Dois dias. Dois dias foi o tempo que a comissão permanente da Assembleia da República demorou a deliberar como haveria de ficar relatada, no Diário da Assembleia da República (DAR), aquela sessão de março de 1980, em que se discutia a atribuição de crédito agrícola de emergência. António Campos (PS) exasperou Francisco Sousa Tavares (dos Reformadores, pai de Miguel). Trocaram galhardetes, Raúl Rego interveio. São disparados mimos de todos os géneros, desde “mentiroso” e “malcriadão” a “escarro moral”. Salgado Zenha interrompe para censurar o recurso aos impropérios e Sousa Tavares volta a usar da palavra para lhe responder: “Tenho pena que não tenha ouvido um deputado do PS dizer para mim: ‘Vá para a p… que o pariu.’ Isso, certamente, nunca se tinha dito nesta assembleia.
A sessão acabou transcrita na íntegra mas acompanhada pela decisão de, doravante, proteger o DAR de obscenidades. É por esta razão que parte da sessão de 6 março 2009, aquela em que Luís Campos Ferreira (PSD) chama “palhaço” ao então primeiro-ministro José Sócrates (ausente do plenário), se encontra substituída por reticências. E falta uma frase de José Eduardo Martins (PSD), em resposta às insinuações de Afonso Candal (PS). Foi censurada.
A palavra “palhaço” devia estar em voga, nesse ano, já que também foi usada por Maria José Nogueira Pinto (CDS) para se dirigir a Ricardo Gonçalves (PS), numa reunião da Comissão Parlamentar de Saúde. A discussão terminou quando João Semedo (BE) lhe pôs um ponto final: “Nem os palhaços nem os esquizofrénicos merecem as palavras que se ouviram de vários deputados nesta sala.”
Amor com amor se paga
Outras armas de arremesso se utilizaram no Parlamento. Para a história ficou o primeiro debate sobre a interrupção voluntária da gravidez, em 1982. João Morgado (CDS) defendia que “o ato sexual é para fazer filhos”. Pouco depois, Natália Correia pedia a palavra para declamar um poema que acabara de escrever. Truca-truca** provocou tantas gargalhadas que a sessão teve de ser interrompida.
A AR não é palco exclusivo desta troca de mimos. Recordemos o final de um debate, na SIC, em 2005. Carmona Rodrigues dirigiu-se a Manuel Maria Carrilho, para se despedir. O ex-ministro socialista virou-lhe costas, pelo que Carmona Rodrigues vociferou perante as câmaras: “Não cumprimenta?! Extraordinário! Grande ordinário!” Carrilho não gostou mas mais não fez do que guardar o insulto no seu álbum pessoal, onde já se encontrava um artigo de António Barreto (intitulado Um homem sem qualidades), publicado no Público, em 1999, no qual o sociólogo se lhe referia como “um ministro rasca”, “sonso”, “suburbano” ou “pavão de província”. Dessa vez, Carrilho processara Barreto, mas a Relação acabou por confirmar a decisão de arquivamento por considerar as “ofensas” semelhantes às que Carrilho proferia nas suas colunas de opinião. De facto, dois anos antes, Carrilho escrevera no Expresso: “Marcelo [Rebelo de Sousa] é pura gelatina política.”
Circo de feras
Daniel Oliveira, então dirigente do Bloco de Esquerda, também escreveu no Expresso que “Alberto João Jardim é um palhaço”. O presidente do Governo Regional da Madeira processou-o e, depois de recorrer da sentença (€2000 de multa), Daniel Oliveira teve de pagar €500 ao ofendido.
Pouco depois, dois acórdãos do Tribunal da Relação do Porto (de 2007 e 2009) deixavam claro que “as expressões ‘palhaço’ e ‘camelo’, dirigidas a outrem, constituem uma grosseria, mas não excedem o âmbito da falta de educação nem têm aptidão para ofender a honra e consideração do visado”.
Foi justamente esta palavra – “palhaço” – que levou a Procuradoria-Geral da República (PGR) a abrir um inquérito às declarações de Miguel Sousa Tavares que, em entrevista ao Jornal de Negócios, disse (no seguimento de uma pergunta sobre Beppe Grillo): “Nós já temos um palhaço. Chama-se Cavaco Silva.” Caberá agora à justiça decidir se esta é, ou não, uma ofensa ao símbolo da República que é o Presidente, conforme está previsto nos artigos 180.º e 328.º do Código Penal.
Questionada pela VISÃO, a PGR recorda que, “no DIAP de Lisboa, no ano de 2011, correu termos um inquérito que teve como objeto a investigação de factos jurídico-penalmente enquadráveis na previsão do artigo 328.º do Código Penal, dos quais foi alvo o atual Presidente da República, e em cujo âmbito foi deduzida acusação”. A comparação do PR a Fátima Felgueiras e Isaltino Morais valeu uma acusação ao diretor da revista Sábado, mas o caso acabou arquivado.
Hoje, a guerra é jurídica. Há cem anos, o problema resolver-se-ia de maneira diferente. Com o Tribunal de Honra já de pé (foi criado em 1911), ainda havia quem defendesse a reposição do duelo e da possibilidade de defesa da honra com a própria vida. “Isto de cada um entregar a sua honra a criaturas nomeadas por outrem e não pelo próprio não me parece que seja acertado”, apregoava, então, o jovem republicano Álvaro Poppe.