Em Lisboa ninguém viu o fogo. Mas a nuvem de fumo e o cheiro a queimado invadiram a cidade, na segunda-feira. Assim está a coligação de Governo: “permanece coesa”, garante Nuno Melo, vice-presidente do CDS, mas já são três as discordâncias públicas, só na última semana.
Talvez seja uma coincidência, mas os casos da RTP, da revisão das leis eleitorais e da carga fiscal foram, precisamente, os mais delicados de negociar quando, há pouco mais de um ano, em junho de 2011, CDS e PSD assinaram o acordo sobre o programa de Governo. Nessa altura, o CDS recuou. Aceitou inscrever a privatização de um dos canais da televisão pública no compromisso da coligação. Aceitou, também, estudar uma reforma eleitoral com o seu parceiro, dentro de limites precisos. Mas recusou “ir além da troika” em matéria de impostos.
Esses três assuntos, sensíveis na coligação, surgiram de sopetão nos últimos dias. E Paulo Portas não deu a outra face.
É que, explica um dirigente do CDS, o partido aprendeu com a sua última experiência governativa ao lado do PSD. Em 2002, no Governo de Durão Barroso, a estratégia de Paulo Portas privilegiava a moderação – “é uma palavra mais forte, mas talvez a correta seja submissão…” – face ao PSD. Nessa altura, o próprio peso eleitoral (40% do PSD e apenas 8,7% do CDS) levou a que o parceiro mais pequeno engolisse todos os sapos. A história é conhecida: Durão saiu para Bruxelas, veio Santana Lopes, o Parlamento foi dissolvido e, na eleição seguinte, em 2005, o CDS foi penalizado pelos eleitores. Portas chegou a abandonar a liderança.
Hoje, o peso eleitoral do CDS na coligação é outro (38,7% teve o PSD, 11,7% o CDS). E a lição de 2004 é conhecida: o partido não pode provocar querelas internas no Governo, mas tem de salvaguardar a sua autonomia.
Daí o cuidado posto na negociação do programa de Governo. E o finca-pé na sua execução, tal e qual como foi escrito e assinado.
Portas ‘destrunfa’ Passos
A aparição de António Borges, consultor especial do primeiro-ministro para o processo das privatizações, numa entrevista na TVI, no dia 23 de agosto, com um plano para a concessão a privados dos canais da RTP, e o encerramento do canal 2, fez soar os alarmes, no CDS. João Almeida, porta-voz do partido, veio a público criticar a forma escolhida para tal anúncio. Começava uma longa semana em que os parceiros de coligação se dedicaram, cada um, a destrunfar o adversário. Portas ficou com a última palavra…
De facto, depois das críticas do CDS, e dos partidos da oposição, foi a vez de a administração da RTP se insurgir contra o anúncio de Borges: “O conselho de administração da RTP considera descabido do ponto de vista institucional a divulgação pública de opiniões favoráveis a um dos cenários ainda em análise, sentindo-se por isso obrigado a divulgar publicamente que manifestou, em tempo oportuno, a sua discordância relativamente a este cenário.” Miguel Relvas, ausente em Timor-Leste, tratou de agendar uma reunião com a administração, que se demitiria de seguida. O próprio António Borges veio defender-se: “Só comunico questões do meu trabalho com o Governo quando o Governo me autoriza a fazê-lo.” Vários dirigentes do CDS voltaram a contrariar esta versão. O assunto chegou mesmo ao primeiro-ministro, que classificou como um “cenário” o plano da concessão e como “histeria” a reação crítica. Mas Paulo Portas não ficou satisfeito e, no sábado, no Expresso, escolheu as palavras, em tom de aviso a Passos Coelho: “Vai ser preciso um esforço para recuperar o sentido de compromisso que PSD e CDS demonstraram quando negociaram o programa do Governo. Estamos cá para isso.”
Nesta altura, o PSD já tinha gasto todos os seus trunfos…
Mas o CDS não: na segunda-feira, 3, chegava ao fim a tentativa de entendimento entre os dois partidos para a revisão da lei eleitoral autárquica. A discórdia surgiu a propósito dos executivos municipais monocolores, mas essa é apenas a ponta do icebergue. O CDS rejeitará qualquer proposta que vise diminuir o papel dos “pequenos-médios partidos” por via da engenharia eleitoral.
