Numa avaliação, pela positiva, da governação de José Sócrates, como ministro ou primeiro-ministro, fica uma ideia de modernidade, expressa nas medidas para a defesa do consumidor (e na forma como enfrentou os interesses da banca e dos seguros), no empenho com que liderou a candidatura portuguesa à organização do Euro 2004, o simplex, as energias renováveis, o horário de full time nas escolas, a introdução do Inglês no ensino básico. Numa avaliação negativa, os negócios das PPP’s, o despesismo, o eleitoralismo com os aumentos da administração pública em 2009 (já com a crise instalada) o endividamento do País, o descontrolo das contas públicas que colocaram o Portugal em pré-bancarrota e a eventual prática de crimes de corrupção pessoal passiva, que só os tribunais poderão confirmar ou desmentir. Aqui, destacamos 12 momentos que construiram e destruiram uma carreira pollítica, no dia em que anunciou a sua saída do PS.
1 – A coincineração
Por decisão do então ministro do Ambiente, o País passava, em 2001, a dispôr de duas centrais de coincineração de resíduos sólidos, nas cimenteiras de Souselas, em Coimbra, e do Outão, em Setúbal. Temendo efeitos nefastos para a Saúde Pública, as populações movimentaram-se em protesto. Em Coimbra, as manifestações foram durísimas, contando, inclusivamente, com o apoio do histórico socialista Manuel Alegre deputado eleito pelo distrito. O Supremo Tribunal Administrativo anulou, em 2004, a decisão do Governo, mas ela foi retomada, em 2006, já com Sócrates como primeiro-ministro. O encerramento definitivo foi decretado judicialmente anos depois. Este foi o primeiro caso em que se conheceu a determinação, a resistência e a irritabilidade do governante.
2 – O animal feroz
Pouco antes das legislativas de 2005, já secretário-geral do PS, deu uma entrevista ao Expresso em que se declarou um “animal feroz”, sempre que tem de defender o que considera ser a sua razão. A expressão “animal feroz” colou-se-lhe à pele como um adesivo, sobretudo porque a ferocidade demonstrada doravante, no Governo e fora dele, confirmou a razão de ser da autoavaliação. No entanto, Sócrates consideraria que o título da entrevista foi descontextualizado, o que atribuíu à intenção deliberada do semanário em prejudicá-lo. O início de uma longa história de conflitos com os jornalistas e órgãos de comunicação social.
3 – O caso Freeport
Tudo começou com uma denúncia anónima, eventualmente fabricada em conluio entre elementos da PJ e jornalistas, e a bomba estoirou na primeira página de O Independente, em plena campanha eleitoral para as eleições de 2005. O caso remontaria às vésperas das eleições anteriores, em 2002, que o PS tinha perdido. Sócrates desempenhava, então, as funções de ministro do Ambiente, quando, três dias antes dessas legislativas, o Governo faria alterações aos limites da Zona de Proteção Especial do Estuário do Tejo, aprovando o projeto de um outlet nessa zona, em Alcochete. Com base na tal denúncia anónima, investiga-se indícios de corrupção. Em oito anos de investigação, Sócrates, figura central do licenciamento, não chega a ser ouvido. Mas o caso levanta muitas dúvidas e é alimentado na Imprensa, em especial, no Jornal de Sexta-Feira, conduzido por Manuela Moura Guedes, em horário nobre, na TVI…
4 – A maioria absoluta
Imune à alegada campanha negra, que tentara explorar o caso Freeport, e às insinuações sobre a sua orientação sexual – também afloradas por Pedro Santana Lopes, seu adversário, que, num encontro como mulheres sociais-democratas, declarou apreciar este “colinho” enquanto outros “preferem outros colinhos”, José Sócrates arranca, para o PS, a única e histórica maioria absoluta, com 45,03% dos votos e 121 dos 230 deputados eleitos.
5 – O Inglês Técnico
Na verdade, o primeiro a falar do caso foi o Jornal do Crime, mas foi ao Público que ficou creditada a investigação sobre a licenciatura em Engenharia Civil, obtida na Universidade Independente. Quatro cadeiras com as notas lançadas ao domingo e um célebre trabalho de Inglês Técnico enviado numa folha de fax compuseram o ramalhete do primeiro grande caso sobre o qual José Sócrates se viu obrigado a dar uma longa entrevista televisiva. As quatro cadeiras foram ministradas pelo mesmo professor, António José Morais, mais tarde arguido no caso do aterro da Cova da Beira, que também ameaçou envolver Sócrates.
