De um dia para o outro, Alfredo José de Sousa deixou de se limitar a parar no quiosque da Casa da Guia para comprar o seu diário de eleição. Naqueles dias quentes, o ex-Provedor de Justiça demorava-se pela banca. Queria saber o que se ia escrevendo sobre a sua filha Constança e o seu desempenho na luta contra os incêndios do centro do País. Por vezes, pegava no telefone e conversava. Por esses dias, a sua filha, ministra da Administração Interna (MAI), estava literalmente debaixo de fogo.
“Foram os piores dias da minha vida”, confessaria Constança Urbano de Sousa à RTP, a uma dúzia de horas de os incêndios serem dados por controlados. Era quarta-feira, 21, e a ministra estava no terreno desde sábado à noite, como havia feito em 2015, na campanha eleitoral para as legislativas. Candidata (15ª da lista, na quota do secretário-geral) pelo distrito do Porto, mudou-se para a Póvoa de Varzim, onde tem raízes familiares, para estar mais perto dos acontecimentos. Foi a primeira não eleita, mas não pôde ser acusada de falta de comparência nesse combate eleitoral, tal como agora não poderá ser acusada de ausência, no combate ao maior (e mais mortal) incêndio jamais ocorrido em Portugal.
Duas semanas depois do início da catástrofe, a ministra continua debaixo de fogo, embora agora em sentido figurado. Ninguém pede diretamente a sua demissão, mas todos, de Belém aos partidos com assento parlamentar, querem ver identificados os erros e apuradas responsabilidades, para que uma tragédia desta dimensão não se volte a repetir.
Entrada num admirável mundo novo
Tirou Direito em Coimbra, casou cedo e instalou-se na Alemanha, onde fez o mestrado, o doutoramento e se foi especializando em questões de Imigração. Ao regressar a Lisboa, casada e com filhos, embrenhou-se no mundo académico. Quando, em 2000, Nuno Severiano Teixeira (professor universitário, então ministro da Administração Interna) precisou de quem elaborasse uma Lei de Imigração, foi buscá-la para sua assessora jurídica.
Para uma mulher de estudo e leis, o mundo dos gabinetes surgiu como um admirável mundo novo. Foi aí que descobriu a política e a deixou entrar na sua corrente sanguínea. Foi também no MAI, aliás, que viveu a queda da ponte de Entre-os-Rios. Dessa vez não lhe coube a ela mobilizar forças, coordenar meios ou dar a cara. O seu trabalho, de formiga, desenvolvia-se no recato do gabinete, onde o seu empenho se fez notar: após 20 meses em funções, foi louvada pela competência jurídica, disponibilidade, honestidade intelectual, “elevado sentido de interesse público”, “de responsabilidade e dedicação”. Ainda hoje Severiano Teixeira a recorda como “competente, muito trabalhadora, responsável, ambiciosa”.
“Até pode ser muito competente”, diz à VISÃO Teresa Anjinho, a ex-secretária de Estado da Justiça que tem “pela Professora” Constança “alguma reverência”, mas independentemente “de ser uma boa ou má pessoa”, diz, “quem assume responsabilidades como ministro, também tem de assumir quando há falhas”. Porque todos têm “direito ao erro”, mas “na justa medida que devem ter direito a corrigi-lo”. E, no caso de Pedrógão, “o erro ceifou a vida a 64 pessoas e fez mais de 200 feridos. É uma dimensão muito grande. Há responsabilidades que devem ser assacadas.” Quer dizer demissão? “Seria uma pena se a cabeça da ministra fosse oferecida só para apaziguar os ânimos políticos” e “ficasse tudo na mesma”. O que quer são respostas. E que o sistema seja corrigido.
Foram colocadas muitas perguntas e as respostas estão a surgir. Mas até ter o puzzle completo, António Costa não deixará cair a jurista que foi buscar para lhe desenhar a Lei de Nacionalidade, a técnica que, em 2006, mandou para Bruxelas como coordenadora do núcleo de Justiça e Assuntos Internos, ou a política em potência que, dez anos depois, lhe veio a suceder no MAI.
Constança foi uma aposta pessoal de Costa. Perante a tragédia, teria sido “mais cómodo” sacrificá-la – cómodo mas irresponsável”, disse o primeiro-ministro. Para a MAI também teria sido “mais fácil”, mas “cobarde” demitir-se. Estão em consonância.
Ar duro e lágrima fácil
“Ela preocupa-se genuinamente com as pessoas”, garante a amiga Manuela Goucha Soares. Foram portanto sentidos os abraços, a entrega, a partilha. No início das operações, só não fez sopa para os bombeiros porque houve quem a impedisse. Do início ao fim, não saiu do local. Aprendera a lição do ano anterior – acusada de, enquanto São Pedro do Sul ardia, se manter de férias no Algarve. Este ano a acusação não se repetiria.
Pode ser uma mulher de gabinete, ter pouca tarimba política, mas aguentou-se, no terreno, sob os holofotes, 100 horas seguidas. Em Conselho de Ministros é mais discreta: como todos os não políticos, Constança só usa da palavra “quando dói” ou quando é interpelada, garante um colega. Na praça pública aparece mais segura de si, sem medo do embate – com a PSP (a quem quer limitar as folgas por trabalho sindical) ou a GNR (já lhe viraram costas, enquanto discursava numa cerimónia).
Enfrenta a polícia com a mesma naturalidade com que chora. Parece ter um ar duro e lágrima fácil. Comoveu-se, agarrada à mãe do agente de 23 anos, abatido a tiro durante uma patrulha na Amadora, e na despedida ao bombeiro que não resistiu aos ferimentos provocados pelo fogo, em Pedrógão.
Comove-se, mas mantém-se, até nova ordem, no Governo de António Costa.
(Artigo publicado na VISÃO 1269, de 29 de junho, de 2017)