Recados pela ‘troika’
A última (e porventura mais grave) das divergências ficou patente na passada terça-feira. As fricções, nas negociação do próximo Orçamento do Estado, eram, até então, contidas. Paulo Portas havia escrito, em julho, uma carta aos eleitores do seu partido em que retirava margem para novos aumentos da carga fiscal: “O nível de impostos já atingiu o seu limite.” Mas foi num encontro com a troika, no Parlamento, na manhã da passada terça-feira, que o CDS mostrou sinais de intransigência: “A política fiscal que está no memorando é a que deve ser seguida, não deve ser agravada” foram as palavras do deputado Adolfo Mesquita Nunes, à saída do encontro com os representantes do FMI, da Comissão Europeia e do BCE. O recado do CDS é claro. E o destinatário não é a troika, é o PSD.
Por estes dias, a quinta revisão do programa de ajustamento português encontra-se praticamente concluída, sem que se saiba o que virá de seguida: mais austeridade ou mais flexibilidade, traduzida por mais tempo, mais dinheiro e uma disciplina mais ténue que permita, por exemplo, aplicar medidas extraordinárias para conter o défice.
Enquanto a troika não anuncia a sua decisão, há que fazer as contas à quebra “colossal” da receita fiscal que, na primeira metade do ano, tornou completamente irrealista a meta do défice orçamental estipulada em 4,5% do PIB para o final de 2012. Na recente análise à execução orçamental, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) do Parlamento situou entre 6,7% e 7,1% do PIB o desvio entre as receitas e as despesas do Estado, chamando a atenção para o desconhecimento sobre os custos das sociedades-veículo criadas para aliviar os passivos do BPN, ainda por refletir nas contas públicas. Já o gabinete de Vítor Gaspar, segundo a imprensa, terá confrontado a troika com uma derrapagem igual a 5,3% do PIB (1,2 mil milhões de euros), um valor não tão elevado como o da UTAO mas, ainda assim, umas boas décimas acima da meta inicialmente traçada para este ano. Só na próxima semana a troika deverá anunciar se vai fechar os olhos e perdoar o deslize do “bom aluno” ou se, pelo contrário, exigirá mais medidas para equilibrar as contas públicas, fazendo tábua rasa de todos os alertas recentes sobre os sinais de “fadiga” da austeridade.
Olhando para os últimos indicadores económicos, não é difícil concluir que as reformas estruturais tardam em produzir resultados, a pressão da despesa sobre as contas do Estado mantém-se para além do desejado e a economia ainda não mostra a vitalidade necessária ao crescimento. A derrapagem da receita dos impostos soma 3,5% até julho, a crueza dos números do desemprego atirou a taxa para os 15,7%, a falência de empresas sucede-se ao ritmo de 500 novos processos por mês e o prejuízo das empresas públicas, com as transportadoras à cabeça, duplicou, no segundo trimestre do ano. A esta dura realidade soma-se a necessidade de encontrar alternativas aos cortes de 1,8 mil milhões de euros nos subsídios de férias e de natal dos funcionários do Estado e dos pensionistas, que não podem repetir-se no próximo ano, por decisão do TC, ainda antes da apresentação do Orçamento do Estado para 2013. E, a escassos dias de anunciar o que nos espera no futuro próximo, o representante da Comissão Europeia na troika lembrou, perante os parceiros sociais, que os (maus) resultados do programa são da responsabilidade do Governo…
Na frente externa, a Europa continua a hesitar entre a estagnação e a recessão, Espanha tenta, a todo o custo, desenhar um resgate à medida das suas necessidades e o braço de ferro entre o presidente do BCE, Mario Draghi, e os “falcões” do Bundesbank continua com desfecho incerto. Pedro Passos Coelho pode preparar-se para uma rentrée difícil, também no plano económico, apesar do mais que certo cheque de 4,3 mil milhões de euros, resultante deste 5.º exame da troika, estar quase, quase a chegar.