governo por Vasco Gonçalves, o bispo de Braga incitou os povos à rebelião, pelo que ocorreram motins no Norte, tendo sido queimadas sedes do PCP. Muitos pensaram estar o país à beira de uma guerra civil. Em 12 de Agosto, a Comissão Unitária dos Trabalhadores da CUF reunia-se, na fábrica Sol, com delegados sindicais do grupo, tendo decidido “averiguar as informações, segundo as quais constava que o Dr. Jorge de Mello e o Sr. José Manuel de Mello teriam fugido do país”. Pelo meio, a Comissão de Trabalhadores informava a secretária de Jorge de Mello que ou este se apresentava na CUF ou “o povo” tomaria as fábricas de assalto. Foi ao som da Internacional que os manos Mello entraram na fábrica Sol. Devem ter sido momentos desagradáveis, mas, quando com ele falei, nunca Jorge de Mello se exaltou ao contar-me o que se passara. (…)
Após alguns meses de agitação laboral, a CUF foi nacionalizada. Pouco depois, Jorge de Mello seguia para o exílio. Como disse numa entrevista, “andei por aí” – viveria em Espanha, na Suíça e no Brasil – durante alguns anos. A situação, dele e do irmão, era caricata. As Forças Armadas determinaram que nunca poderiam sair os dois ao mesmo tempo: um tinha de ficar “sequestrado” no país. Em 1981, quando lhe pareceu que se voltara “a reconhecer, na sociedade e na política, o papel indispensável dos empresários privados”, regressou.
Queria começar tudo de novo. O relançamento empresarial foi feito na base de financiamentos bancários e com o produto da venda da casa onde nascera, a Quinta da Riba Fria, e de uma grande herdade, a do Peral, que possuía no Alentejo. No campo financeiro, aproveitou os seus contactos internacionais para formar uma sociedade destinada a canalizar os investimentos estrangeiros para Portugal, a MHW, em colaboração com os ingleses da Hambros e os franceses da Worm. Começou por investir o dinheiro que recebera das indemnizações (cujo pagamento se iria prolongar por 28 anos, à taxa de 2,5% ao ano), nas áreas alimentares, na metalomecânica ligeira e em componentes para automóveis. Dedicou-se ainda a negócios na área do azeite e dos óleos alimentares, com uma das mais fortes marcas portuguesas, o azeite Oliveira da Serra. Finalmente, a Nutrinveste ressuscitou em força, com negócios em cinco países. (…)
Ao longo das décadas, Alfredo da Silva e os Mello souberam criar uma “cultura CUF”. Ser ali engenheiro era quase um diploma. É verdade que estavam ligados ao regime e que, em várias ocasiões, utilizaram formas de repressão duríssimas sobre os grevistas, mas isto não exclui a outra face da moeda, ou seja, que os Mello faziam parte de um tipo de empresariado raro em Portugal. Um operário que ali tivesse emprego sabia que era melhor trabalhar na CUF – onde havia creches, escolas e hospitais – do que na maioria das outras empresas. Mais do que o pai, Jorge de Mello herdou do avô a vontade de deixar obra feita.