Por mero acaso nasceu no Funchal, há 58 anos. Foi no meio do Atlântico que fez a instrução primária, que seguiu pelo ensino secundário, sempre com um livro debaixo do braço, se iniciou nas aulas de piano e nos jogos de ténis com os amigos. Durante 17 anos, Clarinha (como era conhecida) tanto passeou com o pai (engenheiro nos Serviços Florestais) pela natureza exuberante da ilha da Madeira como passou férias na estância balnear dos madeirenses, a árida ilha do Porto Santo. No fim do liceu, com o antigo sétimo ano completo, regressaria ao Continente, com os pais e os dois irmãos mais novos, para começar todo um novo capítulo da sua vida, em que lhe caberia a ela fazer as suas próprias escolhas.
Tirou Direito na Universidade Católica, ingressou na carreira diplomática, casou, foi mãe de três filhos e está prestes a ser avó pela primeira vez. É uma sportinguista ferrenha, de ir ao estádio e andar de cachecol ao pescoço, um fervor que partilha com o marido, Pedro Nunes dos Santos, há muito ligado (foi dirigente) ao clube de Alvalade.
De Clara Nunes dos Santos, Clarinha tanto para os amigos de infância como para os diplomatas com quem se foi cruzando ao longo da vida, diz-se que é culta e inteligente, comunicativa mas discreta, que tem uma memória invejável, olho para o pormenor e muito bom senso. Mas o que neste momento mais a distingue, de facto, é estar prestes a tornar-se a primeira mulher nomeada para chefe do Protocolo do Estado.
Nunca, desde 1901, o cargo por onde passa a definição das cerimónias, o cumprimento das regras de cortesia e boa educação entre altas individualidades e entre Estados havia sido entregue a uma mulher. Antes de 1974 teria sido difícil, já que diplomacia (como a magistratura) estava vedada ao género feminino. Mas, mais de 40 anos depois, a paridade ainda é uma miragem. Em “442 funcionários, 303 são homens e 139 mulheres, 69% homens para 31% mulheres”, alertava a embaixadora Luísa Bastos de Almeida em outubro, num encontro dedicado aos desafios das Mulheres na Diplomacia. Já nos tribunais de primeira instância e superiores, comparava, havia, em 2015, “1 053 mulheres e 734 homens, ou seja, 41% homens e 59% mulheres.”
Luísa Bastos de Almeida conhece bem a carreira. A sua, até foi atípica: tornou-se diplomata tarde, porque quando acabou a faculdade, em 1971, a carreira ainda lhe estava vedada. Entrou nove anos depois, já nos 30, e saiu no topo da carreira, depois de ter sido a primeira assessora diplomática do Presidente da República.
Tantos anos de diplomacia depois, ainda lhe parece “estranho” que na carreira se limite “a participação dos dons e competências específicos das mulheres: a habilidade para construir compromissos, a relutância em usar a força, a preferência da prevenção ao conflito, a maior aptidão para o diálogo”. De facto, só três em 33 embaixadores full rank são mulheres. A primeira foi Ana Martinho, em 2005, sendo também a primeira a ascender à toda poderosa Secretaria-Geral do MNE, em 2012.
Tem sido um caminho de avanços e recuos, mas a escolha de Clara Nunes dos Santos para o Protocolo parece mostrar que chegou o tempo de o género se afirmar no Palácio das Necessidades.
“Não percebo nada de protocolo”
Quando, em 2008, José de Bouza Serrano a convida para subchefe do Protocolo, Clara Nunes dos Santos, então na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia (REPER), pareceu nem acreditar. Desde que entrara na carreira, em 1987, tinha estado na DG das Comunidades Europeias, na REPER (uma primeira vez), nas direções-gerais (DG) das Relações Bilaterais e dos Assuntos Comunitários, fora chefe de gabinete do secretário-geral do MNE, João Salgueiro, regressara a Bruxelas (para a embaixada bilateral), de onde passara, de novo, para a REPER. Por isso, terá respondido a Bouza Serrano: “Nem pense nisso! Não sei nada de protocolo!”
Podia não saber, mas teve de ir aprendendo. E destacou-se tanto que, no final dos três anos e meio de mandato, em 2012, colocou-se a hipótese de ser Clara Nunes dos Santos a substituir Bouza Serrano à frente do Protocolo, por interferência de Belém: a chefia do Protocolo do Estado é “o único lugar do MNE em que o Presidente tem uma palavra a dizer”, porque o Protocolo serve todo o Estado, explicou fonte diplomática à VISÃO. Nessa altura, o então ministro, Paulo Portas, quis aumentar o número de mulheres em postos de chefia (a ele se deve a nomeação de Ana Martinho como primeira secretária-geral) e Clara Nunes dos Santos foi mais tarde para a sua primeira embaixada: Oslo, Noruega.
