Há mais de 20 anos que Bettencourt Picanço, presidente do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado, se senta à mesa das negociações, sempre que o assunto é reformar a Administração Pública (AP). Esteve lá nos momentos altos, em que se discutiam mais dias de férias ou aumentos salariais de 4%, e nos baixos, quando os assuntos principais eram reduzir privilégios dos reformados ou introduzir vínculos de trabalho iguais aos do privado. Há pouco mais de um ano, em junho de 2011, Bettencourt Picanço, Leopoldo de primeiro nome, assistiu à eleição do seu partido – o PSD – para gerir os destinos do País. E voltou a sentar-se à mesa, juntamente com outros sindicalistas e com o secretário de Estado da AP, Hélder Rosalino, do PSD, para discutir o futuro da Função Pública. “A diferenças entre este Governo e os outros é simples de explicar: este volta-se unicamente para reduzir aquilo que são as remunerações e a capacidade de os serviços responderem”, queixa-se o sindicalista social-democrata.
A AP é, hoje, muito diferente daquela que Bettencourt Picanço começou por defender e representar, no início dos anos noventa. A 30 de setembro de 2012, eram 581 444 os indivíduos a trabalhar no Estado, o que representa uma quebra de 5,1% em relação ao final de 2011 (em 1979 eram 372 086, mas, em 2005, chegaram a ser 747 880). Dois terços ainda mantêm um regime de proteção laboral (vínculo permanente ou de nomeação) que lhes confere uma segurança acrescida no emprego, ao contrário do que acontece no setor privado.
Em 2012, o funcionário público tipo é mulher, tem 44 anos, completou o ensino superior, ganha, em média 1 589,8 euros por mês e trabalha numa escola (docente). Aufere, assim, em média, mais 400 euros do que se estivesse no privado, pode ter até mais oito dias de férias (entre 25 e 30, em função da antiguidade) e trabalha menos cinco horas do que o limite máximo estipulado pelo código laboral – o que não significa que nas empresas, e a banca é disso exemplo, não haja quem também trabalhe (oficialmente…) 35 horas semanais.
Com uma contribuição mensal de 1,5% do seu salário pode ainda beneficiar de um sistema de proteção na saúde, conhecido por ADSE. A maioria não recebe subsídio de desemprego e ficou, este mês, sem subsídio de Natal, ao contrário dos outros trabalhadores.
Quanto ao valor das reformas, também a média, no público, é superior à do privado: 1 263 euros para as primeiras, 500 no caso das segundas. E as fórmulas de cálculo mantêm diferenças significativas, sobretudo para quem já era funcionário do Estado antes de 2005 e estava ligado à Caixa Geral das Aposentações.
As diferenças são ainda relevantes, mas a convergência entre emprego público e privado (e entre proteção social no setor Estado ou fora dele) está a fazer o seu caminho, desde 2005.
Refundação em estudo
Em 2013, ano anunciado como o da refundação do Estado (que implicará poupanças na ordem dos 4 mil milhões de euros), as regras da AP continuarão a aproximar-se das do privado. E algumas hipóteses têm surgido na praça pública, desde logo por indicação da troika: cortes nas contribuições do Estado para a ADSE; alterações nas pensões da CGA; mudanças profundas do modelo organizativo e das normas de gestão; aumento da carga horária.
A eventualidade de meia hora adicional de trabalho por dia é um dos temas quentes do momento. “Não é possível antecipar nada a esse propósito, a não ser que as questões relacionadas com a organização e duração do tempo de trabalho são importantes, a par de outras, no contexto da preparação da reforma do Estado”, diz o secretário de Estado da tutela, à VISÃO. “O Governo está a desenvolver as análises e os estudos que considera necessários para suscitar o debate em torno das reformas a realizar”, acrescenta.