6 – As casas da Guarda
As duas dezenas de projetos aprovados pela autarquia egitanense, com a assinatura do engenheiro técnico José Sócrates Pinto de Sousa, entre 1987 e 1990 – quando era deputado, supostamente, em exclusividade… – obrigaram Sócrates a explicar que o fizera graciosamente. Mas o grave, mesmo, foi o aspeto final com que os mamarrachos desfiguraram a paisagem…
7 – A Cova da Beira
O que esteve em causa, num processo cuja investigação durou dez anos, foi a viciação de um concurso público internacional para construir e explorar a central de compostagem, na Covilhã. Horácio Carvalho, empresário cuja firma, a HLC, construíu a obra, foi acusado de corrupção activa e branqueamento de capitais, ou seja, de ter pago ao professor António José Morais, para ganhar o concurso da Cova da Beira. A empresa de Morais, dona da obra, teria contratado o consórcio liderado pela HLC, envolvendo a gestão de apoios comunitários. Morais foi o tal professor que lançou as notas de Sócrates ao domingo – mas o nome do primeiro-ministro, embora envolvido na espuma mediática, nunca constou do processo.
8 – Face Oculta e Tagus Park/TVI
Reeleito em outubro de 2009, desta vez com maioria relativa, o governo minoritário de Sócrates é sacudido pelo escândalo do processo Face Oculta. As escutas das chamadas telefónicas e trocas de mensagens entre o primeiro-ministro e Armando Vara são invalidadas pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento. O processo visava o caso de corrupção e favorecimento do sucateiro Manuel Godinho, que, juntamente com Armando Vara, antigo ministro num Governo de Guterres, é condenado a pena de prisão. O Face Oculta deu origem a outras investigações. A principal resultou numa suspeita de atentado ao Estado de Direito, devido à alegada tentativa de compra da TVI pela PT, por suposta ordem de Sócrates. Outro caso que derivou dessas escutas foi o do Taguspark, no âmbito do qual teria sido feito um contrato com Luís Figo para que este surgisse ao lado do primeiro-ministro nas vésperas das legislativas. Os envolvidos foram absolvidos.
9 – “Porreiro, pá!”
A expressão foi captada por um microfone aberto – e foi com ela que José Sócrates concluiu a assinatura do Tratado de Lisboa, na capital portuguesa, enquanto abraçava o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso. Estávamos a 13 de setembro de 2007 e a condução da presidência portuguesa da União Europeia havia sido coroada de êxito. Sócrates ainda era uma estrela na Europa, longe da crise financeira que se abateria sobre o País a partir do ano seguinte.
10 – Pino, Lino, Lino, Pino
Em janeiro de 2009, no programa 14 do Zé Carlos, líder de audiências da SIC aos domingos à noite, os Gato Fedorento resumem todo um projeto de política externa, virada para novos mercados de risco, como a Venezuela de Hugo Chavez e a Líbia de Mohamar Kadhafi. Primeiro, os “gatos” passam uma divertida e risonha declaração de Chavez, que se refere a Manuel Pinho e a Mário Lino, ministros da Economia e das Obras Públicas, respetivamente, como «o Lino, o Pino, o Pino, o Lino” com quem viera negociar. Em cima destas imagens, os “gatos” inventam um rap em que terminam de óculos escuros, com uma imitação do refrão de um conhecido tema de Pedro Abrunhosa e dos Bandemónio: “Socorro, estou a ser governado, por Pino e Lino…”. Tiago Dores apresenta os dois ministros como “a dupla mais engraçada desde Bucha & Estica”. Na Venezuela, Chavez chega a usar a imagem de Sócrates em cartazes de propaganda eleitoral, para atestar as suas boas relações com líderes europeus…
11 – A Tróika
A 6 de abril de 2011, José Sócrates rende-se, depois de conhecer o facto consumado, única forma de o vencer: Teixeira dos Santos, ministro das Finanças, emitira, finalmente, um pedido de assitência financeira à Tróika que, por essa altura, já aplicara medidas draconianas na Grécia e na Irlanda. Fê-lo, ao ínício da tarde, contra as ordens do primeiro-ministro que, à noite, ao seu lado, foi obrigado a anunciar a medida. Portugal tinha chegado a uma situação de pré-bancarrota, com os mercados financeiros a exercer uma pressão enorme e os juros da dívida a disparar para níveis estratosféricos. Por essa hora, já o “animal feroz” tinha cortado relações com o seu ministro.
12 – A detenção
Chegado de Paris, na noite de 22 de novembro de 2014, José Sócrates era detido, no próprio Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, para interrogatório, com uma câmara da SIC por perto. Era acusado de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Detido nos calabouços da PJ, seguiria, depois, para o presídio de Évora, em preventiva, a medida de coação mais grave. Sairia meses depois, com a medida alterada para prisão domiciliária e mais tarde, passou a aguardar o julgamento em liberdade. No próprio dia em que era detido, decorriam as eleições internas que entronizaram António Costa como secretário-geral do PS. O novo líder passou, de imediato, uma mensagem a todos os militantes, pedindo que ninguém se pronunciasse sobre o caso, estendendo o apelo para os trabalhos do congresso, que decorreria uma semana depois. A versão oficial foi sempre: “À política o que é da política, à Justiça o que é da Justiça”. Até esta semana.