É uma reivindicação antiga, que agora “queima” pela atualidade: os inspetores e técnicos da Autoridade Tributária e Aduaneira não têm vínculo à função pública. Na prática, estão por sua conta e risco. O Estado não se responsabiliza pelo seu papel no combate à fraude e infrações fiscais, desprotegendo-os e fragilizando a sua autoridade diante de eventuais infratores, acusa Paulo Ralha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos. As exceções ocorrem no âmbito das ações do DCIAP, que, por exemplo, terá requisitado cerca de 80 inspetores tributários para a Operação Marquês, levando à detenção de José Sócrates.
Em entrevista à VISÃO, o líder da estrutura sindical que representa o “capital humano ” responsável por 90 por cento das receitas públicas, fala dos diferendos com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, levanta o véu sobre eventuais aproveitamentos políticos do “caso Sócrates” e aborda as tentativas para retirar legitimidade e poderes aos inspetores tributários.
O sindicato vem reivindicando, desde 2009, o vínculo dos inspetores tributários à função pública. Em que ponto se encontra a situação?
A questão está adiada e envolvida numa guerra. Há quem pense que temos poderes a mais e há quem defenda o contrário. A situação só é ultrapassada no caso do DCIAP que, para efeito de inquéritos, requisita os técnicos tributários e lhes garante prerrogativas de órgão criminal. Mas, em termos práticos, a Autoridade Tributária (AT) está em desvantagem face a outras entidades como a PJ, o SEF, etc.
O que queremos é o mesmo estatuto e a equiparação a um órgão nuclear do Estado.
Não há avanços, então.
Quando esta discussão é levada à Assembleia da República, toda a gente diz “sim senhor”. No Governo, viram o bico ao prego.
A última reunião com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais foi há quase um ano e só houve promessas. Há um autismo completo, não se consegue falar com ele. Mas acredito que aquilo que se está a passar na Justiça irá obrigar a que nos atribuam o vínculo.
Um exemplo: estamos a trabalhar com uma base de dados que é mais completa do que a da PJ, com acesso a cadastros e a penhoras, mas o ridículo é que, das entidades com competência para penhorar, só os chefes de Finanças não têm vínculo à função pública, o que diminui a sua autoridade.
Quais são as consequências?
Os trabalhadores da Autoridade Tributária e Aduaneira são individualmente responsáveis pelos atos que praticam, enquanto nos casos da PJ e do SEF, por exemplo, o Estado assume a responsabilidade. Isto faz com que, na execução de determinadas ações, os trabalhadores da AT se sintam mais constrangidos.
Tem havido vários processos contra a AT, movidos por grandes sociedades de advogados, com base numa alegada falta de legitimidade dos trabalhadores desta área para efetuarem determinados atos. Mas têm aparecido outras situações.
Quais?
Há umas semanas surgiu, no Governo, uma proposta do Ministério da Justiça, no sentido de limitar as escutas telefónicas à PJ.
Na prática, e sem rodeios, a intenção visa limitar a ação da AT, nos processos Monte Branco e outros, grande parte deles assentes em escutas. Mas a proposta acabou por sair da agenda do Conselho de Ministros.
Os inspetores tributários deixariam de ter acesso às escutas?
Atualmente, eles não têm apenas acesso às escutas, eles fazem escutas! Com a proposta do Governo, deixariam de fazer.
Relaciona o surgimento dessa proposta com notícias sobre o caso Tecnoforma, envolvendo o primeiro-ministro, por exemplo?
Tem a ver com o facto de Pedro Passos Coelho ter sido apanhado nas escutas. Quando o assunto chegou aí a reação foi: “Alto e para o baile, isto não pode acontecer.”
O que perde o Estado com a fragilidade da AT?
Este foco de grandes investigações, das operações Furacão e Monte Branco, do BES, etc, acontece num quadro extremamente frágil para a Autoridade Tributária e Aduaneira, só colmatado pela coragem de uma pessoa e de uma equipa.Se tivéssemos um quadro mais propício, as investigações ocorreriam um pouco por todo o País, teriam uma dimensão mais abrangente e haveria uma limpeza a nível de processos de corrupção.
Mas quantos elementos compõem essa equipa? Na Operação Marquês falou-se de dezenas de agentes da Autoridade Tributária.
Sim, mas isso foi para esta operação. A equipa que, há anos, trabalha praticamente em permanência com o DCIAP tem à volta de vinte elementos.
Como funciona a requisição desses inspetores tributários pelo DCIAP?
O DCIAP indigita uma equipa ou determinados elementos como órgão de polícia criminal e confere-lhes um mandato para uma diligência ou conjunto de ações. É este o quadro legal em que atuam.
Este Governo não quer combater a fraude e à evasão fiscal?
É uma leitura. Ao não proporcionar à AT um quadro legal fortalecido para praticar as suas ações e impor a justiça fiscal está a contribuir para que esse combate se resuma a situações muito esporádicas e não seja feito de forma sistemática e sustentada.
Tendo em conta a envergadura das ações e o elevado número de agentes tributários envolvidos, a Operação Marquês teria sido possível sem carta branca da secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais?
O DCIAP tem competência para decidir sozinho.
Mas se me pergunta se o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais teve ou não conhecimento é outra história. Tudo indicia aproveitamento político. Foi a primeira vez que a Autoridade Tributária e Aduaneira efetuou prisões. Não foi chamada a PJ, o que seria normal. É uma situação anómala. Nestes moldes, é inédita.