Na hora da partida, levava três anos e meio no Protocolo. Tinha sido braço direito, esquerdo ou sombra do chefe. No seu Livro do Protocolo (Esfera dos Livros, 2011), Bouza Serrano diz que foi o seu “alter ego”. Nos agradecimentos, refere-se a ela como um “espírito lúcido e crítico, que me corta a direito a pretensões (como a minha mãe fazia com a ‘mania das grandezas’)”.
Sem saber “nada de protocolo”, nunca mais terá esquecido a mnemónica “para acertar com o lado do nosso guardanapo, que também é aplicável ao prato do pão: “right is wrong and left is right”, o que significa que o da direita está errado e o certo é o da esquerda”, como manda o Livro do Protocolo. E que, quando há enganos (“porque há quase sempre enganos no uso do guardanapo”), estes “ajudam a quebrar o gelo inicial entre pessoas que não se conhecem.”
ASAE e partidas antecipadas
Muitas coisa mais terá aprendido, como mudar um banquete, literalmente, da manhã para a noite, do Palácio da Ajuda para o de Queluz – aconteceu na primeira visita de Estado do Presidente polaco a Portugal, em abril de 2012 (altura em que Clara era chefe do Protocolo interina). No dia da chegada, a ASAE ordenou o encerramento das cozinhas da Ajuda. E o banquete estava marcado para essa noite. À hora marcada… estava tudo preparado para receber os mais de 100 convidados, em Queluz. Esta não foi a sua única crise.
No seu livro, Bouza Serrano conta que “a situação mais dramática” do mandato de ambos foi numa visita oficial do Presidente chinês, Hu Jintao, a Portugal.
Estava tudo preparado, definido ao milímetro, ao minuto. “Quando nos preparávamos para fazer a entrada protocolar na Sala da Ceia, foi-me dito que não podíamos passar à sala.” Por um mero acaso, o Protocolo soubera que, discretamente, “os chineses tinham retirado um dos cartões da mesa principal, deixando vago o lugar de um alto dignitário que quis abandonar o palácio minutos antes do início do banquete.”
Enquanto o chefe do Protocolo acompanhava os presidentes (Cavaco Silva e Hu Jintao) para a sala, Clara Nunes dos Santos, a contrarrelógio, tratava, com “sangue-frio” e “eficiência”, de refazer toda a mesa de honra.
No fim de três anos e meio de grande animação, no Protocolo do Estado, muitas vezes a substituir Bouza Serrano, foi atribuída a Clara Nunes dos Santos a sua primeira embaixada. Está, desde abril de 2013 como embaixadora residente em Oslo, capital da Noruega, cargo que acumula com o de embaixadora não-residente na Islândia. Em setembro desse ano, conseguia que a Arendal Upper Secondary School, a 200 quilómetros de Oslo, incluísse no currículo a disciplina de Língua Portuguesa. Um ano depois, o ensino do Português alastrava-se ao curso de Turismo da Trysil Upper Secondary School. Como noticiado na altura pelo Diário de Notícias, “não são turmas de descendentes de imigrantes, como é em países de imigração, mas de noruegueses.” A aposta valeu-lhe o prémio de “Embaixadora das Línguas Estrangeiras”, atribuído pelas autoridades norueguesas.
Mas a sua vida no reino da Noruega estará prestes a terminar. De acordo com informações recolhidas pela VISÃO, o embaixador português no Vaticano, João Almeida Ribeiro terá sido o escolhido para substituir Pedro Moitinho de Almeida, em Viena, que se reforma em breve. Para o lugar de Almeida Ribeiro deverá ir António Almeida Lima, atual chefe do Protocolo do Estado. Com este pequeno movimento diplomático (que se junta àquele já noticiado pela VISÃO), a 36ª entidade mais importante do País, segundo a Lei das Precedências, passará a ser Clara Nunes dos Santos.
Mulheres na diplomacia
Dos 33 lugares de topo da carreira diplomática, apenas três são ocupados por mulheres. Eis alguns passos importantes dessa história.
Já o mundo entrara no século XXI quando uma mulher chegou ao posto de embaixadora full rank. Corria o ano 2005 e a diplomata chamava-se Ana Maria Martinho.
Sete anos depois, Ana Martinho voltaria a ser “a primeira mulher” nomeada secretária-geral do MNE, a primeira entre os diretores-gerais. Nesse ano de 2012, Luísa Bastos de Almeida tornava-se a primeira assessora diplomática de Belém e o número de mulheres chefes de missão duplicou (de três para seis). 2017 volta a ser um marco: é o ano em que a Fundação Calouste Gulbenkian passa a ter uma presidente (Isabel Mota) e em que o Protocolo do Estado é entregue a uma embaixadora.
(Artigo publicado na VISÃO 1264, de 25 de maio de 2017)