Eram quase três da tarde quando o Presidente da República deixou Belém. Partia, na ilusão de que era um cidadão comum, mesmo que, a poucos metros de distância, sob o olhar sempre atento, estivessem sempre os agentes do corpo de segurança pessoal. Por mais que o deseje, Marcelo não é um cidadão comum. Quando vai dar um mergulho, lá está mais do que um segurança. No Palácio, na rua, em qualquer lado, esteja o Presidente a seguir o protocolo, numa qualquer cerimónia, ou a fugir dele.
Ao volante do seu carro pessoal, Marcelo chegou aos Jerónimos e virou à esquerda. Subiu a Avenida da Ilha da Madeira, passou as torres do Restelo, apanhou a Avenida das Descobertas e entrou na A5. Com um acidente à chegada às Amoreiras, apanhou o trânsito muito congestionado a que tentou fugir por Campo de Ourique.
Quis parar no Lar da Criança, a escola primária que frequentou, na Lapa, mas não tinha avisado e não quis “criar caos”, então seguiu para o Chiado. O tempo que dedica à Presidência não lhe dá muitas hipóteses. É ao fim de semana, quando cá está e não tem a agenda muito preenchida, ou à hora do almoço, quando as audiências assim o permitem, que visita os museus.
Por isso, em dia de festa, quis tirar a barriga de misérias. Começou pelo Convento da Trindade, onde está (mas termina a 18 de março) a exposição “Cidade Gráfica. Letreiros e reclames de Lisboa no século XX”, organizada pelo MUDE. Marcelo é um homem que gosta de História e de histórias, que não desdenha a memória, e esta é uma mostra que pretende “preservar a memória gráfica da cidade, de estabelecimentos que já fecharam e cujos letreiros se perderam no tempo.” Não avisou que iria e visitou a exposição à “paisana”, “misturado” num grupo de estudantes de design.
Da Trindade desceu a Rua Serpa Pinto, passou pelo Largo do São Carlos e entrou no Museu Nacional de Arte Contemporânea. A diretora, “chamada à receção”, correu para o receber. Apanhou-o já no primeiro andar, à porta de uma conferência internacional onde se discutiam os desafios dos museus, no século XXI – porque “há museus gratuitos sem ninguém” – e convidou-o para entrar. Dez minutos deopis haveria uma pausa e Marcelo continuaria a visita.
Conversa, enquanto percorre as galerias. Gosta de paredes onde os quadros falem entre si. Identifica os artistas ao longe. Vê-se que é frequentador. Conhece-lhes as histórias. Frente a um Jorge Pinheiro, conta que um dia foi a um leilão com o Francisco Sousa Tavares, pai de Miguel, e “havia lá dois quadros” do Jorge Pinheiro, um par, de que ambos gostaram muito. O que fazia sentido, contou, era que os quadros fossem vendidos em conjunto, mas infelizmente acabaram “desirmanados”. Parou nas duas sombras de Lourdes Castro e na peça de René Bertholo, seu mrimeiro marido, mesmo ao lado. Perguntou se o MNAC tinha ficado com o espólio de Cabrita Reis – mas não. Ficou com a EDP, para o MAAT.
Recebe um sms. Gosta mais de falar ao telefone, mas recebe muitas mensagens escritas. E o dia do primeiro aniversário estava a ser particularmente ativo. “É o primeiro ministro, do Conselho Europeu.” Tusk tinha sido eleito presidente do Conselho Europeu, só com os votos contra da Polónia, seu país natal. “Bom!” Presidente e primeiro ministro falam todos os dias, diria na entrevista que deu à SIC, no decorrer da visita. Nessa ocasião, contou a José Manuel Mestre que também ele tinha dúvidas sobre a durabilidade da solução governativa. “Era uma realidade nova, nunca experimentada.” E que, sobre ser mais pró-governo ou mais contra o seu PSD, responde: “o Presidente tem de ser independente. Não pode ser mais uma oposição.”
Seguiu a visita, percorreu os corredores onde esteve Amadeo de Souza-Cardoso e desceu à rua. Um táxi para para uma selfie. Marcelo pede desculpa ao carro de trás. “Desculpo se também tirar uma selfie comigo”, responde a condutora.
Chega ao seu carro e segue. Está um dia lindo. Pelas ruas, circula de janela aberta e vai ouvindo “Marcelo!”, “Parabéns!” E acena, agradece. Queria ir ver a exposição de Graça Morais à Fundação Champalimaud mas o trânsito não o permitiria. Não queria, no entanto, deixar de “fazer tempo”. Sabia que na Presidência o esperava uma festa surpresa, organizada pelas Casas Civil e Militar, para celebrar o primeiro ano em Belém. Mas não gosta muito de “surpresas” nem desse tipo de festas, e queria adiar o regresso ao máximo. Já perto de Belém, eram 17 e 10, sai-se com um “ainda vamos a mais uma exposição!”
O carro passava pelo novo Museu dos Coches e o Presidente conta que tinha sido inaugurada uma exposição para o dia da mulher que ele não tinha conseguido ver. Estava feita a festa. Deixou o carro com os seguranças e seguiu a pé, Calçada da Ajuda abaixo, até à exposição. Mais uma selfie.
Por mais que insistisse, não o deixaram pagar. O que a senhora da bilheteira queria era uma fotografia com o Presidente, não o dinheiro do bilhete. Ficou a promessa: à saída.
Gostou das peças de Maria Paulino, retratos do universo da violência feitos a partir de material reciclado e saiu com pé ligeiro. Suspirou pelo gelado de frutos do bosque – que não costuma haver, mas naquele dia havia! – mas não quis abusar dos nervos do chefe da casa civil e não parou para comprar. Selfie. E outra. Chegou a Belém pelas 17 e 35, para cinco minutos de celebração. Teria de subir e preparar-se para condecorar Maria José Rita e Maria Cavaco Silva com a Grã Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Teve uma hora protocolar. Um pouco de descanso e o desejo de continuar.
Passava pouco das 19 horas quando o Presidente voltou a sair de Belém, no seu carro, a caminho da Faculdade de Direito. Foi lá que passou os últimos 50 anos da sua vida e e é para lá que, quem sabe, ainda conseguirá regressar, para dar aulas de mestrado e doutoramento.
Gostaria de ter passado pelo cemitério. “Fez ontem 14 anos que a minha mãe foi a enterrar e eu não pude lá ir. Aproveitava e ia pôr uma flor no jazigo de Mário Soares. Mas não tive tempo…” Já era noite. O dia do Professor Marcelo (preferirá sempre ser chamado Professor. Presidente é temporário, havia explicado de manhã, no Pedro Nunes) tem mais horas que o dos comuns dos mortais (dorme pouco, já se sabe), mas nem o dele dá para tudo. Mesmo assim, madrugada dentro, contava ainda ler, em casa, os diplomas que teria de promulgar. Havia pelo menos um que não deixaria, de maneira nenhuma, para o dia seguinte…