Aceite-se a ilustração principal deste artigo como a melhor alternativa para retratar uma mulher que foge dos holofotes como o diabo da cruz. A fuga, porém, não será por falsa modéstia, diz quem com ela priva. Antes é justificada por uma certeza muito sua, que leva rima na ponta: um magistrado deve ser recatado.
E, no entanto, Francisca Van Dunem, 51 anos, tem animado a blogosfera, desde a sua eleição, por maioria absoluta, para procuradora-geral distrital de Lisboa, na sexta-feira, 26. Entre blogues de cidadãos vulgaris e de gente ligada à Justiça, não há quem negue o aplauso à paridade que mostrará, finalmente, o avanço do País. Logo após a questão de género vem a cor da pele, a merecer mais algumas palmas: «Uma mulher, e ainda por cima negra, constitui uma grande novidade»; «Ela deve ser ‘do caraças’».
Tire-se-lhe as aspas por que não?, depois de se dar uma olhadela ao currículo abreviado da magistrada Van Dunem: representou Portugal no Comité Europeu para os Problemas Criminais, no Conselho da Europa, assessorou, durante nove anos, o procurador-geral da República (primeiro Cunha Rodrigues, depois Souto Moura) e fez parte do Conselho Superior do Ministério Público, na Unidade de Missão para a Reforma Penal.
Nascida em Luanda, Francisca Eugénia da Silva Dias Van Dunem trocou Angola por Portugal, antes do 25 de Abril, para estudar Direito, em Lisboa. Em 1977, o seu irmão José, dirigente do MPLA, e a cunhada seriam presos e assassinados. A mãe decide, então, juntar-se à filha, partilhando com ela a educação do neto que ficara órfão. Mais tarde, já casada com o professor universitário Eduardo Paz Ferreira, Francisca tem um filho, José, hoje com 9 anos.
Antivedeta pura, pouco deixa entrever da sua vida privada. Mas não esconde que gosta de cozinhar, de cinema, arte e música clássica. O seu gabinete do DIAP (Departamento de Investigação e Acção Penal), que coordena, desde 2001, está repleto de quadros. E, num dos aniversários daquele organismo, organizou um ciclo de cinema sobre Justiça.
«É discreta, inteligente e perspicaz», dizem dela dois magistrados do DIAP.
A sua blindagem emocional é também uma imagem de marca: «Manteve sempre distância dos subordinados», diz um dos procuradores . Alguns, porém, viam esse estilo como «altivo e arrogante», embora atribuindo-lhe o mérito de nunca ter interferido nos inquéritos dos seus procuradores.
Papel mais visível tem-no na coordenação de megaprocessos como o do tráfico das armas na PSP e o da corrupção na Marinha.
Quem a conhece bem nunca lhe notou uma necessidade de afirmação pelo facto de ser a primeira afro-portuguesa a atingir o cume do MP. É, porém, dos magistrados que mais estudos tem publicados sobre discriminação e racismo. A sua experiência na Procuradoria granjeou-lhe respeito junto dos colegas, sobretudo nas questões de metodologia da acção penal (Ver Revolução no DIAP). Até então, «passara quase despercebida», diz um procurador da sua geração.
Não foi de ânimo leve que Francisca Van Dunem aceitou trocar o «seu» DIAP, pela PGR de Lisboa, onde a espera a supervisão de 42 comarcas e 14 círculos judiciais.
Mas o entusiasmo com que o procurador-geral lhe endereçou a proposta, deixou-a sem margem de recuo. Pinto Monteiro conhece-a bem trabalharam juntos na Alta Autoridade Contra a Corrupção.
Com Tiago Fernandes