Hélder Rosalino, detentor da grande pasta chamada Administração Pública, não gosta de falar de cenários. Para ele, o importante seria abrir um debate “nunca antes feito” sobre as funções do Estado e só depois disso tomar decisões. O que queremos que o Estado nos dê e quanto estamos dispostos a pagar por isso é a “complexa equação” que “temos de saber resolver”. E “não temos alternativa”, sublinha o governante.
Sem querer avançar o número ideal de funcionários públicos para um país resgatado, Hélder Rosalino lá vai dizendo que é preciso continuar o caminho que permitiu diminuir os gastos totais com a AP de 51,2% do PIB, em 2010, para 45,6%, em 2012. “O Governo quer que a despesa de funcionamento do Estado se situe em níveis comparáveis com os indicadores internacionais adequados, na ordem dos 42%, 43% do PIB, a médio prazo.” O Estado ideal, portanto, gasta menos quase 10% do que em 2010. E é também mais moderno, mais ágil, mais otimizado, mais jovem e mais qualificado, no desejo do Governo.
Uma questão de números
Para sabermos o que isso significa realmente, é preciso voltar ao retrato da Função Pública em 2012. Hoje, a faixa etária mais frequente na AP é a dos 45 aos 54 anos (33,8%) e a idade média tem vindo a subir desde 1996 (de 41 para 44 anos).
Em termos de habilitações, 47,4% dos funcionários são licenciados (18,1%, no setor privado) e mais de 24% concluíram o secundário – os valores estão inflacionados, considerando, sobretudo, o número de professores, mas também o de juízes, médicos e diplomatas.
Mais de 56% dos servidores públicos são, atualmente, mulheres (no mercado geral de trabalho as mulheres ficam-se por 47%) e as cinco principais profissões correspondem a professores (151 004 indivíduos), auxiliares ou operários (141 221), administrativos e assistentes técnicos (83 119), forças da segurança (53 805) e técnicos superiores (53 219).
Os ministérios com mais recursos são o da Educação (50,3%), o da Administração Interna (11,6%) e o da Defesa Nacional (9,5%). E os dois cargos mais bem pagos são o de diplomata (ganho médio mensal de 8 118,2 euros) e de magistrado (4 348,8 euros). Os médicos vêm em quinto lugar, com pouco mais de 3 800 euros.
No extremo oposto ao dos diplomatas, estão os auxiliares, com 747,9 euros, o salário mais baixo da Função Pública. Em Portugal, estima-se que haja 605 mil trabalhadores a ganhar o salário mínimo nacional. É outra diferença “descomunal”, como diria Vítor Gaspar.
“Há dias, uma pessoa que já ocupou este cargo dizia-me que o meu principal desafio como governante deveria ser o de valorizar a AP e os seus funcionários, combatendo a ideia de que o setor público é o culpado de todos os nossos males”, conta Hélder Rosalino à VISÃO. “Os funcionários públicos são os professores dos nossos filhos, os médicos e enfermeiros que nos asseguram cuidados de saúde, os polícias que garantem a nossa segurança e muitos outros profissionais indispensáveis à organização da nossa sociedade. Ninguém imagina a nossa vida sem eles. Mas isto não significa que não se deve procurar, a todo o custo, melhorar o funcionamento da AP, racionalizando-a e tornando-a cada vez mais eficiente.”
A estratégia para transformar a AP de hoje nesta entidade moderna e eficaz é composta, segundo o Governo, por três “erres”: o da redução, o da requalificação e o da recomposição. Pelo meio, haverá muitas reuniões (e divergências) com os sindicatos, com a troika, com o CDS e, quiçá, com o maior partido da oposição, com vista a um “melhor Estado”, nas palavras de Hélder Rosalino. E “mais barato”, acrescenta Bettencourt Picanço. “O rumo que está a ser traçado para a Função Pública é o mesmo que está a ser traçado para toda a sociedade e passa por embaratecer o trabalho. É o que vai acontecer, se os portugueses não tiverem um sobressalto.” Palavra de sindicalista.